Cosmovisão Reformada (1/3) - Criação

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CRIAÇÃO

Nada, literalmente, é possível sem o poder ordenador e criativo de Deus


O filósofo alemão Martin Heidegger afirmou que a questão básica visada pela Metafísica é: “Por que existe algo ao invés de nada?”. Mediante tal definição, diz o filósofo, a ideia de uma Metafísica Cristã é um “círculo quadrado”[1], uma contradição em termos. Por quê? Porque o cristão já sabe, de antemão, a resposta para a questão. Sabemos que há algo ao invés de nada porque Deus criou o mundo.

A despeito de nossa opinião acerca da definição heideggeriana de Metafísica, nós podemos concordar que ele estava certo a respeito de uma coisa. A crença de que Deus criou o mundo, que a realidade é – em um sentido fundamental – criação, é fundamental para o pensamento cristão.

Essa é uma confissão cristã ecumênica[2]. Entretanto, talvez não exista tradição cristã na qual o ensino a respeito da criação possua um papel fundamental como na vertente que parte da Escritura, passando por Irineu, Agostinho, Calvino e Kuyper até ao Comment[3]. Nesta corrente da tradição cristã, a criação é concebida de uma maneira particularmente abrangente, e mesmo a salvação é, em larga medida, entendida como a recuperação da criação tal como originalmente pretendida por Deus. A criação é algo fundacional para todas as coisas. Mais ainda, a criação é boa de um modo primordial e profundo – tão profundo, de fato, que bondade da criação continua a se manifestar mesmo em meio à terrível perversão.

Diferentemente de outras compreensões do Cristianismo ortodoxo, essa veia da tradição supramencionada não vê a redenção como algo que está em oposição à criação (como o é na Teologia Dialética), ou como uma complementação ou realização dela (como em algumas compreensões do Tomismo), ou como paralela a ela, sem nenhuma ligação intrínseca (como nas várias teorias dos “dois reinos”[4]); antes, a redenção é vista como uma ação que restaura e renova a criação. Dessa forma, a criação, encarnando a intenção que Deus mantinha desde o princípio, é o próprio objeto da salvação em Cristo. O ponto fulcral da Redenção é a restauração da vida e do mundo à forma planejada para eles desde o princípio. Salvação implica em re-criação; a graça restaura a natureza.

Contudo, a fim de compreendermos isso apropriadamente, precisamos ter uma visão do conceito de criação muito mais abrangente e variegada do que aquela do uso comum entre os cristãos. A primeira coisa que vem à mente da maioria das pessoas quando tratamos a respeito da criação é o assim chamado “mundo natural” – isto é, o mundo físico e biológico. Logo pensamos nas estrelas e galáxias, assim como nas moléculas e átomos, e nas árvores e flores, assim como nos pássaros e feras. Mas essa é uma visão extremamente limitada da criação. Na visão bíblica, a criação é tudo aquilo que Deus ordenou que viesse à existência, o que Ele colocou em prática como parte da Sua criativa mão-de-obra humana[5]. Sem dúvida isso inclui a grande variedade de entidades e processos físicos, bem como a enorme diversidade da flora e da fauna que Deus criou “segundo suas espécies”; todavia, abrange muito mais do que isso. A criação inclui realidades humanas tais como a família e outras instituições sociais, a presença da beleza no mundo, a habilidade para apreciar tal beleza, os fenômenos da ternura e do riso, a capacidade de conceituação e raciocínio, a experiência da alegria e o senso de justiça. Uma variedade quase inconcebível de objetos, instituições, relacionamentos e fenômenos são parte da rica textura da criação de Deus.

É um fato marcante que a religião bíblica não é a única que apresenta tal visão. Embora exista um senso no qual a ideia de criação (entendida como um arranjo ordenado e contingente da realidade posto em movimento por um Deus transcendental) seja única no pensamento bíblico – certamente os gregos nunca conceberam isso –, a ideia geral de uma ordem cósmica divinamente sancionada, que engloba tanto o mundo natural quanto a sociedade e a vida humana, é amplamente difundida dentre os povos.

Por exemplo, já foi dito que a noção de “criação” presente em outras nações do antigo Oriente Próximo (na Mesopotâmia, Egito e nos arredores) referia-se primariamente ao modo pelo qual a sociedade fora organizada. Os vários “mitos de criação”, embora não excluíssem o mundo físico e biológico, foram inicialmente engendrados para explicar o mundo humano com sua cultura e sociedade, as instituições como a realeza, e o sacerdócio. O trabalho de Richard Clifford a respeito desses antigos mitos de criação é particularmente iluminador nesse sentido.

Contudo, a noção de uma ordem do mundo divino toda-abrangente se encontra muito mais difundida no antigo Oriente Próximo. Todas as culturas virtualmente possuem mitos e religiões que pressupõem uma ordem, e que relaciona tal ordem, em primeiro lugar, com a ordenação da sociedade humana. A Religião Comparada e a Antropologia Cultural se deparam com essa ideia de uma ordem universal – na qual a humanidade e todas as suas manifestações culturais se ajustam perfeitamente como um bebê no útero – em todas as sociedades humanas, virtualmente. As grandes exceções são as sociedades moldadas pela linhagem vigente, desde a Renascença europeia, das filosofias e ideologias seculares do Ocidente. Tais sociedades criaram uma lacuna entre o mundo natural e o mundo humano, de forma que os padrões da vida humana e cultural não são mais buscados em uma ordem externa dada, mas, sim, no próprio sujeito, que produz sua própria ordem a partir de sua própria autoridade. 

Tudo isso para dizer que a ideia bíblica de criação, que engloba muito mais do que o mundo natural, não é, de maneira alguma, peculiar, visto a partir de uma perspectiva da História universal. O que de fato é peculiar a respeito do conceito bíblico é, antes, o Criador transcendente e soberano que faz tudo acontecer, e o fato de que Este Criador realiza Sua obra sem qualquer material preexistente. A criação bíblica é uma creation ex nihilo, a criação a partir do “nada”[6], o que significa, é claro, uma criação que não é realizada a partir de coisa alguma, sem qualquer tipo de matérias-primas. Deus simplesmente falou e as coisas passaram a existir.

Consequentemente, de um ponto de vista amplamente cultural e histórico, não é de todo surpreendente que a Bíblia inclua elementos como a ordem política ou a instituição do casamento como coisas criadas por Deus – como partes daquilo que Ele ordenou desde o princípio. Nem deveríamos concluir, a partir de textos bíblicos que mencionam a ordem política e o casamento (tenho em mente aqui principalmente Romanos 13:1, 1 Pedro 2:13 e 1 Timóteo 4:3-4), que estas sejam as únicas instituições sociais e realidades culturais que pertencem à disposição das coisas por Deus ordenada. São simplesmente ilustrações incidentais de uma verdade geral, adotada por toda a Escritura, segundo a qual nada, literalmente falando, é possível sem o poder criativo e ordenador de Deus, o qual estabelece a lei para as criaturas e as relações e fenômenos criados em toda a sua vasta variedade.

É especialmente a ideia de lei criacional que clarifica a concepção bíblica de criação. Como um rei soberano, Deus decreta Suas leis (Seus decretos, Seus estatutos, Suas ordenanças, Suas palavras) para tudo aquilo que existe. A realidade é constituída pelo Sua criativa palavra de comando. Consequentemente, tudo é criacional no sentido de que é tanto constituído e normatizado pelo fiat[7] divino. Isso se aplica tanto ao instinto do pássaro de construir seu ninho quando aos princípios da jurisprudência ou ao pensamento lógico. Evidentemente, no caso das dimensões da criação que são tipicamente humanas, as normas e padrões que são postos em prática por Deus também exigem a responsabilidade da implementação humana, e por isso variam no seu desenvolvimento em tempos e locais diferentes.

É difícil ­– na verdade, impossível – tratar cristãmente da criação abstraindo de duas outras categorias fundamentais da narrativa bíblica: pecado e salvação. Pecado significa a distorção da criação, e salvação a sua recuperação em Cristo. Isso quer dizer que, na vida cristã redimida, a criação retorna de modo “vingativo”, por assim dizer. É na glória ricamente urdida da vida humana criada, na qual mães cantam canções de ninar para seus bebês, e na qual crianças correm pelo simples prazer de estarem se deslocando rapidamente, que Deus quer ser glorificado por meio de nosso serviço e testemunho dedicados a Ele, de forma que todo o mundo possa ver o que é a verdadeira vida humana criada, apesar das cicatrizes e flagelos do pecado e da morte. Isso se aplica às nossas idas ao cinema e à produção cinematográfica; às nossas festas e aos nossos exercícios filosóficos; à nossa imaginação e à nossa determinação.

