Um argumento lançado contra a Bíblia é que ela apóia a escravidão.
Recebi uma carta de um leitor da nossa revista Biblical Worldview que discorda da minha afirmação que o tipo de escravidão praticado nos Estados Unidos era anti-bíblico pois “roubava homens”. Como você pode ver no parágrafo seguinte, ele defende suas crenças com paixão. Mas ele está correto?
A Bíblia não condena a escravidão. A Bíblia não condena o aborto. A legislação humana não pode tornar legal o que a lei de Deus condena, ou tornar ilegal o que a lei de Deus permite. Quando você condena o que a lei de Deus permite, você é um legalista e peca (Deuteronômio 4:3; Provérbios 30:6; Apocalipse 22:18–19). Quando você permite o que a lei de Deus condena, você é um transgressor e peca também (Êxodo 20:1–17).
Quando você não pode dizer a diferença, então não pode pensar como um cristão.
Eu respondi brevemente que a escravidão praticada neste país antes de 1860 era “roubar homens” (seqüestro). Africanos ocidentais eram seqüestrados, postos em navios, trazidos para as costas da América, vendidos em leilões, e colocados em trabalhos forçados. Reconhece-se que muitos escravos eram tratados com decência em sua chegada e durante o seu cativeiro. Mas não é isso o que se está em questão. Eles ainda eram escravos, em cativeiro contra sua vontade.
Trabalho Forçado
Muitos dos primeiros colonos dessa nação pagaram sua passagem como trabalhadores compulsórios. Trabalho forçado não é anti-bíblico nem anti-constitucional. Um ladrão que fosse incapaz de restituir poderia ser vendido em servidão por seu roubo (Êxodo 22:3b). Mesmo após a abolição da escravatura, o trabalho forçado foi mantido pela Constituição como uma forma legítima de punição: “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição por um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado” (Emenda XIII, Seção 1). Deveríamos, portanto, distinguir entre escravo (roubo de homem) e servo (trabalho forçado). Devemos também manter em mente que a palavra “slave” [escravo] aparece somente uma vez na King James Bible (Jr. 2:14a), assim como a palavra “slaves” [escravos] (Ap. 18:13). A palavra escravidão não aparece em nenhum lugar na King James.[2]
Eu citei Êxodo 21:16 para apoiar minha afirmação que a escravidão, como praticada na América, não pode ser defendida mediante um apelo à Bíblia: “E quem raptar um homem, e o vender, ou for achado na sua mão, certamente será morto.” O escritor da carta defende sua posição alegando que Êxodo 21:16 aplica-se somente aos rapto de hebreus (compare Dt. 24:7).
Robert L. Dabney, o mais articulado defensor de Virgínia e do Sul, discorda: “Dificilmente é necessário dizer que odiamos a injustiça, crueldade e a culpa do comércio de escravos africanos. Ele foi condenado com justiça pela lei pública do Cristianismo… Foi condenado pela lei de Deus. Moisés colocou isso entre os estatutos judiciais dos judeus: ‘E quem raptar um homem, e o vender, ou for achado na sua mão, certamente será morto.’”[3] Não há nenhuma indicação que Êxodo 21:16 tinha somente os israelitas em mente. Se tinha, então o versículo 12 também se aplicaria somente aos israelitas, visto que a sua linguagem é similar à do versículo 16:
“Quem ferir um homem, de modo que este morra, certamente será morto” (21:12).
“E quem raptar um homem, e o vender, ou for achado na sua mão, certamente será morto” (21:16).
