Os Mandatos Criacionais

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Introdução

O registro da revelação apresenta-se com três mandatos específicos: Cultural, Social e Espiritual. Estes mandatos são os condutores da aliança de Deus com seu povo. Estes fios condutores da aliança configura a vida humana em sua totalidade. Dentro desta concepção insere-se a ideia da tríplice estruturada bíblica de uma cosmovisão que envolve: a criação, queda e redenção.

A tríplice estrutura e os mandatos criacionais são discutidos e apresentados pela Teologia Bíblica.  A definição desta ciência é a seguinte: “Teologia bíblica é aquele ramo da teologia exegética que lida como o processo da auto revelação de Deus registrada na Bíblia”.[1]  

Podemos assegurar que a cosmovisão [baseada na tríplice estrutura: criação, queda e redenção] é permeada pelos mandatos da criação como fios condutores do pacto de Deus com o homem. Diante disso passaremos a estudar as três ordenanças criacionais:

I – Mandato Cultural

O que significa este mandato? Este mandato “acentua especificamente a relação da humanidade com o cosmos” [2]. A criação é o teatro da glória de Deus e o palco de nossa atuação.

Onde se fundamenta este mandato? A resposta encontra-se no texto de Gênesis 1.28: “E Deus os abençoou e lhe disse: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra.

A primeira frase deste texto “sede fecundos, multiplicai-vos” – “significa desenvolver o mundo social: formar famílias, igrejas, escolas, cidades, governos, leis. A segunda frase - enchei a terra e sujeitai-a – significa subordinar o mundo natural: fazer colheitas, construir pontes, projetar computadores, compor músicas.” E se faz necessário insistir que a passagem em foco é “chamada de o mandato cultural, porque nos fala que nosso propósito original era criar culturas, construir civilizações – nada mais”[3]

O mandato cultural implica na redenção de culturas inteiras. O vocábulo dominar, empregado aqui nesta passagem, indica a ideia de “capacidade real e supervisão”. A palavra hebraica empregada “וְיִרְדּוּ” (veiredu) que vem da raiz “hdr” (radar) que tem o sentido de “governar, dominar” e até “subjulgar”[4]. Sabemos que em “Gênesis 1.26, 28, o verbo ocorre com um sentido positivo quando se declara que a humanidade, criada à imagem de Deus, deve subjugar a terra e reinar sobre (rdh) todos os animais. À espécie humana é dada a responsabilidade sobre a criação de Deus, como fica evidente pelo fato de que esse comando é parte da bênção de Deus (1.28)”[5].

Devemos ressaltar que o uso do verbo dominar aqui não consistia em uma “licença para a humanidade abusar das ordens da criação”, mas pelo contrário ele deveria “ser apenas um vice-regente de Deus, e a ele, tinha de prestar contas”.[6] O aspecto da “Imago Dei” é a força propulsora para o conceito do mandato cultural na esfera do domínio neste mundo.

Ao estudarmos sobre este mandato aprendemos que o homem é chamado para santificar e colocar cada esfera de sua vida, sua educação, seus recursos nas mãos de Cristo; e, feito isso, saber administrar cada área já mencionada para a glória de Deus neste mundo. Nancy Pearcey nos alerta: “A lição do mandato cultural é que nosso senso de cumprimento depende de nos dedicarmos ao trabalho criativo e construtivo”.[7] A isso nós chamamos de redenção cósmica. Deus nos deu este mandato para exercermos o domínio nas mais diversas áreas do saber; e para o resgate das culturas para a glória dele somente.

II – O Mandato Social

O segundo mandato a ser considerado é chamado de Mandato Social. Van Groningen vai dizer que este mandato pactual “fala das relações sociais”[8]. Este mandato está fundamentado em Gênesis 2.21-24:

Então, o SENHOR Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne. E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher e lha trouxe. E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada. Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.

Temos a estrutura familiar estabelecida. A família é ordenada em termos de um desapegar-se  e unir-se a outrem. Embora, já tenhamos considerado que um dos aspectos do mandato cultural é a criação familiar. Isto se torna evidente por causa da ordem divina de haver uma “fecundação e multiplicação” em Gênesis 1.26-28; todavia, esta ordem da formulação familiar está pertinentemente estabelecida aqui neste trecho de Gênesis 2.21-24.

A criação da mulher tem como objetivo evitar a solidão de Adão. O princípio extraído aqui é que o homem não é uma ilha, isolada, sozinha sem relação com outros. O companheirismo é algo que Deus prima em sua criação – o casamento não deve ser uma prisão para os solteiros, mas a liberdade da amizade e cumplicidade matrimonial.