A criação se constitui como a trama e a urdidura[8] de nossas vidas diárias – e em Cristo ela se torna gloriosa. Nós devemos ser, individual e comunitariamente, os “pôsteres” do Reino – a criação regenerada – de Jesus Cristo. Quando o Apóstolo Paulo diz que a Igreja é a “coluna e baluarte da verdade” (1 Timóteo 3:15), ele certamente não quer com isso dizer que nós, como povo de Deus, de alguma forma asseguramos ou sustentamos a verdade divina. Pelo contrário, o que a imagem utilizada pelo Apóstolo transmite é que nós, como povo de Deus, somos coletivamente os muros e postes que mantiveram os grafites do mundo antigo [o mundo criado originalmente bom], enviando mensagens para todos aqueles que passam por nós. Nós devemos ser os letreiros do Evangelho na extraordinária simplicidade de nossas vidas – extraordinária por causa do poder renovador do Espírito Santo, e simples por causa do material criacional comum de nossas vidas cotidianas. É nesse senso profundamente terreno e mundano que a criação é, para usar a frase cativante de Calvino, o teatro da glória de Deus.

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Notas:
[1] No original “wooden iron”, termo que, se traduzido ipsis litteris, seria “ferro de madeira”. Na verdade, é utilizado na filosofia retórica para designar a impossibilidade de um argumento oposto, isto é, duas palavras contraditórias que aparecem juntas numa mesma proposição, geralmente um adjetivo que se opõe ao substantivo, por exemplo, “gelo quente”, um “fogo frio”, “luz escura”, etc. Na filosofia grega antiga, o termo utilizado para designar esse equívoco lógico era σιδηροξύλον (sideroxylon). O autor do artigo afirma que, uma vez que para Heiddeger a tarefa da Metafísica é a investigação dos fundamentos últimos da Ontologia, a Filosofia Cristã não faz sentido para a Metafísica Heiddegeriana, pois o cristão já parte do pressuposto que Deus é a fonte e fundamento do Ser. Na verdade, conforme afirmar alguns apologistas pressuposicionalistas no chamado Argumento Transcendental, a menos que tomemos Deus como pressuposto básico, é impossível formularmos sequer uma questão, pois uma vez que nossa existência (e de todo o cosmos) é, por definição, contingente, é preciso que haja um ente necessário do qual derivam todos os demais. Este Ente Necessário, segundo Leibniz já formulou, é evidentemente Deus. 
[2] Ecumênico é aqui utilizado não para se referir ao movimento intereclesial e interdenominacional que busca a interação efetiva entre líderes, sacerdotes e fieis de diferentes confissões, mas, sim, ao fato de que todas as tradições cristãs (Protestante, Católica Romana, Ortodoxa) aceitam, confessam e pregam a respeito da Criação a partir das mãos de Deus, conforme especificado na primeira linha do Credo dos Apóstolos – símbolo aceito e defendido por todas as principais tradições cristãs –, da seguinte maneira: “Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra”.
[3] Comment: public theology for the common good é o nome do periódico calvinista no qual o presente artigo foi originalmente publicado. Alguns artigos estão disponíveis on-line: http://www.cardus.ca/comment/
[4] A teoria dos “dois reinos” diz respeito à visão quase maniqueístas que algumas tradições cristãs (especialmente os chamados “Católicos Tradicionalistas, que não aceitam o Concílio Vaticano II, e algumas correntes pentecostais) sustentam, concebendo a Igreja como estando em guerra acirrada e perpétua contra o mundo. Para eles, portanto, o mundo, ao invés de ser o “palco da glória de Deus” (Calvino) – onde os atributos invisíveis de Deus e Seu eterno poder se revelam (Romanos 1:18ss) e a plataforma, por excelência, onde se desenrola o drama da salvação –, é, por definição, o reino de Satanás no qual a corrupção está irremediavelmente arraigada. Essa concepção, mais gnóstica do que cristã, não leva em conta que a Redenção efetuada por Cristo abrange, estende-se e redime todas as áreas da criação: não apenas o mundo físico, mas também o homem em sua inteireza e todas suas criações culturais, artísticas, intelectuais, afetivas e sociais. Portanto, para o cristão, o mundo se torna, cada vez mais, o Reino dos Céus, o qual há de ser regido pelo cetro de Cristo e onde Ele será de todo glorificado.
[5] Esta imagem do homem como trabalhador na propriedade de Deus retrata um dos aspectos cruciais no pensamento neo-calvinista kuyperiano (de Abraham Kuyper), a saber, o Mandato Cultural – a ordem dada ao homem por Deus, logo nos capítulos iniciais de Gênesis, para dominar e sujeitar a natureza, bem como cultivar e guardar o jardim. É interessante notar que o Mandato Cultural relaciona-se não somente com a produção material, mas também com a cultural. Uma vez que a criação foi criada num estado "muito bom" (diferentemente do que apregoa a concepção gnóstica – que associa a materialidade ao mal – infelizmente tão presente no meio evangélico brasileiro), existe um potencial inerente à ordem criada que consequentemente também é bom. “O ‘Mandato Cultural’ de Gênesis 1.28 e 2.15 nos diz que a humanidade tem a missão de aproveitar esta potencialidade para desenvolver a cultura como Deus planejou. Tecnologia, cultura popular, o progresso, e sim, até na política, devem ser entendidas como parte da ordem original de Deus criou.” (o trecho entre aspas foi extraído do site: 
http://abrahamkuyper.blogspot.com.br/2010/08/cosmovisao-kuyperiana.html).
[6] Lembrando apenas que o conceito filosófico de Nada aqui utilizado, ao contrário do que prevalece equivocadamente no senso comum não diz respeito ao vazio nem ao vácuo e, muito menos, à ausência de entes em determinado espaço (como quando se diz a respeito de um recipiente vazio que “ele não contém nada”). Na verdade, o nada não existe, pois se existisse não seria nada. Daí a fórmula clássica geralmente atribuída a Parmênides: Ex nihilo nihil fit (do nada, nada vem). A expressão retrata um princípio metafísico que afirma que o Ser não pode provir do não-Ser. Sendo assim, quando da criação, Deus não apenas deu forma aos materiais primordiais, mas também criou a partir do nada tais materiais. Portanto, “pela fé reconhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus e que as coisas visíveis se originaram do invisível.” (Hebreus 11:3).
[7] Referência à frase latina “fiat lux” (Haja luz), expressa por Deus na criação, conforme relatado em Gênesis 1:3. Diz respeito, portanto, ao poder criativo da Palavra de Deus – “o Deus que dá vida aos mortos e chama à existência as coisas que estão no nada.” (Romanos 4:17).
[8] No original: warp and woof, nomes dados aos fios nos tecidos, compostos da urdidura (os fios que são trançados longitudinalmente) e a trama (os fios que são trançados de modo cruciforme), gerando assim a tessitura. Portanto, figurativamente, a expressão também é usada para se referir à estrutura fundamental de todo e qualquer sistema ou processo.

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Sobre o autor: Albert Wolters é professor emérito de religião e teologia / línguas clássicas na Redeemer University College. Serviu como membro sênior no Institute for Christian Studies em Toronto a partir de 1974-1984, obteve seu doutorado em filosofia pela Free University of Amsterdam, em 1972, autor do livro Creation Regained: Biblical Basics for a Reformational WorldviewNascido na Holanda, em 1942, Wolters emigrou com os pais para o Canadá em 1948. Ele se formou no Calvin College em 1964, e lecionou na Redeemer University College 1984-2012.

Fonte: CARDUS
Tradução: Fabrício Tavares
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Jesus e Marx: o diálogo impossível

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No curso ministerial de teologia da Igreja em que congrego – Igreja Reformada Ortodoxa – resolvemos preparar e ministrar seis breves aulas sobre Teologia Reformada e política. Inicialmente, as aulas seriam apenas para os que fazem o nosso modesto curso. Mas, convencidos da necessidade de toda igreja, resolvemos transformá-las em aulas abertas a toda congregação. O artigo que escrevo é uma suma da parte que me coube, a saber, o marxismo e sua relação com a realidade e com a Igreja. Evidentemente não passa nem perto de ser exaustivo. É apenas uma contribuição a um debate que tem sido levado a cabo por irmãos e pensadores muito mais capacitados.

Insistentemente tem sido estudado, debatido e combatido por nós, cristãos bíblicos e conservadores, o que comumente se denomina marxismo cultural. Afirmo, a título de explicação, que todo o marxismo deveria, a princípio, ser tratado como cultural, na medida que está inserido como ideia ou ideologia em qualquer cultura determinada historicamente. Entretanto, o termo foi cunhado para definir uma nova visão criada pelos próprios marxistas para responder teórica e praticamente a uma série de desafios ao seu pensamento, ainda no início do século XX.

Na perspectiva de Karl Marx e de seus seguidores, o socialismo era uma verdade inexorável, que seria infalivelmente vitoriosa ainda nos estertores do século XIX e no alvorecer do XX. As contradições inerentes ao capitalismo, catapultadas pelo que eles julgavam ser o motor dialético da História, a luta de classes, levariam a ruína do capital e a vitória final do comunismo. A perspectiva clássica marxista era que o conflito mortal entre a burguesia detentora da propriedade privada sobre os meios de produção e o proletariado produtor da riqueza, mas alienado dela e do resultado final de seu trabalho, geraria uma nova sociedade governada pelos interesses do proletariado, o socialismo. Note que o socialismo, para os marxistas, ainda não seria o fim da História; o fim só seria alcançada na “plenitude” comunista, a perfeita e escatológica sociedade. 