James B. Jordan oferece um bom resumo dessas questões envolvidas:
“A Bíblia pune todos os que roubam pessoas com uma pena de morte obrigatória. Em Deuteronômio 24:7, o seqüestro de membros do pacto é particularmente proibido, mas em Êxodo 21:16, todo roubo de homem é proibido. Poderia ser mantido que se lermos o v. 16 no contexto do v. 2, é somente os hebreus que são protegidos e vingados por essa lei. Contudo, o texto diz simplesmente ‘homem’, e não há nenhuma indicação no contexto imediato (vv. 12, 14) que ‘homem’ esteja restrito aos membros do pacto.”[4]
Defensores da escravidão do Sul apelam a Levítico 25:44-46 para defender sua posição pró-escravidão, visto que ela descreve a escravidão de pagãos. Robert L. Dabney baseia seu argumento para a escravidão na passagem de Levítico sem considerar uma mudança em sua aplicação sob a Nova Aliança.[5] A escravidão de estrangeiros era legal em Israel. “Esses pagãos estavam sendo comprados de sua escravidão pactual à uma religião demoníaca. Eles estavam sendo redimidos (comprados de volta). Estavam recebendo uma oportunidade de ouvir o evangelho e vê-lo em operação em famílias que tinham um pacto com Deus. Eles estavam recebendo a oportunidade de renunciar o paganismo e mediante isso escapar da escravidão eterna no lago de fogo.”[6]
A escravidão de nações pagãs sob a Antiga Aliança estava ligada às leis de jubileu descritas no mesmo capítulo. O jubileu foi cumprido em princípio por Jesus (Lucas 4) e abolido historicamente quando Israel quando uma nação deixou de existir com a destruição do seu governo religioso e civil em 70 d.C. A escravidão de nações pagãs estava ligada ao caráter especial da terra de Israel, da mesma forma com que a distribuição da terra de famílias israelitas estava ligada ao caráter redentor especial da terra.
Em adição, os gentios receberam um novo status na Nova Aliança. A vinda de Cristo foi “uma luz de revelação aos gentios” (Lucas 2:32; veja Isaías 42:6; 49:6). Jesus começou Seu ministério público com a leitura de Isaías 61:1, “proclamar liberdade aos cativos” (Lucas 4:18-19). Sabemos que essa liberdade incluiu os gentios: “E anunciará aos gentios a justiça… e no seu nome os gentios esperarão” (Mt. 12:18, 21). Atos mostra que muitos judeus cristãos não tinham aceitado o fato que os gentios estavam inclusos nas promessas do pacto, que eram inicialmente reservadas aos israelitas: “E os fiéis que eram da circuncisão, todos quantos tinham vindo com Pedro, maravilharam-se que o dom do Espírito Santo se derramasse sobre os gentios” (Atos 10:45).
Com o evangelho rompendo o velho odre nacional de Israel, um novo meio de evangelismo estrangeiro começou. Os evangelistas do Novo Testamento deveriam ir às nações estrangeiras, como servos, não como senhores de servos ou seus agentes econômicos, os comerciantes de escravos. Eles deveriam advertir homens e mulheres a se submeterem ao governo de Deus voluntariamente… os cristãos deveriam trazer a mensagem de libertação que Jesus anunciou em Lucas 4.[7]
A história da escravidão dos negros africanos tem sido um impedimento ao evangelho. Em vez de serem pescadores de homens, muitos na igreja apoiam a noção de serem os escravizadores de homens, em particular, homens e mulheres negros, e seus filhos. A Bíblia, incluindo Levítico 25, não apóia a escravização exclusivamente de negros africanos. O racismo parece ser o fator motivador. Gary North escreve: “Escravidão como um sistema chegou à América do Norte no começo do século dezoito, e estava baseada nos preconceitos racistas que cresceram a cada enchimento de navios com negros vitimados. O racismo parece ter sido o fundamento da escravidão, e não o contrário.”[8] Com a vinda de Cristo os cristãos devem pregar o evangelho e fazer discípulos das nações; fazendo delas “escravos de Cristo”, não escravos de outros homens.
