Deixando de lado, por enquanto, a segunda parte do versículo 12, chegamos à dupla exortação de Paulo a Timóteo, nos dois versículos seguintes: “Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste” (v. 13); “guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós” (v. 14). Aqui Paulo se refere ao evangelho, à fé apostólica, usando duas expressões. O evangelho é tanto um padrão de sãs palavras (v. 13), como um depósito precioso (v. 14).
“Sãs” palavras são palavras “saudáveis”. A expressão grega é empregada nos evangelhos nos casos de pessoas curadas por Jesus. Anteriormente eram deformes ou doentes; agora estavam bem ou “sãs”, por não ser mutilada ou enferma, mas “sadia”, ou “completa”. É o que Paulo mencionara, anteriormente, como sendo “todo o desígnio de Deus” (Atos 20:27).
Além disso, essas “sãs palavras” foram dadas por Paulo a Timóteo num “padrão”. A palavra grega aqui é
hypotyposis. A BLH traduz por “exemplo”. E o Dr. Guthrie diz que ela significa um “esboço rápido, como o faria um arquiteto, antes de lançar no papel os planos detalhados de uma construção” [15]. Neste último caso Paulo estaria sugerindo a Timóteo que ampliasse, expusesse e aplicasse o ensino apostólico. Parece-me que essa interpretação não se harmoniza com o contexto, principalmente num confronto com o versículo seguinte. A única outra ocorrência de
hypotyposis no Novo Testamento encontra-se na primeira carta de Paulo a Timóteo, onde ele descreve a si mesmo como um objeto da maravilhosa misericórdia e da perfeita paciência de Cristo, como um “exemplo dos que haviam de crer nEle” (1:16). Arndt e Gingrich, que optaram por “modelo” ou “exemplo” como sendo a tradução usual, sugerem que essa palavra é empregada mais com o sentido de “protótipo” em 1 Timóteo 1:16 e com o sentido de “padrão” em 2 Timóteo 1:13. Neste caso Paulo estaria ordenando a Timóteo que conservasse como um padrão as sãs palavras, isto é, “como um modelo de ensino sadio”, aquilo que ouvira do apóstolo. Isto certamente corresponde ao ensino geral da carta e reflete fielmente a ênfase da sentença na primeira palavra, “modelo” ou “padrão”.
Assim, o ensino de Paulo deve ser uma regra ou diretriz para Timóteo, da qual este não deve se afastar. Pelo contrário, deve obedecer a essa regra, ou melhor, deve apegar-se a ele com firmeza (
eche). E assim deve proceder “na fé e no amor que há em Cristo Jesus”. Isto é, Paulo não está tão preocupado com o que Timóteo deve fazer, mas sim como o modo como ele o fará. As convicções doutrinárias de Timóteo e a instrução recebida de outros, assim como as que reteve firmemente dos ensinos de Paulo, devem ser manifestas com fé e amor. Timóteo deve procurar estas qualidades em Cristo: uma crença sincera e um amor pleno.
A fé apostólica não é somente um “padrão de sãs palavras”; é também o “bom depósito” (
he kale paratheke). Ou como expressa a BLH: “as boas coisas que foram entregues a você”. Sim, o evangelho é um tesouro, depositado em custódia na igreja. Cristo o confiou a Paulo; e Paulo, por sua vez, o confiou a Timóteo.
Timóteo deveria “guardá-lo”. É precisamente o mesmo apelo que Paulo lançou no final da sua primeira carta (6:20), com a única diferença de que agora ele o chama de “bom”, literalmente “belo” depósito. O verbo (
phylasso) tem o sentido de guardar algo “para que não se perca ou se danifique” (AG). É empregado com a idéia de guardar um palácio contra saqueadores, e bens contra ladrões (Lucas 11:21; Atos 22:20). Fora há hereges prontos a corromper o evangelho e desta forma roubar da igreja o inestimável tesouro que lhe foi confiado. Cabe a Timóteo colocar-se em guarda.