Marx não via sua doutrina como ideologia. Para ele, ideologia tinha um sentido bastante negativo, na medida em que era uma ferramenta para falsear a realidade a serviço da classe dominante. Ele a via como uma cosmovisão. Seus seguidores ainda a veem assim, sendo capazes de explicar a totalidade do cosmos. Assim escapam de si mesmos, retirando de suas doutrinas a pecha de falseadoras da realidade e, ao mesmo tempo, são alçadas ao status de explicadoras da realidade. Insisto, o marxismo é só uma ideologia e, como tal, possui um fundamento religioso por ser idólatra, gnóstico e oferece um simulacro de redenção e de escatologia. Idólatra porque retira Deus do seu lugar primeiro. Gnóstico porque enxerga parte da criação como intrinsecamente má. Falsamente redentor porque credita ao homem a auto redenção e deposita no comunismo a esperança do fim da História.

No seu modo mais clássico, o marxismo alimenta a ideia que todo modo de produção é formado por uma imbricada teia de infra e superestrutura. Resumidamente, a infraestrutura seria a base econômica, e a superestrutura as relações sociais, políticas, jurídicas e culturais. Em última análise, a infraestrutura determinaria a superestrutura. Entretanto, essa visão materialista da História foi colocada em xeque ainda no começo do século XX. Na Europa, o socialismo Fabiano, os reformistas da social democracia, a própria Igreja Romana e as protestantes propunham um caminho diferente, marcadamente reformista e pacífico. Ao fim da primeira guerra, os marxistas que esperavam uma explosão revolucionária tiveram que contentar-se com a experiência russa de 1917, experiência que derrubou de vez o princípio marxista clássico de que o socialismo se daria em um capitalismo plenamente desenvolvido e prenhe de contradições. A revolução russa ocorreu em um país agrário e atrasado. O que surgiu dessa experiência foi uma aberração totalitária, burocrática e assassina que recebeu o nome de marxismo-leninismo.

É assim, contextualizado, que devemos entender o surgimento do chamado marxismo cultural ou neo marxismo. O marxismo cultural nasceu da combinação dos pensamentos do marxista italiano Antonio Gramsci e da Escola de Frankfurt, um grupo de intelectuais marxistas que se reuniram nessa instituição para repensar o marxismo e sua aplicação. Gramsci, após viver na URSS e de sua experiência sob o fascismo de Mussolini, entendeu que era necessário uma releitura do marxismo, já que o modelo clássico de Marx e a aplicação da doutrina na Rússia agrária foram um retumbante fracasso. Ele percebeu que proletariado tinha outras lealdades que não só de classe (família, religião, esporte, etc.) havia sido "corrompido" pelas "benesses" capitalistas e já não se encontrava tão disposto a aventuras revolucionárias. Propôs, então, uma reavaliação que se traduziria na inversão da equação infraestrutura determinando a superestrutura. O ponto central a ser atacado não seria mais, segundo ele, as condições materiais ou objetivas, mas as condições subjetivas, isto é, a cultura no seu sentido mais amplo. Gramsci defendeu a formação do que ele chamou bloco histórico, formado pelo proletariado, minorias oprimidas e intelectuais orgânicos dirigidos pelo partido comunista. Tal bloco histórico deveria alcançar uma hegemonia cultural, disputando com a burguesia os corações e mentes das "massas oprimidas". A disputa pela hegemonia cultural seria a nova estratégia revolucionária.

A Escola de Frankfurt absorveu e aperfeiçoou a nova estratégia. Intelectuais marxistas como Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Erich Fromm, fundadores da instituição, levaram adiante a ideia não só da subversão, mas da destruição da cultura, através da desconstrução das tradições familiares, religiosas, políticas e jurídicas. Um dos principais objetivos era e continua sendo destruir a crença em Deus. Deus é o entrave que os impede de desorganizar, subverter e destruir a cultura e as tradições. A estrutura familiar tradicional, conforme criada por Deus, também deveria e deve ser, segundo eles, destruída. O despejamento de denúncias e ataques contra a heterossexualidade e contra o papel do homem conforme a criação também é parte da destruição da ordem vigente. O feminismo igualitarista, a teoria dos gêneros, o movimento negro radical, o “ambientalismo” violento, a militância LGBT fazem parte do pacote marxista travestido de movimentos justos e aceitáveis. Todos eles têm em comum o fato de sustentarem-se em "minorias oprimidas" falsamente vítimas da "opressão" capitalista. A agenda de tais movimentos é anticapitalista e claramente comunista.

Fica bastante claro que as manifestações do marxismo cultural em nossa época e realidade são indiscutíveis. O Brasil é governado por marxistas que têm a perspectiva estratégica do marxismo cultural. O PT a aplica com extrema eficiência; seus aliados são movidos pelo mesmo objetivo. No entanto, o maior perigo para os crentes está na absorção desses ideais revolucionários e antibíblicos pela Igreja. Desde o século XIX, a Igreja tem sido permeável ao marxismo. Dói na carne constatar que um dos principais veículos de propagação do marxismo nas Igrejas são pastores e teólogos de confissão tradicional. Por exemplo, o Evangelho Social do pastor americano/alemão Walter Rauschenbusch, no século XIX, que ao priorizar, mesmo que bem intencionado o papel social da Igreja (sob a pressão das péssimas condições de vida durante a segunda revolução industrial) se equivocou ao desfocar o objetivo da mesma, que é, sobretudo, adorar a Deus.

Mas é na fé Romana que o marxismo encontrou sua morada mais alvissareira. Desde a publicação da encíclica Rerum Novarum pelo papa Leão XIII, em 1891, os católicos já expressavam sua preocupação com as questões sociais e, ao mesmo tempo, com a necessidade de responder ao marxismo. Nos anos sessenta, certamente fruto das inquietações da época, o Concílio Vaticano II aprofundou as doutrinas sociais católicas, agora mais influenciadas pelo liberalismo teológico e pelo próprio marxismo. As bases que permitiriam o surgimento da Teologia da Libertação estavam dadas. Na América Latina, liderados por teólogos católicos como Leonardo Boff, Jon Sobrino e Juan Luis Segundo, a Teologia da Libertação aprofundava seu diálogo com o marxismo sob a égide de que o evangelho exige a "opção preferencial pelos pobres", estigmatizando Jesus como um líder revolucionário e reduzindo-o a um ativista político. A Teologia da Libertação foi responsável no Brasil pelo aprofundamento do antibíblico e improvável diálogo entre cristianismo e o marxismo. A partir dela foram lançadas as bases para o surgimento do PT e da CUT, já que parte da liderança esquerdista brasileira nasceu nos movimentos sociais católicos.

"A Teologia da Missão Integral é uma variante protestante da Teologia da Libertação"! Essa afirmação não é minha, mas de um dos principais teólogos da TMI (Teologia da Missão Integral). A TMI é uma pretensa renovação missionária protestante na América Latina, baseada na perspectiva do diálogo entre o marxismo e a Igreja de Cristo, na necessidade de ampliar a tarefa missionária com ações sociais e preocupação com as condições de vida do evangelizado; porém, não a partir das Escrituras, como deveria ser, mas de pressupostos marxistas como classes sociais, luta de classes, estatismo e consciência crítica. Os fundamentos da TMI e da TL são os mesmos: transformar o evangelizado em um potencial soldado das transformações sociais. O missionário cristão não deve, segundo eles, pregar a Palavra Redentora somente, mas influenciar as organizações sociais e a consciência, tornando-a crítica e anticapitalista, sob um verniz de caridade e atenção aos pobres. Não que Deus não nos tenha ordenado cuidado com os mais pobres, mas o fez sob a lógica única e inerrante de sua Palavra.

Concluo afirmando que não há possibilidade de um diálogo entre o marxismo e o cristianismo. São fundamentados por pressupostos antagônicos e irreconciliáveis. O cristianismo bíblico sustenta-se em uma premissa fundante, irrevogável, eterna e perfeita, no próprio Deus. O marxismo é uma ideologia constitutiva de uma cosmovisão antropocêntrica, essencialmente falha e idólatra. Os crentes, por sua vez, devem se preocupar e se envolver com a política, mesmo porque cremos que tudo pertence à soberania de Deus e tudo o que Ele fez é bom. A ideia falaciosa e herética que há partes na criação que são estruturalmente más deve ser evitada. Calvino, em suas "Institutas", via com apreço a autoridade e o governo civil como servos de Deus que deviam ser respeitados e considerados. Para o cristão reformado não há separação entre o sagrado e o profano; por isso, debater e intervir politicamente na sociedade é saudável. Evidentemente que nossa intervenção deve ser balizada pela Palavra de Deus. Se estivermos fundamentados na Palavra de Deus, nossas predileções partidárias, nossas escolhas políticas e nosso voto excluem qualquer possibilidade de aproximação com partidos de esquerda ou com posições de extrema direita inclinadas ao fascismo e a violência. No fim, todas as coisas devem ser feitas para glória de Deus, inclusive a política. Mesmo que nenhum sistema econômico ou regime político sejam perfeitos em razão da queda, podemos nos voltar para políticos e propostas que se aproximem da vontade soberana de Deus exposta irrevogavelmente nas Escrituras Sagradas.

SOLI DEO GLORIA!

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Autor: Davi Peixoto
Divulgação: Bereianos
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Cristianismo e Ciência são opostos?

