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O filósofo alemão Martin Heidegger afirmou que a questão básica visada pela Metafísica é: “Por que existe algo ao invés de nada?”. Mediante tal definição, diz o filósofo, a ideia de uma Metafísica Cristã é um “círculo quadrado”[1], uma contradição em termos. Por quê? Porque o cristão já sabe, de antemão, a resposta para a questão. Sabemos que há algo ao invés de nada porque Deus criou o mundo.
A despeito de nossa opinião acerca da definição heideggeriana de Metafísica, nós podemos concordar que ele estava certo a respeito de uma coisa. A crença de que Deus criou o mundo, que a realidade é – em um sentido fundamental – criação, é fundamental para o pensamento cristão.
Essa é uma confissão cristã ecumênica[2]. Entretanto, talvez não exista tradição cristã na qual o ensino a respeito da criação possua um papel fundamental como na vertente que parte da Escritura, passando por Irineu, Agostinho, Calvino e Kuyper até ao Comment[3]. Nesta corrente da tradição cristã, a criação é concebida de uma maneira particularmente abrangente, e mesmo a salvação é, em larga medida, entendida como a recuperação da criação tal como originalmente pretendida por Deus. A criação é algo fundacional para todas as coisas. Mais ainda, a criação é boa de um modo primordial e profundo – tão profundo, de fato, que bondade da criação continua a se manifestar mesmo em meio à terrível perversão.
Diferentemente de outras compreensões do Cristianismo ortodoxo, essa veia da tradição supramencionada não vê a redenção como algo que está em oposição à criação (como o é na Teologia Dialética), ou como uma complementação ou realização dela (como em algumas compreensões do Tomismo), ou como paralela a ela, sem nenhuma ligação intrínseca (como nas várias teorias dos “dois reinos”[4]); antes, a redenção é vista como uma ação que restaura e renova a criação. Dessa forma, a criação, encarnando a intenção que Deus mantinha desde o princípio, é o próprio objeto da salvação em Cristo. O ponto fulcral da Redenção é a restauração da vida e do mundo à forma planejada para eles desde o princípio. Salvação implica em re-criação; a graça restaura a natureza.
Contudo, a fim de compreendermos isso apropriadamente, precisamos ter uma visão do conceito de criação muito mais abrangente e variegada do que aquela do uso comum entre os cristãos. A primeira coisa que vem à mente da maioria das pessoas quando tratamos a respeito da criação é o assim chamado “mundo natural” – isto é, o mundo físico e biológico. Logo pensamos nas estrelas e galáxias, assim como nas moléculas e átomos, e nas árvores e flores, assim como nos pássaros e feras. Mas essa é uma visão extremamente limitada da criação. Na visão bíblica, a criação é tudo aquilo que Deus ordenou que viesse à existência, o que Ele colocou em prática como parte da Sua criativa mão-de-obra humana[5]. Sem dúvida isso inclui a grande variedade de entidades e processos físicos, bem como a enorme diversidade da flora e da fauna que Deus criou “segundo suas espécies”; todavia, abrange muito mais do que isso. A criação inclui realidades humanas tais como a família e outras instituições sociais, a presença da beleza no mundo, a habilidade para apreciar tal beleza, os fenômenos da ternura e do riso, a capacidade de conceituação e raciocínio, a experiência da alegria e o senso de justiça. Uma variedade quase inconcebível de objetos, instituições, relacionamentos e fenômenos são parte da rica textura da criação de Deus.
É um fato marcante que a religião bíblica não é a única que apresenta tal visão. Embora exista um senso no qual a ideia de criação (entendida como um arranjo ordenado e contingente da realidade posto em movimento por um Deus transcendental) seja única no pensamento bíblico – certamente os gregos nunca conceberam isso –, a ideia geral de uma ordem cósmica divinamente sancionada, que engloba tanto o mundo natural quanto a sociedade e a vida humana, é amplamente difundida dentre os povos.
