.Quando estou de férias em Recife uma de minhas atrações favoritas (senão a favorita) é curtir o meu sobrinho, de três aninhos de idade (e não é porque o nome dele é igual ao meu, viu?!). Como ainda não sou pai, meu consolo é ficar babando por ele (acho que herdei a “corujice” de meus pais). Desta última vez em que fui a minha amada terra, ensinei-lhe a dizer que a Bíblia é a Palavra de Deus. – “A Bíblia é o que, Leo”?
– “A Palavra de Deus”, respondia ele entusiasticamente, com os punhos cerrados e dando socos no ar, como se estivesse comemorando um gol ou coisa do tipo. Fiquei lhe perguntando repetidas vezes a mesma coisa, e a resposta era sempre a mesma: “A Palavra de Deus, a Palavra de Deus”! Depois disso, dessa vez sem adotar nenhuma metodologia tipo catequética, perguntei-lhe quem era Jesus. Ele pensou um pouco, pensou, e disse: “É… é… é Deus”! Ainda nem tínhamos conversado sobre isso! Nem acreditei no que ouvi, tanto que resolvi forçar mais ainda a barra:
– “E quem é Deus, Leo”?
– “Jesus”, respondeu ele dando de ombros, com aquela simplicidade que é própria das crianças. Depois daquele dia eu quase disse para mim mesmo que agora eu poderia morrer, ops!, ir para Santarém em paz (*).
Depois de mais dois meses sem falar com meu sobrinho, pedi a minha mãe para levá-lo à casa dela somente para eu matar um pouquinho da saudade que sinto dele. Depois de tantos desencontros (eu ligo e ele não está, ele está e eu não ligo…), o dia finalmente chegou: eu estava, enfim, cara a cara, ou melhor, fone a fone com ele. E adivinhem qual foi a primeira pergunta que lhe fiz?
– “A Bíblia é o que, Leo?” – perguntei-lhe com aquela expectativa ofegante, para ver se ele ainda lembrava.
– “A Palavra de Deus!”, respondeu ele sem hesitar (só não deu para saber se foi com socos no ar). Dois meses depois e ele ainda lembrava! Puxa vida! Nem precisa dizer como me senti, não é mesmo? Bem, depois de ouvir o que queria (egoísta bitolado, eu?!), começamos a conversar sobre sua escolinha, seus amiguinhos, sua “malcriação” (“birra”, para os não-nordestinos), etc, etc, etc.
As declarações de meu sobrinho fariam muita gente se contorcer toda, especialmente os liberais, que negam tanto a inspiração das Escrituras quanto a divindade de Jesus. Para estes, as palavras do pequeno Leo não revelam apenas a “inocência” de uma criança que ainda não sabe o que diz, mas também a ilusão de toda uma cultura cristã construída sobre uma base mítica – os Evangelhos, que não são, segundo eles, um relato confiável da vida e ministério de Jesus. É exatamente assim que pensa, por exemplo, Rudolf Bultmann, teólogo liberal (roxo, diga-se de passagem), considerado por muitos como um dos maiores eruditos em Novo Testamento do século 20.
Eu realmente penso que não podemos saber quase nada sobre a vida e a personalidade de Jesus, já que as fontes cristãs primitivas [os Evangelhos] não mostram qualquer interesse em ambos, são fragmentárias e frequentemente lendárias; e outras fontes sobre Jesus não existem[1].
Para Bultmann, a Bíblia nada mais é do que o registro das crenças de um povo, a saber, dos judeus e cristãos do primeiro século, nada mais. Ela está cheia de lendas e crenças populares. Não há nenhuma verdade absoluta ali, apenas crendices (lendas).
A comunidade cristã estava convencida de que Jesus havia realizado milagres, e contaram muitas histórias de milagres sobre ele. A maioria das estórias sobre milagres que estão nos Evangelhos são lendas, ou pelo menos estão revestidas de caráter lendário. Não pode haver dúvida, contudo, que Jesus realizou atos que, no seu entendimento e no de seus contemporâneos, eram atribuídos a uma causa divina sobrenatural[2].