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"O homem é um ser pensante. Não é nos bens que busco a minha dignidade, mas no controle de minha mente. Eu não teria mais capacidade mental pela simples possessão de mais terras. Por intermédio do espaço, o universo me contém e, de fato, me absorve como a um simples borrão. No entanto, é por meio do pensamento que eu compreendo o universo". - Blaise Pascal; Cientista, filósofo, teólogo e matemático cristão.

"Graças te dou, Criador e Deus, pois tu me concedeste esta alegria em tua criação e me alegro com as obras de tuas mãos. Vê, pois, que completei o trabalho para o qual fui chamado. Nele, usei todos os talentos que tu concedestes ao meu espírito". - Johannes Kepler; Astrônomo.

Quando tratamos de ciência somos remetidos imediatamente e diametralmente a dedução de que a ciência aniquila a fé; em nosso recorte aqui, o cristianismo. Mas seria isso realmente procedente? Será que um verdadeiro cristão não pode fazer ciência? Será que o cristianismo condena a ciência? Perguntas como essas são comuns, principalmente entre jovens cristãos que estão prestes a escolher um curso universitário. Visto vivermos hoje em um contexto utilitarista e niilista, que muitas pessoas não estudam mais para crescerem em vários aspectos espirituais, intelectuais, culturais; o que temos são pessoas, inclusive cristãos, que escolhem determinados cursos universitários apenas pelo dinheiro e, às vezes, por qualquer outro motivo, e até mesmo sem motivo nenhum. A corrida utilitária tem sido mais disputada do que a São Silvestre. O que diz a história sobre o cristianismo e a ciência? Diz muito! Houveram cientistas cristãos famosos? Sim, e muitos! Ninguém disse isso na escola, não é? Mas iremos examinar, ainda que brevemente, alguns pontos fundamentais em relação ao cristianismo e ciência. Claro que minha intenção aqui não é fazer um opúsculo sobre história da ciência, mas, minha intenção é ajudar jovens cristãos a conhecerem um pouco da história, bem como poder fazer ciência sem que isso não contradiga a nossa fé e glorifique a Deus.

O que é a ciência? A palavra ciência vem do termo latino scientia, que significa conhecimento. A ciência moderna é uma mistura de dedução e indução, de racionalismo e empirismo, que surgiu no século XVI e deu origem ao que conhecemos como a era científica. E o que o cristianismo tem haver com a era científica? Francis Schaeffer nos diz:

Tanto Alfred North Whitehead (1861-1947) como J. Robert Oppenheimer (1904-1967) enfatizaram que a ciência moderna surgiu a partir da perspectiva cristã do mundo. Whitehead foi um matemático e filósofo extremamente respeitado, e Oppenheimer, após tornar-se diretor do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, em 1947, escreveu sobre uma gama de assuntos relacionados a ciência "[...] Whitehead (em seu livro A ciência e o mundo moderno) disse que o cristianismo é a mãe da ciência, em virtude da 'insistência medieval sobre a racionalidade de Deus".[i]

Não há nada mais falacioso do que dizer que a história nega uma proximidade entre o cristianismo e a ciência, a fé não é antagônica a pesquisa científica. É claro que existirá um antagonismo quando os pressupostos da ciência estão na autonomia da razão, no cientificismo e no historicismo. Nos diz D. James Kennedy: "A religião não foi sempre inimiga da ciência? Não! Além do que, muitos estudiosos concordam que a revolução científica, que teve seu grande momento no século XVII, foi originada em sua maior parte pelo cristianismo reformado".[ii]

No campo científico moderno, diferentemente do que muitos dizem e tocam trombeta nos quatro cantos do planeta, existe uma quantidade considerável de cientistas que acreditam na existência de um Criador.

Em 1916 e 1997 realizaram-se dois estudos famosos que servem de base para essa disputa. O psicólogo americano James Leuda conduziu a primeira pesquisa com cientistas, na qual indagava se eles acreditavam em um Deus que se dispõe a se comunicar com a humanidade, ao menos por meio da oração. Quarenta por cento responderam “sim”, 40% “não” e 20% disseram não ter certeza "[...] Alister McGrath, teólogo, com doutorado em biofísica pela Universidade de Oxford, escreve que a maioria dos vários cientistas incrédulos que conhece são ateus por outros motivos e não por causa da ciência que praticam".[iii]

Ainda colhendo depoimentos sobre a importância do cristianismo no desenvolvimento científico, no excelente livro A Alma da Ciência, Nancy Pearcey e Charles Thaxton nos dizem que:

De acordo com o escritor científico Loren Eiseley, o aspecto curioso do mundo científico em que vivemos é justamente o fato de esse mundo existir. Com frequência, os ocidentais pressupõem, de modo inconsciente, uma doutrina do Progresso Inexorável, como se a simples passagem de tempo conduzisse inevitavelmente a um conhecimento cada vez maior, tão certo como uma noz se transforma numa nogueira. De acordo com Eiseley, Os arqueólogos seriam obrigados a nos dizer, porém, que várias grandes civilizações surgiram e desapareceram sem terem desenvolvido uma filosofia científica. O tipo de pensamento conhecido hoje em dia como científico, com sua ênfase na experimentação e na formulação matemática, surgiu numa cultura específica – a Europa Ocidental – e em nenhuma outra.
Eiseley conclui que a ciência não é, de modo algum, “natural” para a humanidade. A curiosidade sobre o mundo é, de fato, uma atitude natural, mas a ciência institucional é mais do que isso. “Ela possui regras que devem ser aprendidas e práticas e técnicas que devem ser transmitidas de uma geração para outra pelo processo formal do ensino”, observa Eiseley. Em resumo, é “uma instituição cultural inventada, que não se encontra presente em todas as sociedades, e não uma instituição que se pode esperar surgir do instinto humano”. A ciência “exige um tipo de substrato único para se desenvolver”. Sem esse substrato “está tão sujeita à decomposição e à morte quanto qualquer outra atividade humana”. 
Qual é esse substrato singular? Eiseley o identifica, de modo um tanto relutante, como sendo a fé cristã. “Numa dessas estranhas permutações das quais a história oferece raros exemplos ocasionais”, diz ele “foi o mundo cristão que, por fim, deu à luz de maneira clara e sistematizada ao método experimental da ciência propriamente dita.”
Eiseley não é o único a observar que a fé cristã inspirou, de várias formas, o nascimento da ciência moderna. Os historiadores da ciência desenvolveram um respeito renovado pela Idade Média, incluindo uma reverência semelhante pela visão de mundo cristã cultural e intelectualmente predominante ao longo desse período. Nos dias de hoje, os mais diversos estudiosos reconhecem que o cristianismo forneceu, tanto os pressupostos intelectuais, quanto a sansão moral para o desenvolvimento da ciência moderna.[iv]

Somente a cosmovisão do cristianismo poderia propiciar o desenvolvimento da ciência de forma institucionalizada. As demais visões de mundo contrariam e impossibilitavam o surgimento e desenvolvimento da ciência como campo de trabalho do conhecimento, somente uma epistemologia cristã foi capaz de dar ao mundo o que conhecemos hoje como ciência moderna.


Ao pensarmos sobre a questão epistemológica, estamos num campo que concerne à possibilidade do conhecimento, da teoria do conhecimento e da realidade do conhecer e empregar esse saber, esse conhecer é inteiramente ligado ao propósito, ao telos, queira ou não, a ciência tem de ter um viés teleológico, tem de ter uma finalidade. Do contrário, não há propósito nem um motivo para o emprego científico. Ninguém faz ciência por nada, ciência obriga necessariamente a mente para uma finalidade de pesquisa. Essa possibilidade de conhecer, só pode ser defendida a partir de pressupostos cristãos. Se existe uma finalidade, existe uma origem, existe um originador, existe um criador. A ciência só tem sentido se é fundamentada em pressupostos epistemológicos, se não se pode conhecer, por que pesquisar?

Ao dobrar-se sobre a pesquisa científica o pesquisador não deve concluir o inverso sobre a lei e a ordem da natureza. Não deve deduzir que o fato de a natureza possuir leis e ordens, isso aponta para o Deus criador, mas o fato de existir e ser necessário o Deus criador é que gera lei e ordem na natureza. O decreto imutável de Deus não deixa de fora nada em sua criação. Nem as leis da natureza, nem a matemática. Até os resultados de cálculos matemáticos estão sob o decreto de Deus. A verdadeira ciência não contradiz o cristianismo, a verdadeira ciência glorifica o Criador. Mas, como falamos anteriormente, se os pressupostos científicos estão errados, a ciência será má. Se os pressupostos estão corretos, a ciência será boa. A verdadeira ciência exulta: Somente a Deus toda glória!