Por exemplo, já foi dito que a noção de “criação” presente em outras nações do antigo Oriente Próximo (na Mesopotâmia, Egito e nos arredores) referia-se primariamente ao modo pelo qual a sociedade fora organizada. Os vários “mitos de criação”, embora não excluíssem o mundo físico e biológico, foram inicialmente engendrados para explicar o mundo humano com sua cultura e sociedade, as instituições como a realeza, e o sacerdócio. O trabalho de Richard Clifford a respeito desses antigos mitos de criação é particularmente iluminador nesse sentido.
Contudo, a noção de uma ordem do mundo divino toda-abrangente se encontra muito mais difundida no antigo Oriente Próximo. Todas as culturas virtualmente possuem mitos e religiões que pressupõem uma ordem, e que relaciona tal ordem, em primeiro lugar, com a ordenação da sociedade humana. A Religião Comparada e a Antropologia Cultural se deparam com essa ideia de uma ordem universal – na qual a humanidade e todas as suas manifestações culturais se ajustam perfeitamente como um bebê no útero – em todas as sociedades humanas, virtualmente. As grandes exceções são as sociedades moldadas pela linhagem vigente, desde a Renascença europeia, das filosofias e ideologias seculares do Ocidente. Tais sociedades criaram uma lacuna entre o mundo natural e o mundo humano, de forma que os padrões da vida humana e cultural não são mais buscados em uma ordem externa dada, mas, sim, no próprio sujeito, que produz sua própria ordem a partir de sua própria autoridade.
Tudo isso para dizer que a ideia bíblica de criação, que engloba muito mais do que o mundo natural, não é, de maneira alguma, peculiar, visto a partir de uma perspectiva da História universal. O que de fato é peculiar a respeito do conceito bíblico é, antes, o Criador transcendente e soberano que faz tudo acontecer, e o fato de que Este Criador realiza Sua obra sem qualquer material preexistente. A criação bíblica é uma creation ex nihilo, a criação a partir do “nada”[6], o que significa, é claro, uma criação que não é realizada a partir de coisa alguma, sem qualquer tipo de matérias-primas. Deus simplesmente falou e as coisas passaram a existir.
Consequentemente, de um ponto de vista amplamente cultural e histórico, não é de todo surpreendente que a Bíblia inclua elementos como a ordem política ou a instituição do casamento como coisas criadas por Deus – como partes daquilo que Ele ordenou desde o princípio. Nem deveríamos concluir, a partir de textos bíblicos que mencionam a ordem política e o casamento (tenho em mente aqui principalmente Romanos 13:1, 1 Pedro 2:13 e 1 Timóteo 4:3-4), que estas sejam as únicas instituições sociais e realidades culturais que pertencem à disposição das coisas por Deus ordenada. São simplesmente ilustrações incidentais de uma verdade geral, adotada por toda a Escritura, segundo a qual nada, literalmente falando, é possível sem o poder criativo e ordenador de Deus, o qual estabelece a lei para as criaturas e as relações e fenômenos criados em toda a sua vasta variedade.
É especialmente a ideia de lei criacional que clarifica a concepção bíblica de criação. Como um rei soberano, Deus decreta Suas leis (Seus decretos, Seus estatutos, Suas ordenanças, Suas palavras) para tudo aquilo que existe. A realidade é constituída pelo Sua criativa palavra de comando. Consequentemente, tudo é criacional no sentido de que é tanto constituído e normatizado pelo fiat[7] divino. Isso se aplica tanto ao instinto do pássaro de construir seu ninho quando aos princípios da jurisprudência ou ao pensamento lógico. Evidentemente, no caso das dimensões da criação que são tipicamente humanas, as normas e padrões que são postos em prática por Deus também exigem a responsabilidade da implementação humana, e por isso variam no seu desenvolvimento em tempos e locais diferentes.