Deveria ele guardar o evangelho com toda a firmeza possível em vista do que acontecera em Éfeso (a capital da província romana da Ásia) e seus arredores, onde Timóteo se encontrava (v. 15). O tempo aoristo do verbo “me abandonaram” parece referir-se a um acontecimento especial. É mais provável que tenha sido o momento da segunda detenção de Paulo. As igrejas da Ásia, onde trabalhara por vários anos, tornaram-se muito dependentes dele, e talvez a prisão do apóstolo lhes tenha incutido a idéia de que a fé cristã agora estava perdida. A reação deles talvez tenha sido repudiar Paulo ou recusar-se a reconhecê-lo. De Figelo e Hermógenes nada sabemos de concreto, mas a menção de seus nomes nos indica que possivelmente eles tenham sido os cabeças da oposição. De qualquer modo, Paulo via nesse afastamento das igrejas da Ásia mais do que uma simples deserção pessoal dele; era, sim, uma rejeição à autoridade apostólica. Deve ter-lhe sido algo bastante sério, principalmente porque alguns anos antes, durante a sua permanência em Éfeso por dois anos e meio, Lucas registra que “todos os habitantes da Ásia ouviram a palavra do Senhor, e muitos creram” (Atos 19:10). Agora “os que estão na Ásia” haviam voltado as costas para Paulo. A um grande despertamento seguiu-se uma grande deserção. “A todos os olhos, menos aos da fé, deve ter parecido que o evangelho estava às vésperas da extinção” [16].
Uma grande exceção parece ter sido um homem chamado Onesíforo, o qual repetidas vezes acolhera Paulo em sua casa (literalmente “reanimou-o”, v. 16) e que, em Éfeso, prestara-lhe muitos serviços (v. 18). Onesíforo permanecera, desde modo, fiel ao significado do seu nome: “portador de préstimos”. Além disso, não se envergonhara das algemas de Paulo (v. 16), o que dá a entender que não repudiou a Paulo quando preso, e que o seguiu, e mesmo o acompanhou a Roma, procurando-o até encontrá-lo no calabouço. Paulo tinha boas razões para ser grato por este amigo fiel e corajoso. Não é surpreendente, pois, que se expresse por duas vezes em oração (vs. 16, 18), primeiro por sua casa (“conceda o Senhor misericórdia à casa de Onesíforo”) e depois, especificamente, por Onesíforo (“O Senhor lhe conceda, naquele dia, achar misericórdia da parte do Senhor”).
Vários comentaristas, notadamente católicos romanos, partindo das referências à casa de Onesíforo (mencionada novamente em 4:19) e à expressão “naquele dia”, têm argumentado que Onesíforo àquela altura estava morto e que, por conseguinte, no versículo 18 temos uma oração em favor de um falecido. Isto, na verdade, não passa de uma simples e gratuita conjectura. O fato de Paulo mencionar primeiro Onesíforo e depois sua casa não dá a entender necessariamente que estejam eles separados em virtude de sua morte; é mais viável crer que fosse devido à distância: Onesíforo estava ainda em Roma, enquanto que sua família permanecia em casa, em Éfeso. “Considero que é uma oração em separado pelo homem e por sua família”, escreve o Rev. Moule, “por estarem então separados um do outro, por terras e mares...Não há necessidade alguma de interpretar que Onesíforo tivesse morrido. A separação de sua família, por uma viagem, isso é o que se depreende da passagem”. [17]
Em todo o caso, todos na Ásia, como Timóteo estava bem ciente, voltaram as costas ao apóstolo, com exceção do leal Onesíforo e de sua família. Era em tal situação de apostasia quase universal que Timóteo deveria “guardar o bom depósito” e “manter o padrão das sãs palavras”, ou seja, deveria preservar o evangelho imaculado e genuíno. Já seria uma grande responsabilidade para qualquer um, quanto mais para alguém com o temperamento de Timóteo. Como poderia então permanecer firme?
