A Escritura é a autoridade final na Igreja. Logo, é necessário que todo intérprete se submeta à Escritura, e dela extraia o ensino, corretamente interpretado, da Palavra de Deus. Entretanto, não podemos pensar que todos lerão a Escritura sem preconceitos teológicos, e que chegarão às mesmas conclusões. Existem diferentes perspectivas hermenêuticas contemporâneas, mas a Hermenêutica Feminista será analisada como um exemplo do que acontece quando se abandona a autoridade final da Escritura.
A Teologia Feminista é um ramo dentro da conhecida Teologia da Libertação. Entretanto, as teólogas feministas em vez de usarem a Bíblia numa interpretação em favor dos pobres, a aplicação dos princípios da libertação é direcionada à mulher como desfavorecida, num ambiente predominantemente de domínio masculino. A Teologia Feminista propõe “refazer toda a teologia a partir do gênero, com a premissa de que toda a teologia ocidental foi construída a partir do domínio que exerce o homem e que, inclusive se encontra na mesma Bíblia.”[1] A interpretação feminista das Escrituras tem o seu ponto de partida num dos seus pressupostos básicos: a teologia deve fundamentar-se sobre a análise da realidade sociopolítica. Ela não começa com o texto e contexto da Escritura Sagrada, mas com o contexto social da mulher, como sendo oprimida numa sociedade de cosmovisão machista.
Todavia, é necessário observar que a articulista Helen Schüngel-Straumann nota que nem todas as teólogas feministas adotam a mesma perspectiva em relação à interpretação da Bíblia. Ela declara que em relação à Bíblia "Carolyn Osiek (em Collins 93s) distingue cinco atitudes: 1. A de uma rejeição total da Bíblia, de que é exemplo a obra de Mary Daly. 2. A de uma interpretação leal, que vê a Bíblia como revelação/palavra de Deus e que não admite dúvida a este respeito. Uma 3ª abordagem é a que ela denomina de revisionista. Nela é criticado unicamente o enfoque androcêntrico, voltando a ser prestigiadas as tradições feministas esquecidas. Como exemplo desta linha a autora menciona Phyllis Trible. A 4ª abordagem é descrita como sublimacionista, onde os preconceitos ideológicos (como o de que o feminino seria superior ao masculino) desempenham um papel importante e onde predominam as interpretações simbólicas-isoladas de que qualquer contexto político-social. Como 5ª abordagem, que ela vê como a mais importante em nossos dias, Osiek descreve a interpretação da Bíblia segundo a teologia feminista da libertação, a que associa os nomes de Rosemary Radford, Letty M. Russell e Elisabeth Schüssler Fiorenza. No espaço lingüístico alemão não se pode deixar de mencionar aqui Luise Schottroff."[2]
Para a Hermenêutica Feminista a adoção do pressuposto subjetivo da “opressão” é essencial na interpretação das Escrituras. Loren Wilkinson observa que a teóloga feminista “Elizabeth Schüssller Fiorenza, por exemplo, em Bread, Not Stones, argumenta que as mulheres devem tomar como ponto de partida a definição da sua situação de opressão, e depois abrir a sua Bíblia, a fim de descobrir o meio de alcançar a libertação.”[3] Este subjetivismo é uma característica das novas hermenêuticas que surgiram no século XX. Moisés Silva observa que “se há algo diferente na hermenêutica contemporânea é justamente a ênfase que ela dá à subjetividade e relatividade da interpretação.”[4] A Hermenêutica Feminista não é uma exceção entre as novas hermenêuticas que surgiram no século XX.
Além da “opressão”, outro pressuposto desta perspectiva é que a “experiência” feminina determina o resultado e a ação teológica. Christine Schaumberger observa que “o que é novo e especificamente feminista não é, pois, o realce sobre a categoria teológica da experiência, mas sim o concentrar-se no perceber e no refletir as experiências femininas. Experiências femininas é o ponto de partida da teologia feminista, e a medida para a crítica, o engajamento e o compromisso, para a criatividade re-visionária.”[5] Entretanto, Schaumberger não define o que ela quer dizer teologicamente com “experiência” (do alemão erfahrung) dificultando a análise da sua tese. Na nova hermenêutica a interpretação e sistematização do ensino não é algo extraído das Escrituras, mas da experiência subjetiva do intérprete que impõe sobre o texto sagrado a sua opinião. Robert H. Stein conclui que “em razão disso, há ‘leituras’ ou interpretações marxistas, feministas, liberais, igualitárias, evangélicas ou arminianas do mesmo texto. Ou seja, para esta corrente os vários significados legítimos podem ser extraídos mediante a concepção de cada intérprete.”[6] A premissa de Schaumberger ignora, ou despreza que o fator determinante do significado do texto, é o seu autor. A passagem significa aquilo que o autor original, conscientemente, quis dizer ao produzir o texto.
Não deve ser esquecido de que o texto é resultado duma ação sobrenatural do Espírito Santo inspirando o autor bíblico. A formulação teológica não depende da experiência de gênero do indivíduo, mas da precisa exegese e sistematização das informações extraídas a partir das Escrituras. O apóstolo Pedro foi claro ao observar que “antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito de Deus” (2 Pe 1:20-21, NVI). Declarar que este, ou aquele autor bíblico é machista, é o mesmo que dizer que o Espírito Santo é machista!