É difícil – na verdade, impossível – tratar cristãmente da criação abstraindo de duas outras categorias fundamentais da narrativa bíblica: pecado e salvação. Pecado significa a distorção da criação, e salvação a sua recuperação em Cristo. Isso quer dizer que, na vida cristã redimida, a criação retorna de modo “vingativo”, por assim dizer. É na glória ricamente urdida da vida humana criada, na qual mães cantam canções de ninar para seus bebês, e na qual crianças correm pelo simples prazer de estarem se deslocando rapidamente, que Deus quer ser glorificado por meio de nosso serviço e testemunho dedicados a Ele, de forma que todo o mundo possa ver o que é a verdadeira vida humana criada, apesar das cicatrizes e flagelos do pecado e da morte. Isso se aplica às nossas idas ao cinema e à produção cinematográfica; às nossas festas e aos nossos exercícios filosóficos; à nossa imaginação e à nossa determinação.
A criação se constitui como a trama e a urdidura[8] de nossas vidas diárias – e em Cristo ela se torna gloriosa. Nós devemos ser, individual e comunitariamente, os “pôsteres” do Reino – a criação regenerada – de Jesus Cristo. Quando o Apóstolo Paulo diz que a Igreja é a “coluna e baluarte da verdade” (1 Timóteo 3:15), ele certamente não quer com isso dizer que nós, como povo de Deus, de alguma forma asseguramos ou sustentamos a verdade divina. Pelo contrário, o que a imagem utilizada pelo Apóstolo transmite é que nós, como povo de Deus, somos coletivamente os muros e postes que mantiveram os grafites do mundo antigo [o mundo criado originalmente bom], enviando mensagens para todos aqueles que passam por nós. Nós devemos ser os letreiros do Evangelho na extraordinária simplicidade de nossas vidas – extraordinária por causa do poder renovador do Espírito Santo, e simples por causa do material criacional comum de nossas vidas cotidianas. É nesse senso profundamente terreno e mundano que a criação é, para usar a frase cativante de Calvino, o teatro da glória de Deus.
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Notas:
[1] No original “wooden iron”, termo que, se traduzido ipsis litteris, seria “ferro de madeira”. Na verdade, é utilizado na filosofia retórica para designar a impossibilidade de um argumento oposto, isto é, duas palavras contraditórias que aparecem juntas numa mesma proposição, geralmente um adjetivo que se opõe ao substantivo, por exemplo, “gelo quente”, um “fogo frio”, “luz escura”, etc. Na filosofia grega antiga, o termo utilizado para designar esse equívoco lógico era σιδηροξύλον (sideroxylon). O autor do artigo afirma que, uma vez que para Heiddeger a tarefa da Metafísica é a investigação dos fundamentos últimos da Ontologia, a Filosofia Cristã não faz sentido para a Metafísica Heiddegeriana, pois o cristão já parte do pressuposto que Deus é a fonte e fundamento do Ser. Na verdade, conforme afirmar alguns apologistas pressuposicionalistas no chamado Argumento Transcendental, a menos que tomemos Deus como pressuposto básico, é impossível formularmos sequer uma questão, pois uma vez que nossa existência (e de todo o cosmos) é, por definição, contingente, é preciso que haja um ente necessário do qual derivam todos os demais. Este Ente Necessário, segundo Leibniz já formulou, é evidentemente Deus.
[2] Ecumênico é aqui utilizado não para se referir ao movimento intereclesial e interdenominacional que busca a interação efetiva entre líderes, sacerdotes e fieis de diferentes confissões, mas, sim, ao fato de que todas as tradições cristãs (Protestante, Católica Romana, Ortodoxa) aceitam, confessam e pregam a respeito da Criação a partir das mãos de Deus, conforme especificado na primeira linha do Credo dos Apóstolos – símbolo aceito e defendido por todas as principais tradições cristãs –, da seguinte maneira: “Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra”.