A Teologia Reformada e a Ciência
           
Como já vimos, a reforma protestante deu grande impulso ao pensamento científico, não é nossa proposta aqui analisar e esquadrinhar historicamente o processo de desenvolvimento e contribuições dadas à ciência a partir da reforma, mas somente pontuar esse fato que é de alta relevância ao nosso argumento. É importante notar que as doutrinas defendidas pela reforma foram de grande valia para o desenvolvimento científico, a exemplo disso temos o conceito de desgraça e caridade em Blaise Pascal que pertenceu a um grupo reformista chamado jansenistas que advogavam conceitos calvinistas em sua doutrina.[v]
            
Tanto a doutrina dos mandatos – espiritual, social e cultural, como a doutrina da depravação total foram importantes no pensamento científico. Podemos frisar o mandato cultural que impele o homem a ler a criação e dominá-la como descrito no Gênesis 1.26-30. A reforma protestante foi uma alavanca para o progresso da pesquisa científica que já tinha considerável expressão na idade média como vimos anteriormente. A proliferação do conhecimento por conta da imprensa e da distribuição de livros que agora estavam sendo distribuídos para o povo, isso inicia-se de forma expressiva com os escritos de Lutero e depois dos demais reformadores, embora já tivéssemos algo expressivo com os pré-reformadores.

As Raízes Cristãs da Ciência

A ciência moderna teve uma força motriz cristã, meu apontamento aqui vai para três grandes pensadores: Johannes Kepler, Blaise Pascal e Isaac Newton, que eram cristãos comprometidos e ninguém em sã consciência no mundo científico pode negar a importância e influência desses três homens no desenvolvimento científico. Johannes Kepler cunhou a frase “Pensando os pensamentos de Deus depois dele” e escreveu: “Uma vez que nós, os astrônomos, somos sacerdotes do grande Deus no que se refere ao livro da natureza, nos será de grande benefício refletirmos, não sobre a glória da nossa mente, mas acima de tudo, sobre a glória de Deus”. Pascal, como já dissemos, foi alguém muito importante e sua epistemologia científica estava baseada na teologia calvinista. Pascal, foi matemático, filósofo e um cientista profícuo. Disse Pascal: “A fé nos diz o que os sentidos não percebem, mas sem contradizer suas percepções. Ela apenas transcende sem contradizer”, ela aponta para o conhecimento de Deus dizendo que:

O Deus dos cristãos não é apenas um Deus autor de verdades matemáticas e da ordem dos elementos. Esta é a noção dos pagãos e dos epicuristas [...] Mas o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, O Deus de Jacó, O Deus dos cristãos é um Deus de amor e consolação.[vi] 

Newton é outro nome que queria mencionar, certa vez ele disse em Principia (Princípios Fundamentais): “O belíssimo sistema do sol, planetas e cometas, só poderia provir da vontade e do controle de um Ser inteligente e Poderoso”.

Outra grande citação de Newton, esta contra o ateísmo dizia o seguinte:

O ateísmo é completamente sem sentido. Quando olho para o sistema solar, vejo a terra na distância correta do sol para receber a quantidade de luz e calor apropriadas. Isso não acontece por acaso.[vii]

E, por fim, Michael Faraday. Ele deu uma das maiores contribuições na área da eletricidade. Faraday descobriu a indução eletromagnética e inventou o gerador. Francis Schaeffer menciona que Faraday pertencia a um grupo de cientistas cuja posição era: “Onde as Escrituras silenciam, nós silenciamos”.[viii]

Chegando ao fim de nosso breve passeio na história da ciência, reproduzo a lista de cientistas criacionistas, descrita por D. James Kennedy em que nos mostra uma pequena parte da influência do ensino bíblico da criação reconhecido na ciência, ainda que não seja regra todo criacionista ser crente na Bíblia, de qualquer forma temos aqui um pressuposto ancorado no Deus Criador.


        Cirurgia anti-séptica – Joseph Lister

        Bacteriologia – Louis Pasteur
        Cálculo e Dinâmica – Isaac Newton
        Mecânica celestial – Johannes Kepler
        Química – Robert Boyle
        Anatomia comparativa – Georges Cuvier
        Ciências da computação – Charles Babbage
        Análise dimensional – Lord Rayleig
        Eletrônica – John Ambrose Fleming
        Eletrodinâmica – James Clerk Maxwell
        Eletromagnetismo – Michael Faradey 
        Energética – Lord Kelvin
        Entomologia de insetos vivos – Henri Fabre
        Teoria de campo – Michael Faraday
        Mecânica dos fluidos – George Stokes
        Astronomia galáctica – William Herschel
        Dinâmica dos gases – Robert Boyle
        Genética – Gregor Mendel
        Geologia glacial – Louis Agassiz
        Ginecologia – James Simpson
        Hidrografia – Matthew Maury
        Hidrostática – Blaise Pascal


Só para citar alguns nomes. Voltamos a pergunta do nosso título – Cristianismo e Ciência são opostos? Não. O cristianismo se opõe a falsa ciência, que baseia-se em falsos pressupostos e, consequentemente, numa epistemologia incoerente com a realidade. Somente o cristianismo pode explicar a realidade, somente a Bíblia pode conduzir o homem à verdade. Por isso, um trabalho científico que desenvolve pesquisa no campo da filosofia natural, precisa ter uma sólida base na revelação especial de Deus, a Bíblia, e dobrar-se ao Deus criador e soberano sobre céus e Terra. Concluo com a famosa frase de um cientista cristão:



"Pensemos os pensamentos de Deus depois dele". - Johannes Kepler


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Notas:

[i] How should we the live?, Old Tamppan: Fleming H. Revell, 1976, p.132.
[ii] E se Jesus não tivesse nascido, São Paulo – SP: Editora Vida, 2001, p.125.
[iii] Fé na era do ceticismo, São Paulo – SP: Editora Vida Nova, 2015, pp. 118,119.
[iv] A alma da ciência, fé cristã e filosofia natural, São Paulo – SP: Editora Cultura Cristã, 2005, pp.15,16.
[v] Havendo interesse da parte do leitor sobre a epistemologia pascaliana, poderá encontrar um excelente estudo sobre o tema no ensaio sobre epistemologia pascaliana do filósofo Luiz Felipe Pondé – Conhecimento na desgraça, editora Edusp.
[vi] Citação extraída do livro E se Jesus não tivesse nascido, São Paulo – SP: Editora Vida, 2001, p.135.
[vii] Ibid., p.136.
[viii] Ibid

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Autor: Thomas Magnum
Fonte: Electus
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O que a Bíblia diz sobre a vida eterna?

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Todos os crentes em Jesus Cristo recebem a promessa da vida eterna, a qual é uma dádiva de Deus (Jo 10:28; Rm 6:23; 1 Jo 5:11). Mas o que é a “vida eterna” e como a Bíblia a descreve?

Falar sobre eternidade é difícil, primeiramente porque compreendemos a vida dentro dos limites do tempo, em segundo lugar, porque não a conhecemos enquanto estamos dentro de tais limites. Entretanto, o ensino bíblico sobre a vida eterna nos faz pensar além e nos ajuda entender esse que é um assunto fundamental para a fé cristã.

Todo ser humano tem vida física, mas a vida eterna é descrita por uma qualidade diferente dessa, por estar relacionada diretamente com a vida do próprio Deus (2 Pd 1:3-4). A Bíblia diz que Deus é eterno (Dt 33:27), Rocha eterna (Is 26:4), Rei eterno (Sl 10:16), que a Sua Palavra é eterna (Sl 119:89) e que o Seu reino e domínio são eternos (Dn 4:3), como as demais virtudes exclusivas do Seu nome (Sl 135:13). A vida eterna, portanto, é uma vida de absoluta dependência do ser de Deus (Nm 27:16). Todos os homens existirão eternamente, mas somente aqueles que forem reconciliados com Deus, pela obra de Cristo, viverão eternamente (Dn 12:2). 

Dito isso, passaremos agora a destacar algumas das descrições que a Bíblia faz sobre a vida eterna com Deus. Embora alguns dizem que a Bíblia não a descreve, enquanto outros dizem que ela é friamente discreta quando trata do assunto, o que encontramos de descrições nela sobre a vida eterna surpreende essas posições!

A Bíblia descreve a vida eterna como uma condição de vida e não de morte, ou seja, de acolhimento e não de banimento da presença de Deus (Jo 5:24-29); de infinito conhecimento de Deus (Jo 17:3); de segura e permanente comunhão com Deus (Lc 23:43; Jo 14:1-3), onde os crentes desfrutarão completa satisfação (Fl 1:23); uma condição totalmente livre do domínio e dos efeitos do pecado (Ap 21:3-6), inclusive do luto, do pranto e da dor; descanso das fadigas (Hb 4:9-10; Ap 14:13); estado de imortalidade (Rm 5:12, 17; 1 Co 15:50-57; 2 Tm 1:9-10), visto que é vida sem fim, sem interrupção determinada pela morte; condição de perfeição superior ao estado de Adão, pois não haverá qualquer possibilidade de queda no pecado, uma vez que Cristo, como representante da nova criação, é o perfeito Adão (1 Co 15:22-28 e 45-49; Ap 21:27). E mais, o lugar dessa vivência, é lugar de santidade, onde resplandece a glória do Pai e do Seu Filho, lugar de adoração (Ap 21:22-26).

Está claro, pelo testemunho da Bíblia, que a vida eterna é uma promessa de Deus aos que creem em Jesus e que ela é amplamente descrita, não como um sentimento ou uma expectativa vaga, mas como uma realidade concreta e segura aos que ouvem e confiam no Evangelho, pela graça, que lhes é anunciado (Jo 20:31). 