Longman III tem uma palavra muito significativa sobre esta realidade e declara que o “casamento envolve um homem e uma mulher deixarem os pais e constituírem uma nova unidade familiar”.[9] Van Groningen novamente nos diz que este “mandato pôde ser dado porque Deus criou a humanidade à sua imagem e semelhança e como macho e fêmea. O relacionamento tinha que ser visto como um de igualdade diante de Deus”.[10] Aqui aprendemos que a organização familiar exige uma relação heterossexual. Adão se une a sua mulher. E não a outro homem, nem mesmo uma mulher se une a outra. Mas o que está escrito é que “macho e fêmea” formam uma unidade neste mandato.

Em Gênesis 1.28 temos a extensão deste mandato de forma interessante. A finalidade na geração de filhos e filhas para cumprir este mandato pactual era de capital importância. “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra”. O verbo fecundar que aparece no texto no hebraico é “פְּר֥וּ” – peru – tem o sentido de “frutificar”. O mandato social estabelece uma necessidade que o homem tem constituir famílias e sociedades para cumprir a ordem original de Deus dada à raça humana. O homem deveria continuar sua posição de domínio social com a perpetuação de sua prole.

III – O Mandato Espiritual

O terceiro aspecto a ser considerado é o Mandato Espiritual. Envolvia comunhão e obediência a Deus. Esta comunhão estava marcada pelo dia de adoração ao soberano de todas as coisas. Conforme vemos em Gênesis 2.1-4:

Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu exército. E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera. Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando o SENHOR Deus os criou.

O conceito embrionário de um dia descanso esta alicerçado nesta passagem que evoca a comunhão primeva que o casal Adão e Eva desfrutavam com Deus. O shabbath de Deus entra em ação na narrativa bíblica “וַיִּשְׁבֹּת֙ ” ao trazer o sábado à existência Deus estava condescendo ao homem para que este pudesse desfrutar de uma comunhão intima e pessoal com Deus.

Devemos lembrar que a guarda do sábado estava ligada aos dois mandatos pactuais anteriores:

A convicção que a guarda do sábado é uma obrigação perpétua se baseia em parte na instituição do sábado em Gênesis 2.1-3. Juntamente com o trabalho (Gn. 1.24; 2.15) e o casamento (Gn. 2.18-25), Deus instituiu o sábado para governar a vida de toda a humanidade. Assim como são permanentes as ordenanças do trabalho e do casamento, assim é a ordenança do sábado.[11]

No mandato espiritual ou de comunhão o homem é criado para que possa deleitar-se no dia que Deus separou para ele. Esta comunhão com Deus se dava no ambiente litúrgico.

Ainda neste mandato estava envolvida a ideia de obediência perene a Deus conforme vemos em Gênesis 2.16-17:

E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.

Aqui temos o homem sendo chamado a pactuar com Deus. Este pacto tem sido considerado como pacto das obras, e parece-nos, que alguns sugerem que Adão deveria obedecer este pacto para obter vida eterna. Todavia, alguns preferem chama-lo de pacto de vida; e por quê? A resposta é simples, aqui Deus não lhe promete a vida, mas lhe assegura da morte certa caso o desobedeça.

A vida marcada pela comunhão com Deus e por uma espiritualidade autêntica. Adão deveria preservar essa comunhão que implicava em vida; todavia, este homem deliberadamente decide violar o pacto, violar a comunhão e em resposta a esta rebeldia ele recebe a morte.[12]

Este mandato pactual implica numa vida de obediência e adoração a Deus de forma inegociável. O homem foi criado para glorificar a Deus e se deleitar nele, e isto é feito mediante a obediência irrestrita a Palavra de Deus bem como em celebração litúrgica a Deus.

Considerações Finais

Na Teologia Reformada este tema dos Mandatos Criacionais é amplamente desenvolvido, todavia, é pouco aplicado e lecionado à igreja de Cristo. Podemos, ver nesta breve introdução o quão é importante para a vida e maturidade da igreja. Vimos neste estudo que a ordem para governar a terra tem sido negligenciada pela igreja de nossos dias; bem como a preservação das relações sociais hoje é ameaçado pela criação de leis contrárias a Palavra de Deus.

No espectro espiritual podemos tirar como implicação o fato da fraqueza e letargia da igreja deve-se ao fato da negligência profunda de uma comunhão autêntica com Deus no dia do Senhor (domingo ou sábado cristão); pois, a igreja de hoje está caminhando para o secularismo, individualismo e pragmatismo – o divino não ocupa, mas a centralidade na vida das pessoas; a comunhão virou apenas temas de sermões para o final de ano, pois, cada qual vive no seu mundo sem viver a comunhão dos santos e a igreja tem empregado esforços para que haja resultados imediatos – negligenciando o crescimento saudável da igreja por meio do culto corporativo no dia do Senhor.