[3] Comment: public theology for the common good é o nome do periódico calvinista no qual o presente artigo foi originalmente publicado. Alguns artigos estão disponíveis on-line: http://www.cardus.ca/comment/
[4] A teoria dos “dois reinos” diz respeito à visão quase maniqueístas que algumas tradições cristãs (especialmente os chamados “Católicos Tradicionalistas, que não aceitam o Concílio Vaticano II, e algumas correntes pentecostais) sustentam, concebendo a Igreja como estando em guerra acirrada e perpétua contra o mundo. Para eles, portanto, o mundo, ao invés de ser o “palco da glória de Deus” (Calvino) – onde os atributos invisíveis de Deus e Seu eterno poder se revelam (Romanos 1:18ss) e a plataforma, por excelência, onde se desenrola o drama da salvação –, é, por definição, o reino de Satanás no qual a corrupção está irremediavelmente arraigada. Essa concepção, mais gnóstica do que cristã, não leva em conta que a Redenção efetuada por Cristo abrange, estende-se e redime todas as áreas da criação: não apenas o mundo físico, mas também o homem em sua inteireza e todas suas criações culturais, artísticas, intelectuais, afetivas e sociais. Portanto, para o cristão, o mundo se torna, cada vez mais, o Reino dos Céus, o qual há de ser regido pelo cetro de Cristo e onde Ele será de todo glorificado.
[5] Esta imagem do homem como trabalhador na propriedade de Deus retrata um dos aspectos cruciais no pensamento neo-calvinista kuyperiano (de Abraham Kuyper), a saber, o Mandato Cultural – a ordem dada ao homem por Deus, logo nos capítulos iniciais de Gênesis, para dominar e sujeitar a natureza, bem como cultivar e guardar o jardim. É interessante notar que o Mandato Cultural relaciona-se não somente com a produção material, mas também com a cultural. Uma vez que a criação foi criada num estado "muito bom" (diferentemente do que apregoa a concepção gnóstica – que associa a materialidade ao mal – infelizmente tão presente no meio evangélico brasileiro), existe um potencial inerente à ordem criada que consequentemente também é bom. “O ‘Mandato Cultural’ de Gênesis 1.28 e 2.15 nos diz que a humanidade tem a missão de aproveitar esta potencialidade para desenvolver a cultura como Deus planejou. Tecnologia, cultura popular, o progresso, e sim, até na política, devem ser entendidas como parte da ordem original de Deus criou.” (o trecho entre aspas foi extraído do site:
http://abrahamkuyper.blogspot.com.br/2010/08/cosmovisao-kuyperiana.html).
[6] Lembrando apenas que o conceito filosófico de Nada aqui utilizado, ao contrário do que prevalece equivocadamente no senso comum não diz respeito ao vazio nem ao vácuo e, muito menos, à ausência de entes em determinado espaço (como quando se diz a respeito de um recipiente vazio que “ele não contém nada”). Na verdade, o nada não existe, pois se existisse não seria nada. Daí a fórmula clássica geralmente atribuída a Parmênides: Ex nihilo nihil fit (do nada, nada vem). A expressão retrata um princípio metafísico que afirma que o Ser não pode provir do não-Ser. Sendo assim, quando da criação, Deus não apenas deu forma aos materiais primordiais, mas também criou a partir do nada tais materiais. Portanto, “pela fé reconhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus e que as coisas visíveis se originaram do invisível.” (Hebreus 11:3).
[7] Referência à frase latina “fiat lux” (Haja luz), expressa por Deus na criação, conforme relatado em Gênesis 1:3. Diz respeito, portanto, ao poder criativo da Palavra de Deus – “o Deus que dá vida aos mortos e chama à existência as coisas que estão no nada.” (Romanos 4:17).
[8] No original: warp and woof, nomes dados aos fios nos tecidos, compostos da urdidura (os fios que são trançados longitudinalmente) e a trama (os fios que são trançados de modo cruciforme), gerando assim a tessitura. Portanto, figurativamente, a expressão também é usada para se referir à estrutura fundamental de todo e qualquer sistema ou processo.