Como a vida eterna não é uma promessa à todos, indistintamente, apenas aos que creem verdadeiramente em Jesus (Jo 3:15-16, 36), como devemos lidar com esse assunto no mundo em que vivemos? Fortaleça a sua convicção de fé nessa verdade, alimentando-a com a confiança na Bíblia, nesses que são tempos de relativismo moral e religioso. A promessa da vida eterna é dada aos que se arrependem dos seus pecados, por crerem em Jesus, portanto, compartilhe o Evangelho às pessoas em sua volta. Ninguém pode se fazer merecedor da vida eterna, por ser uma dádiva de Deus, não do homem. Por isso, o Evangelho deve ser pregado a fim de que sejam chamados pelo Espírito Santo à crerem em Jesus!

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Autor: Rev. Ericson Martins
Fonte: Reflexões e Cotidiano

Leia também: A condenação eterna
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A existência eterna do homem - imortalidade

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Introdução

O conceito de “imortalidade da alma” surgiu nas religiões de mistério na Grécia antiga, sendo desenvolvido e recebendo grande expressão nos escritos de Platão (427-347 a.C), que foi um dos maiores filósofos da história. No século XVIII, todavia, a ideia de imortalidade da alma foi rigorosamente defendida pela elite intelectual que compunha o iluminismo europeu. Apesar de não ser uma doutrina distintivamente cristã, a imortalidade da alma foi considerada uma doutrina superior e distinta do Cristianismo, na época. Contudo, mesmo assim, ela se adentrou tenazmente nos recônditos da fé cristã e influenciou, de certa forma, o pensamento de muitos teólogos que trataram deste tema em seus epítomes teológicos. 

PLATÃO E A IMORTALIDADE DA ALMA


Segundo o filósofo, a alma e o corpo são substâncias que diferem entre si. A alma é a parte imortal do homem. Sua origem é divina e desceu do céus onde desfrutava, em sua pré existência, de uma alegria indizível para vir habitar no corpo, especificamente na “cabeça”. O corpo, por sua vez, é constituído de matéria e, sendo assim, é uma substância inferior e de valor pífio em relação à alma. Na morte, o corpo se desintegra, mas a alma, que é a parte racional do homem, retorna ao céu, caso suas ações, enquanto esteve presente na terra vivendo num corpo tenham sido honoráveis. Do contrário, com a morte do corpo na qual habitava, a alma, que é indestrutível, retorna para habitar em outro homem ou em um animal.  

Para Platão, a imortalidade da alma está ligada à metafísica  racionalista que enfatiza aquilo que é racional como algo verdadeiro e superior, e o que não é racional é reputado como algo inferior. Desse modo, a alma é considerada como uma substância superior, indestrutível e, portanto, imortal, enquanto o corpo é uma substância inferior, mortal e passível de ser destruído. Platão considerava o corpo como um túmulo para a alma que, indubitavelmente, é mais feliz sem ele.

Portanto, de acordo com esse conceito, a ressurreição e a glorificação do corpo, que acontecerão no último dia, na segunda vinda de Cristo, não são necessários, uma vez que o próprio Platão não acreditava neste evento final. 

Explanação


Não obstante, será que vemos nas Escrituras o conceito de "imortalidade da alma"? As Escrituras utilizam a expressão “imortalidade da alma”? Vejamos, pois:

1) As distinções de significado do termo imortalidade

Nas Escrituras, o termo imortalidade aparece somente no Novo Testamento por três vezes. Esse termo é usado exclusivamente por Paulo, e aparece duas vezes em 1 Coríntios 15.53-54 e uma vez em 1 Timóteo 6.16. Todavia, devemos observar que o termo imortalidade não tem o mesmo sentido em cada uma dessas duas passagens em que aparece. Em cada uma delas há um sentido diferente. 

No grego, existem duas palavras que são traduzidas pela maioria das versões Bíblicas por imortalidade, que são αθανασια (athanasia) e αφθαρσια (aphtharsia). Athanasia é a palavra grega utilizada  em 1Coríntios 15.53-54. Dese modo, vejamos, então, o significado do termo imortalidade baseado no contexto de cada uma das passagens supramencionadas.

a) A IMORTALIDADE EM RELAÇÃO AO HOMEM

Análise do texto 

1 Coríntios 15.53-54 - Pois é necessário que aquilo que é corruptível se revista de incorruptibilidade, e aquilo que é mortal, se revista de αθανασια (athanasia) imortalidade. Quando, porém, o que é corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal, de αθανασια (athanasia) imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: A morte foi destruída pela vitória! (NVI)

Paulo ressalta o que vai acontecer não com todos os homens, mas especificamente com os cristãos que estiverem vivos bem como os cristãos que já haviam morrido por ocasião da segunda vinda de Cristo (vs.52), que é um evento designado para o futuro. O apóstolo se refere necessariamente ao efeito da transformação que ocorrerá não somente nos corpos dos cristãos [vivos e mortos] em virtude da glorificação, mas na natureza constitucional deles num todo; tanto a parte material [corpo] bem como a imaterial [espírito] serão transformadas e revestidas da imortalidade pelo poder Deus.

Embora o foco da passagem esteja na ressurreição do corpo, ainda assim, não há qualquer alusão sobre a imortalidade da alma. Paulo não descreve a imortalidade aqui como uma característica isolada, restrita a alma do cristão; antes, ele enfatiza a imortalidade da pessoa completa do cristão.  

Se Adão não tivesse pecado contra Deus, viveria para sempre. Não que ele possuísse em sua natureza a imortalidade, mas que Deus o conservaria pelo seu poder no estado de imortalidade (Gn 2.16-17). Nessa linha de pensamento, Berkhof escreve:

O termo “imortalidade” é empregado na teologia para destacar o estado do homem no qual ele está inteiramente livre das sementes da decadência e da morte. Nesse sentido, o homem era imortal [conservado por Deus nesse estado - minha ênfase] antes da Queda. Esse estado evidentemente não excluía a possibilidade do homem se tornar sujeito à morte. Embora o homem, no estado de retidão não estivesse sujeito à morte, todavia, estava propenso a ela. Era inteiramente possível que, mediante o pecado, ele se tornasse sujeito à lei da morte; e o fato é que ele caiu vítima dela.[1]

É importante ressaltarmos que o homem é uma totalidade, isto é, uma unidade psicossomática, um ser unipessoal, e não um ser dividido em duas ou três partes, conforme a dicotomia e a tricotomia atestam. 

Não obstante, a outra palavra grega que geralmente é traduzida por imortalidade é aphtharsia, que denota “ausência de morte, e se refere a plenitude de vida”.[2] Traz a ideia de algo que é imperecível. Essa palavra aparece sete vezes em todo o Novo Testamento. Em Romanos 2.7, aphtharsia é usada para indicar o alvo e o motivo da perseverança dos cristãos em buscar viver uma vida piedosa que glorifica a Deus.

Em 2 Timóteo 1.10, essa mesma palavra mostra que a obra da redenção dos pecadores eleitos já estava planejada antes da criação, na eternidade (vs.9), e que em sua primeira vinda, Cristo a executou trazendo a salvação e a imortalidade ou αφθαρσια (aphtharsia) “imperecibilidade” a todos quanto o Pai escolheu nele. Em 1 Coríntios 15, aphtharsia aparece quatro vezes nos versículos 42, 50, 53-54.  Porém, em nenhuma dessas passagens, essa palavra é usada como se referindo a parte imaterial do homem, alma.     

O adjetivo grego derivado da palavra aphtharsia αφθαρτος (aphthartos), é também usado sete vezes no Novo Testamento. Aphthartos é usado na maioria dos casos por Paulo. Em Romanos 1.23 e 1 Timóteo 1.17, essa palavra é usada para descrever Deus; em 1 Coríntios 15.52 para descrever a ressurreição do corpo e a sua glorificação, que o tornará incorruptível ou, numa tradução mais exata, αφθαρτος (aphthartos) – “impericível ou indestrutível”. Em 1 Coríntios 9.25, a mesma palavra grega é usada para descrever a coroa incorruptível, a saber, a vida.

Nas três ocasiões restantes, αφθαρτος (aphthartos) aparece em 1 Pedro 1.4, onde se refere a herança incorruptível ou  “imperecível” da salvação, que é sem mácula, imarcescível e está guardada nos céus para os eleitos. Em 1.23, esse adjetivo realça a semente incorruptível ou “imperecível”, da qual os eleitos nasceram de novo. Em 3.4, aphthartos salienta a beleza interior “imperecível” de um espírito manso e tranquilo, que é de grande valor perante Deus. Portanto, concluímos, então, que as Escrituras não utilizam o termo “imortalidade da alma”.

Em contraposição, alguns teólogos reformados do passado, como Calvino, Charles Hodge, A.A. Hodge, William G.T. Shedd e Berkhof, utilizaram e defenderam a expressão “imortalidade da alma”. Em suma, esses teólogos afirmaram em seus compêndios teológicos a “imortalidade da alma” como um tipo de conceito que não prejudicava em nada o que as Escrituras ensinavam sobre o assunto, mesmo que tal expressão não exista nas mesmas. 