O Novo Testamento e a Escravidão
Sabemos que no Novo Testamento Paulo condena os comerciantes de escravos (seqüestradores) em 1 Timóteo 1:10.[9] Apocalipse considera aqueles que fazem tráfico de “escravos e até almas humanas” como sendo imorais e destinados ao juízo (Ap. 18:13, ARA). Em nenhum lugar o Novo Testamento apóia o tráfico de escravos. A carta de Paulo a Filemon não defende a noção que o Novo Testamento tolerava a escravidão. Onésimo era provavelmente um servo que tinha uma dívida para com Filemon. Paulo encoraja o fugitivo Onésimo a retornar para Filemon e encoraja Filemon a soltar Onésimo quando ele, Paulo, chegasse. Paulo promete pagar a Filemon se Onésimo “dever alguma coisa” (Filemon 18). A menção que Paulo faz de uma dívida parece indicar que Onésimo era um trabalhador forçado.
Defendendo o Indefensável
O escritor da carta conclui seu argumento em defesa da escravidão citando Dabney. Robert Dabney, como vimos, odiava “a injustiça, crueldade e a culpa do comércio de escravos africanos.” Então, por que ele continuou a apoiar a posse de escravos? Dabney escreve: “Quando a propriedade foi adquirida pelo último detentor, justa e honestamente; quando, nas últimas transferências, um equivalente justo foi pago por ela, e o último proprietário é inocente de fraude em intenção e no modo real de sua aquisição da propriedade, mais errado seria destruir o seu título, do que deixar o original errado sem reparação. O senso comum diz que, seja qual possa ter sido o título original, um novo e válido surgiu das circunstâncias do caso.”[10]
Dabney apela para o “senso comum” e não à Bíblia, uma clara indicação que ele não tinha um argumento bíblico. Embora o comerciante de escravos possa ter adquirido os escravos por meios imorais, Dabney argumenta, a pessoa que recebe os homens, mulheres e crianças roubados não está ligada à ilegalidade original. Em essência, ele não pode ser considerado responsável pela fraude inicial, visto que comprou a “mercadoria” em boa fé.
Dabney argumenta de forma circular. Como pode a compra de seres humanos, para o propósito de usá-los para o trabalho escravo, ser feita “justa e honestamente”, quando Dabney admite plenamente que quem “originalmente… capturou o africano era alguém excessivamente ímpio”?
O escritor da carta tenta reforçar o argumento de Dabney citando um caso de fraude perpetrado sobre ele. Escreve ele: “Em 1981, um impostor me deu um cheque sem fundo para comprar notas históricas no valor de 2000 dólares, e então vendeu tais notas a outro negociante. Quando pedi para recuperar os dólares desse negociante, o tribunal achou que, embora o criminoso tivesse adquiro-as por fraude, o título tinha sido passado para outro detentor que tinha comprado em boa fé e não poderia agora ser perturbado em sua posse.”
A chave é que o detentor comprou as notas “em boa fé”. Se soubesse que as notas tinham sido roubadas, ele teria sido citado por conspiração com fraude cometida. Aqueles que compravam escravos em leilões nos Estados Unidos sabiam que os escravos eram vítimas seqüestradas. Os donos dos escravos não estavam agindo “em boa fé”, visto que sabiam que quem “originalmente… capturou o africano era alguém excessivamente ímpio”. O negociante de notas não sabia que a primeira transação foi fraudulenta; os donos de escravos sim.
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Notas:
[1] Traduzido em outubro/2008.
[2] Gary North, Tools of Dominion: The Case Laws of Exodus (Institute for Christian Economics, 1990), 121.
[3] Robert L. Dabney, A Def ense of Virginia, [And Through Her, of the South] (New York: Negro University Press, [1867] 1969), 288. Reimpresso pela Sprinkle Publications, Harrisonburg, Virginia, 1977.
[4] James B. Jordan, The Law and the Covenant: An Exposition of Exodus 21–23 (Tyler, TX: Institute for Christian Economics, 1984), 104.
[5] Dabney, A Defense of Virginia, 117–121.
[6] North, Tools of Dominion, 145.
[7] North, Tools of Dominion, 173.
[8] North, Tools of Dominion, 180.
[9] A ARC e ACF trazem “ roubadores de homens”, e a ARA traz “ raptores de homens”. (Nota do tradutor)
[10] Dabney, A Defense of Virginia, 288–289.
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Autor: Gary DeMar
Fonte: American Vision
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto
Via: Monergismo
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