“Nada, literalmente, é possível sem o poder ordenador e criativo de Deus”
A despeito de nossa opinião acerca da definição heideggeriana de Metafísica, nós podemos concordar que ele estava certo a respeito de uma coisa. A crença de que Deus criou o mundo, que a realidade é – em um sentido fundamental – criação, é fundamental para o pensamento cristão.
Essa é uma confissão cristã ecumênica[2]. Entretanto, talvez não exista tradição cristã na qual o ensino a respeito da criação possua um papel fundamental como na vertente que parte da Escritura, passando por Irineu, Agostinho, Calvino e Kuyper até ao Comment[3]. Nesta corrente da tradição cristã, a criação é concebida de uma maneira particularmente abrangente, e mesmo a salvação é, em larga medida, entendida como a recuperação da criação tal como originalmente pretendida por Deus. A criação é algo fundacional para todas as coisas. Mais ainda, a criação é boa de um modo primordial e profundo – tão profundo, de fato, que bondade da criação continua a se manifestar mesmo em meio à terrível perversão.
Diferentemente de outras compreensões do Cristianismo ortodoxo, essa veia da tradição supramencionada não vê a redenção como algo que está em oposição à criação (como o é na Teologia Dialética), ou como uma complementação ou realização dela (como em algumas compreensões do Tomismo), ou como paralela a ela, sem nenhuma ligação intrínseca (como nas várias teorias dos “dois reinos”[4]); antes, a redenção é vista como uma ação que restaura e renova a criação. Dessa forma, a criação, encarnando a intenção que Deus mantinha desde o princípio, é o próprio objeto da salvação em Cristo. O ponto fulcral da Redenção é a restauração da vida e do mundo à forma planejada para eles desde o princípio. Salvação implica em re-criação; a graça restaura a natureza.
Contudo, a fim de compreendermos isso apropriadamente, precisamos ter uma visão do conceito de criação muito mais abrangente e variegada do que aquela do uso comum entre os cristãos. A primeira coisa que vem à mente da maioria das pessoas quando tratamos a respeito da criação é o assim chamado “mundo natural” – isto é, o mundo físico e biológico. Logo pensamos nas estrelas e galáxias, assim como nas moléculas e átomos, e nas árvores e flores, assim como nos pássaros e feras. Mas essa é uma visão extremamente limitada da criação. Na visão bíblica, a criação é tudo aquilo que Deus ordenou que viesse à existência, o que Ele colocou em prática como parte da Sua criativa mão-de-obra humana[5]. Sem dúvida isso inclui a grande variedade de entidades e processos físicos, bem como a enorme diversidade da flora e da fauna que Deus criou “segundo suas espécies”; todavia, abrange muito mais do que isso. A criação inclui realidades humanas tais como a família e outras instituições sociais, a presença da beleza no mundo, a habilidade para apreciar tal beleza, os fenômenos da ternura e do riso, a capacidade de conceituação e raciocínio, a experiência da alegria e o senso de justiça. Uma variedade quase inconcebível de objetos, instituições, relacionamentos e fenômenos são parte da rica textura da criação de Deus.
É um fato marcante que a religião bíblica não é a única que apresenta tal visão. Embora exista um senso no qual a ideia de criação (entendida como um arranjo ordenado e contingente da realidade posto em movimento por um Deus transcendental) seja única no pensamento bíblico – certamente os gregos nunca conceberam isso –, a ideia geral de uma ordem cósmica divinamente sancionada, que engloba tanto o mundo natural quanto a sociedade e a vida humana, é amplamente difundida dentre os povos.
Por exemplo, já foi dito que a noção de “criação” presente em outras nações do antigo Oriente Próximo (na Mesopotâmia, Egito e nos arredores) referia-se primariamente ao modo pelo qual a sociedade fora organizada. Os vários “mitos de criação”, embora não excluíssem o mundo físico e biológico, foram inicialmente engendrados para explicar o mundo humano com sua cultura e sociedade, as instituições como a realeza, e o sacerdócio. O trabalho de Richard Clifford a respeito desses antigos mitos de criação é particularmente iluminador nesse sentido.