Charles Hodge, por exemplo, ressalta que a doutrina protestante acerca do estado da alma depois da morte inclui, sobretudo, a existência contínua da alma depois da dissolução do corpo. Isso se opõe não só a doutrina de que a alma é meramente uma função do corpo e com ele perece, mas também à doutrina do sono da alma durante o intervalo entre a morte e a ressurreição.[3]

Calvino, por sua vez, mencionou nas Instituas a imortalidade da alma como um tipo de doutrina[4], porém, ele também admite que o estado de imortalidade não provém da própria natureza da alma em si; antes, é Deus quem conserva a alma imortal pelo seu poder.[5] Também, em seu Comentário Bíblico expositivo de 1 Coríntios, Calvino afirma na interpretação dos versículos 45 e 47 do capítulo 15, que o homem [Adão] tem uma alma imortal.[6]
        
Por outro lado, Berkouwer rejeita a imortalidade da alma como um tipo de doutrina cristã defendida por esses teólogos citados. Ele escreve:

As Escrituras nunca se ocupam de um interesse independente na imortalidade como tal, não mencionando a imortalidade de uma parte do homem que despreza e sobrevive à morte sob todas as circunstâncias e sobre a qual podemos refletir bem à parte da relação do homem com o Deus vivo.[7]

Embora não haja certa unanimidade entre os  teólogos reformados do passado acerca da imortalidade da alma, como, então, entender essa questão? A imortalidade da alma é um tipo de doutrina mesmo que tal expressão não apareça nas Escrituras? A ideia de imortalidade da alma está em harmonia com o que as Escrituras ensinam sobre o homem? Em que sentido o homem, no caso o cristão, é imortal? Vejamos a resposta para essas perguntas de forma mais ampla, a seguir:   

b) A IMORTALIDADE EM RELAÇÃO A DEUS

Análise do texto

1 Timóteo 6.16 - O único que possui αθανασια (athanasia) imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém!” (ARA)

Essa é a segunda passagem em que o termo “imortalidade” aparece em todo o Novo Testamento. Paulo diz que Deus é o único que possui a imortalidade em sua natureza, ou seja, essencialmente, Ele é o único ser imortal que habita em luz inacessível e que nenhum homem o viu e jamais poderá vê-lo. Acerca disso, Hendriksen escreve:

A ideia de vida, implícita na imortalidade, naturalmente leva a ideia de luz. Nele [em Jesus] estava a vida, e a vida era a luz dos homens (Jo 1.4). Esta luz é como o sol. Necessitamos dele para ver, porém, não podemos fitá-lo, porque seu brilho é por demais intenso. Nesse sentido, Deus habita na luz inacessível. A metáfora é ainda mais forte que aquela empregada no Salmo 104.2 (“coberto de luz como de um manto”). Como uma casa que protege os seus moradores e os esconde ainda mais quando a luz é inacessível, assim é a própria essência de Deus em virtude do que ela é, o protege. Daí, o termo luz, como aqui usado, reenfatiza sua incomparável grandeza.[8]  

John Stott ratifica, mas acrescentando que Deus, por ser invisível, está fora da capacidade de visão humana e totalmente além da compreensão dos homens, pois Ele é aquele que ninguém viu nem pode ver. O máximo que seus olhos humanos tiveram a permissão de contemplar foi a sua glória (Ex 24.9-11; Is 6.1-5; Ez 1.28), suas costas, mas não a sua face (Ex 33.18-23), e suas aparições em teofanias (Gn 16.7-14) ou a sua imagem em seu Filho encarnado (Jo 1.18; 14.6, 8-9; Cl 1.15).[9]

Mesmo na eternidade, com os corpos glorificados e livres da presença do pecado, ainda assim os cristãos não verão a Deus (Jo 1.18). No entanto, veremos Deus por meio de Cristo (Ap 22.4; 1Jo 3.2). Quando a terra for restaurada, não haverá templo para cultuarmos, antes, o templo será o próprio Deus (Ap 21.22). Chegará o dia em que não seremos mais habitados pelo Espírito Santo e que o papel de Cristo como o nosso mediador entre Deus cessará, pois abitaremos em Deus. A nova Jerusalém é tanto uma cidade que desce do céu bem como a igreja que habitará dentro do próprio Deus!

Contudo, o fato de que habitaremos em Deus na eternidade, não significa que iremos penetrar ou compartilhar dos seus atributos incomunicáveis que fazem parte da sua natureza singular e que são restritos a Ele. Não teremos a nossa natureza finita transformada em infinita. Mesmo na eternidade e com os corpos transformados pela glorificação, não teremos em nós mesmos a capacidade de nos mantermos neste estado para sempre. Pelo contrário, seremos mantidos ou preservados pelo Espírito Santo [veja Ap 22.1-2] nesse estado de glorificação habitando em Deus. Portanto, habitaremos em Deus no sentido de que Ele irá residir com o seu povo na nova Jerusalém [a terra restaurada] que será um "templo" (Ap 21.22-24).

Simon Kistemaker corrobora que a presença de Deus e de Cristo serve como o templo da nova Jerusalém. Deus será o soberano e Senhor, o todo poderoso, o qual habita com os eleitos na nova Jerusalém. O templo e a cidade são um e o mesmo.[10] Habitaremos em Deus e o veremos mediante a face de Cristo, que é a imagem exata do seu ser (Cl 1.14-15; Hb 1.3).

Retomando ao assunto da imortalidade, todos os seres que Deus criou [homens e anjos] não possuem em sua natureza a imortalidade; antes, são mortais e passíveis de serem separados de Deus, como no caso dos anjos que se rebelaram. No entanto, há um sentido em que o homem é imortal, porém, não no sentido essencial como Deus.

A imortalidade faz parte da natureza de Deus. Logo, a questão da imortalidade deve ser entendida no sentido de que o homem vai existir para sempre. Ele nunca deixará de existir mesmo depois da morte, pois viverá eternamente com Deus, salvo, ou viverá eternamente perdido em condenação. Dessa perspectiva, o homem é imortal.  

Seria um equívoco entendermos a questão da imortalidade no sentido de que o homem não morre literalmente e possui uma natureza imortal, uma vez que o homem morre literalmente devido ao pecado (Rm 6.23). Em vista disso, os homens não são mortais somente porque são separados de Deus por causa de seus pecados, mas são separados de si mesmos, quando o corpo [que é o homem] se separa do espírito [que também é o homem] na morte.

Conforme vimos anteriormente, o homem não é um ser constitucional dividido em duas ou três partes; ele é um ser unipessoal composto de duas partes [material e imaterial] que formam a sua constituição psicossomática. Existem casos de homens mortos espiritualmente que não foram vivificados ou regenerados e morreram fisicamente. Esses, depois da ressurreição [uma vez que os ímpios também ressuscitarão para serem julgados], continuarão mortos espiritualmente para sempre, quando serão lançados no lago de fogo vivos e conscientes para sofrerem a condenação (Ap 20.11-15).

Finalmente, os homens morrem porque recebem vida e a vida lhes é tirada. A imortalidade não faz parte da essência humana. Por outro lado, a vida é essencial em Deus. Se Deus pode morrer, Ele perde a sua própria essência. Por isso Ele é o único que é imortal. A imortalidade de Deus consiste no fato de Ele também ser infinito, espiritual, independente, soberano, etc. 

2) A revelação geral denota a existência eterna do homem

A revelação geral é o meio no qual Deus se revela aos homens através da criação, consciência e história, além de Jesus Cristo pelas Escrituras. Existem várias passagens na Escritura que falam acerca da revelação geral (veja Sl 19.1-4; 1Co 1.21; Hb 1.1-2 dentre outras). Bavinck escreve:

A revelação geral, apesar de estar contida na natureza, é, contudo, extraída da Sagrada Escritura, pois, sem ela, nós, seres humanos, por causa da escuridão de nosso entendimento, nunca teríamos sido capazes de encontrá-la na natureza. Sendo assim, a Escritura lança luz sobre nosso caminho através do mundo, e coloca em nossas mãos a verdadeira compreensão da natureza e da história. Ela nos faz ver Deus onde nós, de outra forma, não o veríamos. Iluminados por ela nós contemplamos as excelências de Deus em toda a expansão das obras de Suas mãos.[11]

A revelação geral não tem o poder de salvar ou gerar a fé salvadora numa pessoa. Por outro lado, alguns teólogos entendem a revelação geral como uma espécie de “graça comum” sobre os ímpios. Contudo, em Romanos 1.18-20, Paulo declara que a revelação geral é meramente uma revelação da ira de Deus sobre o ímpio, cuja função é deixá-lo sem desculpa perante Jesus no dia do julgamento final. 

Ronald Hanko diz:

A manifestação de Deus nas coisas que foram criadas é a razão pela qual ninguém será capaz de se queixar no dia do juízo que não conhecia a Deus. Se considerarmos Romanos 1, não existe nenhum ateu. [...] O único resultado dessa manifestação de Deus, no que diz respeito ao ímpio, é que eles recusam glorificar a Deus, continuam a serem ingratos, e transformam a glória de Deus, manifesta a eles e neles, em imagens de coisas corruptíveis (vs. 21-25). [...] Eles, de acordo com Romanos 1, não estão procurando a verdade, mas suprimindo-a (v. 25). A sua filosofia e religião não representam um pequeno princípio da verdade ou um amor pela verdade, mas a verdade recusada e abandonada. [...] A revelação geral, portanto, serve somente para aumentar a culpa daqueles que não ouvem ou não creem no evangelho.[12]  

Por meio desses aspectos que formam o pilar da revelação geral (criação, consciência, história), Deus não somente revela-se ao homem como um ser superior incriado, supremo, eterno, infinito, mas, sobretudo, que a vida não cessa após a morte; antes, que existe vida após a morte.