O apóstolo dá a Timóteo a base segura de que ele necessita. Timóteo não pode pensar em guardar o tesouro do evangelho com força própria; somente poderá fazê-lo “mediante o Espírito Santo que habita em nós” (v. 14). A mesma verdade é ensinada na segunda parte do versículo 12, que até aqui ainda não consideramos. A maior parte dos cristãos está familiarizada com a tradução “porque sei em quem tenho crido, e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia”. Essas palavras são verdadeiras e muitas outras passagens bíblicas as confirmam; quanto à estrutura linguística, foram traduzidas acuradamente. De fato, tanto o verbo “guardar” como o substantivo “depósito” são precisamente as mesmas palavras no versículo 12 e no versículo 14 e ainda em 1 Timóteo 6:20. Presume-se, então, que “o meu depósito” não é o que eu lhe confiei (minha alma ou eu mesmo, como em 1 Pedro 4:19), mas aquilo que ele confiou a mim (o evangelho).
O sentido, pois, é este: Paulo podia dizer que o depósito é “meu”, porque Cristo lho confiou. Contudo, Paulo estava persuadido de que era Cristo que iria conversá-lo seguro “até aquele dia”, quando ele teria de prestar contas da sua mordomia. Em que se baseava a sua confiança? Somente numa coisa: “eu o conheço”. Paulo conhecia a Cristo, em quem confiava, e estava convencido da capacidade dele para manter o depósito em segurança: “porque sei em quem tenho crido, e estou bem certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia” (v. 12). Cristo cuidará do depósito. E agora Paulo o está confiando a Timóteo. E Timóteo pode ter esta mesma segurança.
Aqui há um estímulo muito grande. Em última análise, é Deus mesmo quem preserva o evangelho. Ele se responsabiliza por sua conservação: “Sobre qualquer outro fundamento a obra da pregação não se sustentaria nem por um momento” [18]. Podemos ver a fé evangélica encontrando oposição em toda parte, e a mensagem apostólica sendo ridicularizada. Talvez vejamos uma crescente apostasia crescer na igreja, muitos de nossa geração abandonando a fé de seus pais. Mas não temos nada a temer! Deus nunca permitirá que a luz do evangelho apague. É verdade que ele o confiou a nós, frágeis e falíveis criaturas. Ele colocou o seu tesouro em frágeis vasos de barro, e nós devemos assumir a nossa parte na guarda e na defesa da verdade. Contudo, mesmo tendo entregue o depósito aos cuidados de nossas mãos, Deus não retirou as Suas mãos desse depósito. Ele mesmo é, afinal, o Seu melhor vigia; Ele saberá preservar a verdade que confiou à Igreja. Isto nós sabemos, porque sabemos em quem depositamos a nossa confiança, e em quem continuamos a confiar.
Vimos que o evangelho é a boa nova da salvação, prometida desde a eternidade, concretizada na História por Cristo, e oferecida à fé.
A nossa primeira responsabilidade reside na comunicação do evangelho, fazendo uso de velhos métodos ou procurando novos caminhos para torná-lo conhecido por todo o mundo.
Se assim procedermos, certamente sofreremos por ele, já que o autêntico evangelho nunca foi popular. Ele humilha muito o pecador.
E ao sermos chamados a sofrer pelo evangelho, somos tentados a adaptá-lo, a eliminar aqueles elementos que ofendem e provocam oposição, a silenciar as notas que ferem os sensíveis ouvidos modernos.
Mas devemos resistir a esta tentação. Pois, antes de tudo, fomos chamados a guardar o evangelho, conservando-o puro, a qualquer preço, preservando-o de toda corrupção.
Guardá-lo fielmente. Difundi-lo ativamente. Sofrer corajosamente por ele. Esta é a nossa tríplice responsabilidade perante o evangelho de Deus, de acordo com este primeiro capítulo.
NOTAS:
[15] - Guthrie, p. 132.
[16] - Moule, p. 16.
[17] - Moule, pp. 67,68.
[18] -Barrett, p. 97.
Fonte: John Stott, A Mensagem de 2 Timóteo, Editora ABU.
Via: [ Monergismo ]