Contudo, a noção de uma ordem do mundo divino toda-abrangente se encontra muito mais difundida no antigo Oriente Próximo. Todas as culturas virtualmente possuem mitos e religiões que pressupõem uma ordem, e que relaciona tal ordem, em primeiro lugar, com a ordenação da sociedade humana. A Religião Comparada e a Antropologia Cultural se deparam com essa ideia de uma ordem universal – na qual a humanidade e todas as suas manifestações culturais se ajustam perfeitamente como um bebê no útero – em todas as sociedades humanas, virtualmente. As grandes exceções são as sociedades moldadas pela linhagem vigente, desde a Renascença europeia, das filosofias e ideologias seculares do Ocidente. Tais sociedades criaram uma lacuna entre o mundo natural e o mundo humano, de forma que os padrões da vida humana e cultural não são mais buscados em uma ordem externa dada, mas, sim, no próprio sujeito, que produz sua própria ordem a partir de sua própria autoridade.
Tudo isso para dizer que a ideia bíblica de criação, que engloba muito mais do que o mundo natural, não é, de maneira alguma, peculiar, visto a partir de uma perspectiva da História universal. O que de fato é peculiar a respeito do conceito bíblico é, antes, o Criador transcendente e soberano que faz tudo acontecer, e o fato de que Este Criador realiza Sua obra sem qualquer material preexistente. A criação bíblica é uma creation ex nihilo, a criação a partir do “nada”[6], o que significa, é claro, uma criação que não é realizada a partir de coisa alguma, sem qualquer tipo de matérias-primas. Deus simplesmente falou e as coisas passaram a existir.
Consequentemente, de um ponto de vista amplamente cultural e histórico, não é de todo surpreendente que a Bíblia inclua elementos como a ordem política ou a instituição do casamento como coisas criadas por Deus – como partes daquilo que Ele ordenou desde o princípio. Nem deveríamos concluir, a partir de textos bíblicos que mencionam a ordem política e o casamento (tenho em mente aqui principalmente Romanos 13:1, 1 Pedro 2:13 e 1 Timóteo 4:3-4), que estas sejam as únicas instituições sociais e realidades culturais que pertencem à disposição das coisas por Deus ordenada. São simplesmente ilustrações incidentais de uma verdade geral, adotada por toda a Escritura, segundo a qual nada, literalmente falando, é possível sem o poder criativo e ordenador de Deus, o qual estabelece a lei para as criaturas e as relações e fenômenos criados em toda a sua vasta variedade.
É especialmente a ideia de lei criacional que clarifica a concepção bíblica de criação. Como um rei soberano, Deus decreta Suas leis (Seus decretos, Seus estatutos, Suas ordenanças, Suas palavras) para tudo aquilo que existe. A realidade é constituída pelo Sua criativa palavra de comando. Consequentemente, tudo é criacional no sentido de que é tanto constituído e normatizado pelo fiat[7] divino. Isso se aplica tanto ao instinto do pássaro de construir seu ninho quando aos princípios da jurisprudência ou ao pensamento lógico. Evidentemente, no caso das dimensões da criação que são tipicamente humanas, as normas e padrões que são postos em prática por Deus também exigem a responsabilidade da implementação humana, e por isso variam no seu desenvolvimento em tempos e locais diferentes.
É difícil – na verdade, impossível – tratar cristãmente da criação abstraindo de duas outras categorias fundamentais da narrativa bíblica: pecado e salvação. Pecado significa a distorção da criação, e salvação a sua recuperação em Cristo. Isso quer dizer que, na vida cristã redimida, a criação retorna de modo “vingativo”, por assim dizer. É na glória ricamente urdida da vida humana criada, na qual mães cantam canções de ninar para seus bebês, e na qual crianças correm pelo simples prazer de estarem se deslocando rapidamente, que Deus quer ser glorificado por meio de nosso serviço e testemunho dedicados a Ele, de forma que todo o mundo possa ver o que é a verdadeira vida humana criada, apesar das cicatrizes e flagelos do pecado e da morte. Isso se aplica às nossas idas ao cinema e à produção cinematográfica; às nossas festas e aos nossos exercícios filosóficos; à nossa imaginação e à nossa determinação.