John Frame comenta que “o livro She Who Is de Elizabeth Johnson é um amplo tratado acerca da doutrina de Deus, tem como sua tese principal a necessidade de se usar uma linguagem feminina (mais ou menos exclusivamente) com referência a Deus.”[7] Em outro lugar Frame menciona que “mas a [teóloga] feminista poderia replicar aqui que desde que Deus não é literalmente macho, e a Escritura contêm algumas figuras femininas assim como figuras masculinas, seria aceitável falar livremente de Deus tanto em termos masculinos como femininos. Johnson pergunta 'se não significa que Deus é macho quando uma figura masculina é usada, o porque da objeção, quando figuras femininas são apresentadas?'”[8]
Atualmente têm-se exigido o uso de uma linguagem “politicamente correta” na formulação teológica. Entre alguns teólogos, inclusive evangélicos, têm-se evitado o uso de palavras de cunho sexistas, isto é, dando-se a preferência por uma linguagem que seja inclusiva, e que não destaque nem favoreça o gênero masculino.[9] A crítica de John Frame é relevante “uma freqüente sugestão de compromisso é que eliminemos toda sexualidade na distinção lingüística, entre macho e fêmea, ao nos referirmos a Deus. Em vez de chamar Deus de nosso Pai, poderíamos falar de nosso Parente ou Criador. Uma linguagem unissex, todavia, sugere inevitavelmente que Deus é impessoal, o que é completamente inaceitável de um ponto de vista bíblico. Certamente ao eliminar Pai em favor de termos mais abstratos eliminaria algo muito precioso aos cristãos.”[10]
A importância teológica da linguagem masculina usada para se referir a Deus se baseia no fato de que foi Ele mesmo que se revelou assim. Quando as teólogas feministas questionam o modo como os autores da Escritura descreveram o ser e os atos de Deus numa linguagem predominantemente de gênero masculino, elas não estão ignorando a doutrina da revelação, mas estão reformulando esta doutrina. O que está em questão não é apenas o como os autores descreveram Deus, mas como este conhecimento divino chegou até eles (epistemologia/revelação) e como se deu o processo de registro desta revelação (inspiração).
O problema da Hermenêutica Feminista não é apenas quais princípios metodológicos e premissas adotar, mas que tipo de Deus/Deusa querem adorar. As lentes feministas produzem uma releitura em toda a cosmovisão destas teólogas. Não é possível crer que é uma questão de ênfase teológica, ou mera perspectiva de gênero. Tal conclusão seria irresponsável e superficial acerca desta escola hermenêutica.[11]
______________
Notas:
[1] Alberto Fernando Roldán, Para que serve a teologia? (Curitiba, Editora Descoberta, 2000), p. 178.
[2] Helen Schüngel-Straumann, Bíblia in: Elizabeth Gossmann et al., orgs., Dicionário de Teologia Feminista (Petrópolis, Editora Vozes, 1997), pp. 210-214.
[3] Loren Wilkinson, A Hermenêutica e a Reação Pós-Moderna Contra a “Verdade” in: Elmer Dyck, ed., Ouvindo a Deus (São Paulo, Shedd Publicações, 2001), p. 160.
[4] Moisés Silva, Visões Contemporâneas da Interpretação Bíblica in: Walter C. Kaiser, Jr. & Moisés Silva, Introdução à Hermenêutica Bíblica (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2002), p. 233.
[5] Christine Schaumberger, Experiência in: Elizabeth Gossmann et al., orgs., Dicionário de Teologia Feminista (Petrópolis, Editora Vozes, 1997), p. 183.
[6] Robert H. Stein, Guia Básico para a Interpretação da Bíblia (Rio de Janeiro, CPAD, 1999), p. 23.
[7] John Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg, P&R Publishing, 2002), p. 378. Frame está se referindo à Elizabeth A. Johnson, She Who Is (New York, Crossroad Publishing, 1996), p. 34. Este livro se encontra publicado em português com o título de Aquela que é (Petrópolis, Editora Vozes, 1995). Para a leitura de uma abordagem na mesma linha que Elizabeth A. Jonhson na teologia prática, bíblica, histórica e sistemática veja o artigo Deus/Deusa in: Elizabeth Gossmann et al., orgs., Dicionário de Teologia Feminista (Petrópolis, Editora Vozes, 1997), pp. 92-110.
[8] John Frame, The Doctrine of God, p. 383.
[9] Como exemplo de um caso de orientação quanto ao uso de uma linguagem inclusiva, não sexista, veja o site www.martinus.com.br/pastoral/carta4.html (acessado 04/06/2007).
[10] John Frame, The Doctrine of God, p. 385-386.
[11] Para uma consulta de uma teóloga brasileira sobre Hermenêutica Feminista acesse in: http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/I/Isabel_Aparecida_Felix_24_A.pdf .
***
Autor: Rev. Ewerton B. Tokashiki
Fonte: Estudantes de Teologia