Quero analisar cinco argumentos concernentes à revelação geral baseados na criação, consciência e história [com exceção de Jesus Cristo, pelas Escrituras] não apenas acerca da existência de Deus, mas também sobre a existência eterna do homem.    

a) O argumento ontológico

Alguns estudiosos têm argumentado que não existe no mundo pessoas que são céticas ou descrentes. Eles dizem que a noção absoluta da religião é universal. Por mais depravados que sejam diante de Deus, todos os homens , sem exceção, possuem o conhecimento da existência de Deus e da vida após a morte pela consciência, ainda que este conhecimento esteja obscurecido pelo pecado. Para os que não acreditam nisso, existem duas opções: Ou a humanidade está mergulhada numa superstição tola e absurda da existência de Deus e da vida após a morte ou o conhecimento da existência de Deus e da vida após a morte, ainda que distorcido pelo pecado, é presente na consciência de todos homens. A segunda opção parece ser a mais coerente de acordo com a fé Crista.

Bavinck corrobora que há na consciência de todos os homens alguma noção de um ser supremo sobre o qual não se pode conceber algo que seja mais elevado, e que é auto existente. Se tal ser não existe, a maior, mais perfeita e mais inevitável ideia seria uma ilusão, e o homem perderia sua confiança na validade de sua consciência.[13]    

b) O argumento cosmológico

Este argumento parte do pressuposto de que, se algo existe, com base nesse algo concluímos que há uma causa primária e suficiente que causou a existência desse algo. Sendo assim, tudo que tem um começo ou veio a existir tem uma causa primária por detrás. Thomás de Aquino disse que o nada não pode causar a si mesmo, caso contrário teria de conferir existência a si mesmo [isto é, causar a sua própria existência], o que é impossível. Tudo o que é causado, portanto, é causado por alguma outra coisa.[14] 

Sendo assim, o mundo não veio a existir do nada nem tampouco se auto causou. Com base na lógica racional da fé, entendemos e cremos que o mundo foi criado por Deus.   

c) O argumento histórico

Ao longo dos anos, sempre houveram pessoas, eruditos e filósofos descrentes que negavam a existência de Deus e da vida após a morte. Contudo, de forma geral, a crença na existência disso é estabelecida em várias religiões e entre pessoas do mundo todo. Esta “crença comum” na existência de Deus e da vida após a morte é baseada em argumentos históricos que foram passados de geração para geração através de pessoas e da literatura.

d) O argumento teológico

Este argumento acentua que Deus, pela sua providência, poder e sabedoria, governa com equidade toda a sua criação, onde nada acontece fora da sua vontade e sem que Ele tenha predeterminado todas as coisas pela sua Soberania Absoluta. Bavinck enfatiza:

O mundo, em suas leis e ordenanças, em sua unidade e harmonia e na organização de todas as suas criaturas, exibe um propósito cuja explicação seria ridícula na base da casualidade, e que, portanto, aponta para um ser todo abrangente e todo poderoso que com mente infinita estabeleceu esse propósito, e por seu poder infinito e onipresente age para alcançá-lo.[15]

e) O argumento moral

Este argumento é uma conseqüência do argumento ontológico, e trata do homem como um ser racional e moralmente responsável pelos seus atos. O homem “sente em sua consciência que é limitado por uma lei que está acima de si mesmo e que requer obediência incondicional de sua parte. Tal lei pressupõe um Santo e Justo legislador que pode preservar e destruir”;[16] ou seja, fazer o que quiser (Sl 115.3).

Hoekema, em seu livro A Bíblia e o futuro, aduz quatro argumentos acerca do termo “imortalidade da alma”. Senão vejamos:   

1) As Escrituras não utilizam a expressão “imortalidade da alma”. A palavra imortalidade é aplicada a Deus, à existência total do homem na hora da ressurreição, e a coisas tais como a coroa e a semente incorruptível da Palavra, mas nunca para a alma do homem.

2) As Escrituras não ensinam a existência continuada da alma devido a sua indestrutibilidade inerente. Este argumento está relacionado com a visão metafísica do homem. Na filosofia de Platão, por exemplo, a alma é considerada indestrutível porque ela faz parte de uma realidade metafísica superior à do corpo. A alma é considerada como uma substância não criada, eterna e, por causa disso, divina. Mas as Escrituras não ensinam esse tipo de conceito da alma. De acordo com as Escrituras, o homem foi criado por Deus e continua a ser dependente de Deus para sua existência, não podemos indicar no homem nenhuma qualidade ou qualquer aspecto do homem que o faça indestrutível.

3) As Escrituras não ensinam que uma simples existência contínua após a morte seja supremamente desejável, porém, insistem que uma vida em comunhão com Deus é o maior bem do homem. O conceito de imortalidade da alma, como tal, não diz nada acerca da qualidade de vida após a morte; ele simplesmente afirma que a alma continua a existir. Mas isto não é o que as Escrituras enfatizam.

O que a Bíblia salienta, é que viver separado de Deus é morte, e que relação e comunhão com Deus é vida verdadeira. Esta vida verdadeira já é desfrutada por aqueles que creem em Cristo (Jo 3.36; 5.24; 17.3). A vida em comunhão com Deus continuará a ser desfrutada pelos crentes após a morte, conforme Paulo ensina em Filipenses (1.21-23) e em 2 Coríntios (5.8). É esse tipo de existência após a morte que as Escrituras nos apresentam como um estado a ser anelado. Elas ensinam que mesmo aqueles que não têm esta vida verdadeiramente espiritual, continuarão a existir após a morte; sua existência continuada, entretanto, não será uma existência feliz, mas de tormento e angústia (2Pe 2.9; Lc 16.23,25).

4) A mensagem das Escrituras acerca do futuro do homem é a ressurreição do corpo. (...) De acordo com as Escrituras, o corpo não é menos real do que a alma; Deus criou o homem em sua totalidade, corpo e alma. Nem o corpo é inferior à alma, nem é não-essencial à verdadeira existência do homem; se fosse assim, Jesus nunca poderia ter assumido uma natureza humana genuína, com um corpo humano genuíno.

No ensino bíblico, o corpo não é um túmulo para a alma [conforme acreditava Platão e outros], mas um templo do Espírito Santo; o homem não é completo sem o corpo. Por causa disso, o futuro estado da bênção do crente não é simplesmente a existência continuada de sua alma, mas inclui, como seu aspecto mais rico, a ressurreição de seu corpo. Esta ressurreição será, para os crentes, uma transição para a glória, na qual nossos corpos deverão tornar-se semelhantes ao corpo glorioso de Cristo (Fp 3.21).[17]

Conclusão

Diante de tudo, entendemos que o conceito de imortalidade da alma não pode ser considerada uma doutrina legitimamente cristã. Pelo contrário, o ponto central que rege a escatologia bíblica correta é o conceito da ressurreição do corpo. A imortalidade, portanto, deve ser aplicada não a alma de forma isolada, mas ao homem num todo [especificamente ao cristão]. Visto que o ímpio também existirá para sempre condenado ao lago de fogo, os cristãos é que são considerados imortais porque somente eles possuem a vida eterna em Jesus Cristo.

Os corpos dos cristãos ainda serão transformados pela glorificação para o desfrute pleno da imortalidade com Deus na terra restaurada em toda a sua constituição. 

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Notas:

1 Berkhof. Teologia Sistemática, pág 668.
2 William Hendriksen. 1, 2 Timóteo e Tito, pág 260.
3 Charles Hodge. Teologia Sistemática, pág 1547.
4 Calvino. As Institutas I, capítulo XV, 2, pág 186.
5 Ibid. III, capítulo XXV, 6, pág 454-455.
6 Calvino. 1 Coríntios, pág 496-499.
7 Antony Hoekema citando Berkouwer em A Bíblia e o Futuro, capítulo 8.
8 William Hendriksen. 1, 2 Timóteo e Tito, pág 261.
9 John Stott. A mensagem de 1 Timóteo e Tito, pág 163.
10 Simon Kistemaker. Apocalipse, pág 719-720.
11 Herman Bavinck. Teologia Sistemática (Socep), pág 40.  
12 Ronald Hanko. Doctrine according to Godliness. Reformed Free Publishing Association, pág. 8-9.
13 Herman Bavinck. Teologia Sistemática (Socep), pág 42. 
14 William Lane Craig citando Tomás de Aquino em Apologética Contemporânea, pág 93.
15 Herman Bavinck. Teologia Sistemática (Socep), pág 42.
16 Herman Bavinck. Teologia Sistemática (Socep), pág 43.
17 Antony Hoekema. A Bíblia e o futuro, capítulo 8.

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Autor: Leonardo Dâmaso
Fonte: Bereianos
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