A criação se constitui como a trama e a urdidura[8] de nossas vidas diárias – e em Cristo ela se torna gloriosa. Nós devemos ser, individual e comunitariamente, os “pôsteres” do Reino – a criação regenerada – de Jesus Cristo. Quando o Apóstolo Paulo diz que a Igreja é a “coluna e baluarte da verdade” (1 Timóteo 3:15), ele certamente não quer com isso dizer que nós, como povo de Deus, de alguma forma asseguramos ou sustentamos a verdade divina. Pelo contrário, o que a imagem utilizada pelo Apóstolo transmite é que nós, como povo de Deus, somos coletivamente os muros e postes que mantiveram os grafites do mundo antigo [o mundo criado originalmente bom], enviando mensagens para todos aqueles que passam por nós. Nós devemos ser os letreiros do Evangelho na extraordinária simplicidade de nossas vidas – extraordinária por causa do poder renovador do Espírito Santo, e simples por causa do material criacional comum de nossas vidas cotidianas. É nesse senso profundamente terreno e mundano que a criação é, para usar a frase cativante de Calvino, o teatro da glória de Deus.
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Notas:
[1] No original “wooden iron”, termo que, se traduzido ipsis litteris, seria “ferro de madeira”. Na verdade, é utilizado na filosofia retórica para designar a impossibilidade de um argumento oposto, isto é, duas palavras contraditórias que aparecem juntas numa mesma proposição, geralmente um adjetivo que se opõe ao substantivo, por exemplo, “gelo quente”, um “fogo frio”, “luz escura”, etc. Na filosofia grega antiga, o termo utilizado para designar esse equívoco lógico era σιδηροξύλον (sideroxylon). O autor do artigo afirma que, uma vez que para Heiddeger a tarefa da Metafísica é a investigação dos fundamentos últimos da Ontologia, a Filosofia Cristã não faz sentido para a Metafísica Heiddegeriana, pois o cristão já parte do pressuposto que Deus é a fonte e fundamento do Ser. Na verdade, conforme afirmar alguns apologistas pressuposicionalistas no chamado Argumento Transcendental, a menos que tomemos Deus como pressuposto básico, é impossível formularmos sequer uma questão, pois uma vez que nossa existência (e de todo o cosmos) é, por definição, contingente, é preciso que haja um ente necessário do qual derivam todos os demais. Este Ente Necessário, segundo Leibniz já formulou, é evidentemente Deus.
[2] Ecumênico é aqui utilizado não para se referir ao movimento intereclesial e interdenominacional que busca a interação efetiva entre líderes, sacerdotes e fieis de diferentes confissões, mas, sim, ao fato de que todas as tradições cristãs (Protestante, Católica Romana, Ortodoxa) aceitam, confessam e pregam a respeito da Criação a partir das mãos de Deus, conforme especificado na primeira linha do Credo dos Apóstolos – símbolo aceito e defendido por todas as principais tradições cristãs –, da seguinte maneira: “Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra”.
[3] Comment: public theology for the common good é o nome do periódico calvinista no qual o presente artigo foi originalmente publicado. Alguns artigos estão disponíveis on-line: http://www.cardus.ca/comment/
[4] A teoria dos “dois reinos” diz respeito à visão quase maniqueístas que algumas tradições cristãs (especialmente os chamados “Católicos Tradicionalistas, que não aceitam o Concílio Vaticano II, e algumas correntes pentecostais) sustentam, concebendo a Igreja como estando em guerra acirrada e perpétua contra o mundo. Para eles, portanto, o mundo, ao invés de ser o “palco da glória de Deus” (Calvino) – onde os atributos invisíveis de Deus e Seu eterno poder se revelam (Romanos 1:18ss) e a plataforma, por excelência, onde se desenrola o drama da salvação –, é, por definição, o reino de Satanás no qual a corrupção está irremediavelmente arraigada. Essa concepção, mais gnóstica do que cristã, não leva em conta que a Redenção efetuada por Cristo abrange, estende-se e redime todas as áreas da criação: não apenas o mundo físico, mas também o homem em sua inteireza e todas suas criações culturais, artísticas, intelectuais, afetivas e sociais. Portanto, para o cristão, o mundo se torna, cada vez mais, o Reino dos Céus, o qual há de ser regido pelo cetro de Cristo e onde Ele será de todo glorificado.