Além de eventos como o relato do chamado dos primeiros discípulos (Mt 4.18-22; Mc 1.16-20; Lc 5.1-11), da morte de João Batista (Mt 14.1-12; Mc 6.14-29; Lc 9.7-9), da moeda na boca do peixe, para pagar o imposto (Mt 17. 24-27), e da última Ceia (Mt 26.26-30; Mc 14.22-26; Lc 22.14-20), a própria ressurreição de Jesus é considerada por liberais como Bultmann como mitológica, lendária. Para eles, Jesus não ressuscitou literalmente, mas apenas no coração e na lembrança dos discípulos. Por exemplo, Cristo não esteve literalmente com aqueles dois discípulos no caminho de Emaús (Lc 24.13-35), mas apenas “na memória” destes. Ou seja, o Jesus que caminhava com aqueles discípulos era, na realidade, uma fantasia. Consequentemente, isso faz com que a divindade de Jesus também seja mítica, já que sua ressurreição (que para nós, os que cremos, é uma prova cabal de sua divindade) não foi histórica, mas folclórica. E o que Bultmann propõe para que relatos tão “fantasiosos” e “folclóricos” como esses é que o intérprete das Escrituras proceda a uma “demitização” (ou “desmitologização”) da mensagem do Evangelho (do kerigma), o que pode significar negar totalmente o conteúdo da Revelação, mesmo que alguns relatos nem sejam tão “absurdos” e “folclóricos” assim.
Prefiro ficar com a simplicidade do meu sobrinho a ceder às sugestões de Bultmann e seus confrades liberais. E não se trata de nenhum tipo de “nepotismo teológico” de minha parte, claro que não. O que o pequeno Leo falou apenas está de acordo com o ensino das Escrituras, no qual creio ser infalível, inerrante e inspirado. “Nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” – é o vaticínio de Pedro quanto à infalibilidade e inspiração da Bíblia (2Pe 1.20-21). Pedro diz que os santos profetas não falaram aquilo que eles “achavam” que ia acontecer, e sim aquilo que Deus lhes mandara falar e que Ele mesmo cumpriria. Este mesmo Pedro, quando discursou em Jerusalém por ocasião da descida do Espírito Santo sobre a igreja no dia de Pentecostes (At 2), aplicou o Salmo 16, especificamente os versículos de 8 a 10, a Jesus: “Porque não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção” – referindo-se à ressurreição de Cristo como um fato histórico, o que atesta tanto a infalibilidade das Escrituras quanto a divindade do Filho de Deus. Se isso é mero mito, como querem os liberais, então, de acordo com o apóstolo Paulo “é vã a nossa pregação, e vã, a nossa fé” (1Co 15.14).
O teólogo presbiteriano Grescham Machen já dizia que “o liberalismo teológico não é cristianismo, mas outra religião”. G. K. Chesterton foi mais além (apesar de não estar se referindo diretamente aos liberais) quando disse que “quando as pessoas deixam de crer no verdadeiro Deus da Bíblia, isso não significa que elas deixaram de crer em algo, mas que elas agora creem em tudo ao mesmo tempo”[3]. H. Richard Niebuhr também deixou seu comentário (caricaturizado) sobre a perspectiva liberal: “um Deus sem ira levou homens sem pecado para um reino sem julgamento pelas ministrações de um Cristo sem uma cruz”[4]. Tudo isso só reforça ainda mais o parecer simples, mas extremamente profundo, do meu querido sobrinho: a Bíblia é a Palavra de Deus; Jesus é Deus! Simples assim.
Soli Deo Gloria!
(*) Isso não quer dizer que eu esteja aderindo ao Monarquianismo Modalista (séc. IV), que não faz distinção entre as Pessoas da Trindade (aquelas coisas do tipo: “o Pai foi para a cruz”, Unitarismo, etc). Só estou ressaltando a divindade de Cristo, nada mais. Seria exigir demais de uma criança de apenas três anos que ela distingua tão bem algo que nem mesmo os grandes teólogos da história conseguiram fazer – desvendar o inesvendável mistério da Trindade.
Notas:
1 - Bultmann, Rudolf K. Jesus and the Word (1934). Citado por Augustus Nicodemus Lopes em A Bíblia e Seus Intérpretes. São Paulo, 2007. Editora Cultura Cristã. Pág. 208.
2 - Idem. Pág. 208, 209.
3 - Citado por Michael Horton em A Face de Deus – os perigos e as delícias da intimidade espiritual. São Paulo, 1999. Editora Cultura Cristã. Pág. XV.
4 - Idem. Pág. XVI.
Autor: Leonardo B. Galdino
Fonte: [ Optica Reformata ].