Devemos reconhecer que fomos e somos criados para a obediência irrestrita a Deus e nos deleitarmos nele; devemos cumprir os nossos papéis originais intencionados por Deus para a nossa vida. Deus nos criou para que tivéssemos o domínio sobre este mundo como vice-regentes, reconhecendo que cada espaço na criação é reclamado por Cristo como sendo de sua exclusiva propriedade.

Neste processo devemos trazer à mente e ao coração que as nossas famílias são também projetos de Deus para nós, constituir famílias está atrelado à intenção original de Deus para a humanidade. A sociedade necessita de famílias equilibras e tementes a Deus o casamento e a procriação de uma descendência santa são alicerces fundamentais para a construção de uma sociedade justa.

Por fim, devemos trazer ao coração que aquilo que confere sentido à existência é eterno e imperecível, por isso, devemos reservar um tempo para a contemplação e adoração ao Deus eterno que tudo criou. O encontro com Yahweh no seu dia é de capital importância para nós, pois, é no culto onde a nossa alma é alimentada e alentada pela Palavra imperecível de Deus. O culto familiar, o culto individual e o público são oportunidades únicas de um deleitoso prazer em Deus.

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Referências Bibliográficas:

1. GRONINGEN, Gerard Van. Criação e Consumação – O Reino, a Aliança e o Mediador. Tradução: Denise Meister. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, volume 1.

2._________. Revelação Messiânica no Antigo Testamento. Tradução: Cláudio Wagner. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
3. KAISER JR., Walter C. O Plano da Promessa de Deus – Teologia Bíblica do Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Gordon Chown, A.G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2011.
4. KILPP, Nelson. Dicionário Hebraico-Portugês e Aramaico-Português. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
5. LONGMAN III, Tremper. Como Ler Gênesis. Márcio Lourenço. São Paulo: Vida Nova, 2009.
6. PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta – Libertando o Cristianismo de seu Cativeiro Cultural. Tradução: Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2011.
7. PIPA, Joseph. O Dia do Senhor. Tradução: Hope Gordon Silva. São Paulo: Os puritanos, 2000.
8. VANGEMEREN, Willem A. (org.) Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. Tradutor: Afonso Teixeira Filho e outros. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p.1052.
9. VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.

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Notas:
[1] VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica – Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p.16.
[2] GRONINGEN, Gerard van. Revelação Messiânica no Antigo Testamento. Tradução: Cláudio Wagner. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p.100.
[3] PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta – Libertando o Cristianismo de seu Cativeiro Cultural. Tradução: Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p.51.
[4] KILPP, Nelson. Dicionário Hebraico-Portugês e Aramaico-Português. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Editora Vozes, 1987, p.223.
[5] VANGEMEREN,Willem A.(org.) Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. Tradutor: Afonso Teixeira Filho e outros. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p.1052.
[6] KAISER JR., Walter C. O Plano da Promessa de Deus – Teologia Bíblica do Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Gordon Chown, A.G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2011, p.39.
[7] PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta – Libertando o Cristianismo de seu Cativeiro Cultural. Tradução: Luis Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2011, p.53
[8] GRONINGEN, Gerard van. Revelação Messiânica no Antigo Testamento. Tradução: Cláudio Wagner. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p.100.
[9] LONGMAN III, Tremper. Como Ler Gênesis. Márcio Lourenço. São Paulo: Vida Nova, 2009, p.132.
[10] GRONINGEN, Gerard Van. Criação e Consumação – O Reino, a Aliança e o Mediador. Tradução: Denise Meister. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, volume 1, p.91.
[11] PIPA, Joseph. O Dia do Senhor. Tradução: Hope Gordon Silva. São Paulo: Os puritanos, 2000, p. 29.
[12] Cf. GRONINGEN, Gerard Van. Criação e Consumação – O Reino, a Aliança e o Mediador. Tradução: Denise Meister. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, volume 1, p.92

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Autor: João Ricardo Ferreira de França é Ministro da Palavra pela Igreja presbiteriana do Brasil. Atualmente é pastor na Primeira Igreja Presbiteriana de Piripiri – PI. Formou-se em Teologia Reformada no Seminário Presbiteriano do Norte (SPN) em Recife- PE. Foi professor de línguas bíblicas (Grego e Hebraico) no Seminário Presbiteriano Fundamentalista do Brasil (SPFB) Recife – PE. É casado com Géssica Araújo Soares Nascimento de França e é pai de Lucas Luis Nascimento de França.
Fonte: Primeira Igreja Presbiteriana de Piripiri
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