[5] Esta imagem do homem como trabalhador na propriedade de Deus retrata um dos aspectos cruciais no pensamento neo-calvinista kuyperiano (de Abraham Kuyper), a saber, o Mandato Cultural – a ordem dada ao homem por Deus, logo nos capítulos iniciais de Gênesis, para dominar e sujeitar a natureza, bem como cultivar e guardar o jardim. É interessante notar que o Mandato Cultural relaciona-se não somente com a produção material, mas também com a cultural. Uma vez que a criação foi criada num estado "muito bom" (diferentemente do que apregoa a concepção gnóstica – que associa a materialidade ao mal – infelizmente tão presente no meio evangélico brasileiro), existe um potencial inerente à ordem criada que consequentemente também é bom. “O ‘Mandato Cultural’ de Gênesis 1.28 e 2.15 nos diz que a humanidade tem a missão de aproveitar esta potencialidade para desenvolver a cultura como Deus planejou. Tecnologia, cultura popular, o progresso, e sim, até na política, devem ser entendidas como parte da ordem original de Deus criou.” (o trecho entre aspas foi extraído do site:
http://abrahamkuyper.blogspot.com.br/2010/08/cosmovisao-kuyperiana.html).
[6] Lembrando apenas que o conceito filosófico de Nada aqui utilizado, ao contrário do que prevalece equivocadamente no senso comum não diz respeito ao vazio nem ao vácuo e, muito menos, à ausência de entes em determinado espaço (como quando se diz a respeito de um recipiente vazio que “ele não contém nada”). Na verdade, o nada não existe, pois se existisse não seria nada. Daí a fórmula clássica geralmente atribuída a Parmênides: Ex nihilo nihil fit (do nada, nada vem). A expressão retrata um princípio metafísico que afirma que o Ser não pode provir do não-Ser. Sendo assim, quando da criação, Deus não apenas deu forma aos materiais primordiais, mas também criou a partir do nada tais materiais. Portanto, “pela fé reconhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus e que as coisas visíveis se originaram do invisível.” (Hebreus 11:3).
[7] Referência à frase latina “fiat lux” (Haja luz), expressa por Deus na criação, conforme relatado em Gênesis 1:3. Diz respeito, portanto, ao poder criativo da Palavra de Deus – “o Deus que dá vida aos mortos e chama à existência as coisas que estão no nada.” (Romanos 4:17).
[8] No original: warp and woof, nomes dados aos fios nos tecidos, compostos da urdidura (os fios que são trançados longitudinalmente) e a trama (os fios que são trançados de modo cruciforme), gerando assim a tessitura. Portanto, figurativamente, a expressão também é usada para se referir à estrutura fundamental de todo e qualquer sistema ou processo.
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Sobre o autor: Albert Wolters é professor emérito de religião e teologia / línguas clássicas na Redeemer University College. Serviu como membro sênior no Institute for Christian Studies em Toronto a partir de 1974-1984, obteve seu doutorado em filosofia pela Free University of Amsterdam, em 1972, autor do livro Creation Regained: Biblical Basics for a Reformational Worldview. Nascido na Holanda, em 1942, Wolters emigrou com os pais para o Canadá em 1948. Ele se formou no Calvin College em 1964, e lecionou na Redeemer University College 1984-2012.
Tradução: Fabrício Tavares
Divulgação: Bereianos
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