.
Todos, sem exceção, se indagam sobre essa questão do “porquê”. Annie Lennox lança um assolador “Por quê?” em sua angustiante canção homônima[1], na qual a cantora investiga suas próprias futilidades e o alquebramento que existe entre ela e os outros.
Por quê? Por que há valentões no parquinho? Por que há vermes e lagartas lutando pela vida no passeio ou no asfalto após a chuva? Em primeiro lugar, por que tanto concreto e asfalto? E tantos formigueiros de formigas-de-fogo? Por que há digitária no meu jardim ao invés da viçosa grama-bermudas ou da festuca? Por que é tão difícil aprender, mas tão fácil esquecer? Qual o motivo de existir o movimento Rastafari ou a religião sincretista caribenha da Santeria? Por que há essa repugnante reificação das mulheres e do corpo feminino? Por que essa viciosa predação entre animais que podemos ver no Animal Planet?
Por que a humanidade é esse lobo voraz para si mesma – homo homini lupus[2]? Por que existem diretores executivos super-gananciosos? Por que Chris morreu de aneurisma cerebral no último ano, apenas duas semanas após termos sido companheiros de quarto numa conferência? Por que, no momento em que escrevo este artigo, meu amigo e também colega de profissão, Rodney, está lutando pela vida numa UTI com pancreatite? Por que minha mãe teve que suportar uma dúzia de complicadas cirurgias de câncer antes de morrer? Por que ainda há tanto racismo no mundo? Por que tanta solidão? Por que há tão rígidas distinções sociais e de classe no Plaza, no Broadmoor, ou no Biltmore? Wo ist Gott[3]? Por quê? Ad nauseam[4].
Desconheço se há uma interpretação oficial dessa canção infantil que provavelmente ouvimos assentados no colo de nossas mães ao longo de toda nossa infância. Mas é possível vê-la como uma parábola representando a criação e queda da humanidade, um instantâneo daquilo que aconteceu no espaço compreendido em Gênesis 1 a 3. E é a narrativa apresentada no terceiro capítulo mais especificamente que nos mostra o que deu errado – ela nos faz compreender a razão pela qual nós e todas as demais coisas se encontram tão desordenados atualmente.
No princípio, na criação, “Humpty Dumpty” se assentou sobre um muro, tendo uma natureza “muito boa”. Mas, então, “Humpty Dumpty” sofreu uma grande “queda” – mergulhando no pecado. Uma vez que era apenas um frágil ovo, as consequências foram devastadoras. Nenhuma quantidade de esforço humano, quer realizado pelos cavalos do rei ou pelos homens do rei, foi capaz de coloca-lo novamente em seu lugar.
A canção infantil termina em desespero. Não se oferece uma solução para a “quebra” de Humpty Dumpty. Contudo, felizmente a Bíblia não termina do mesmo modo. Ele continua explicando como Deus coloca Humpty Dumpty novamente em seu lugar por meio de Jesus Cristo. Essa é a narrativa da Redenção. Mas estamos nos adiantando no assunto... Por enquanto, queremos utilizar esses quartos versos da canção infantil a fim de ilustrar a Queda e a consequente e ampla devastação que ela deixou em seu rastro.
Este é o segundo “ato” da narrativa cósmica das Escrituras, o segundo maior tema na visão bíblica da vida e do mundo. Num primeiro momento, nos são apresentadas as boas-novas da criação, mas agora temos as más notícias da queda. Isso introduz um conflito fundamental no drama bíblico, o qual deve ser resolvido antes que termine o enredo de Deus. Tal relato demonstra, ao contrário de outras cosmovisões, que o mal não está enraizado na criação em si mesma, mas, sim, na rebelião moral da raça humana contra a autoridade divina do Deus santo. Às vezes costumo chamar esse episódio de “descriação”, devido ao dano que ele causou ao mundo muito bom criado por Deus: chamo-o assim devido à forma como a Queda distorceu as intenções divinas para a humanidade, o nosso conhecimento, o nosso amor, a nossa capacidade de criação cultural, e, enfim, toda a terra.
Por vezes, contudo, achamos difícil levar a sério essa narrativa primitiva. Por quê? Provavelmente porque ela tem sido frequentemente satirizada. Como Herbert Schlossberg observou: “Séculos de arte religiosa e, recentemente, centenas de animações de mulheres nuas, maçãs e serpentes têm servido para nos distrair do significa da Queda em Gênesis 3”.
Atualmente, como James Smith me ajudou a compreender, a narrativa da Queda é ridicularizada à luz da vigente noção evolucionária da predação e da necessidade da morte para a sobrevivência e desenvolvimento das espécies mais adaptadas.
Independentemente disso, nós devemos tentar deixar nossos preconceitos contemporâneos de lado, e descobrir que, embora possa ser difícil para nós entendermos essa narrativa, ela, contudo, faz com que muitas outras coisas sejam compreensíveis, como Peter Kreeft já disse – ela esclarece, por exemplo, nosso persistente abatimento e a profunda dor do mundo.
Os cinco primeiros versículos de Gênesis 3 são um relato da tentação da mulher. O versículo 1 nos informa que a serpente, a mais astuta das alimárias, foi usada por Satanás como o agente da tentação (Apocalipse 12:9; 20:2). Confrontando Eva, o Diabo lança uma pergunta perscrutadora: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?”. A serpente/Satanás não apenas testa o conhecimento da mulher a respeito da palavra de Deus, como também busca difamar o caráter divino ao sugerir sutilmente que Deus é mesquinho em Suas provisões para o homem. Nos versos 2 e 3 a mulher responde recitando o mandamento originalmente dado por Deus (Gênesis 2:16-17). Ela acrescenta, contudo, que o fruto proibido não deveria sequer ser tocado, e muito menos comido, para que eles não morressem. Assim, será que Eva foi a primeira legalista? Numa tentativa de persuadir a mulher a seguir seu próprio percurso revoltoso, a serpente/Satanás nega categoricamente a afirmação divina de que a desobediência resultaria em morte. Ele prossegue nessa sua negação assegurando que o comer da árvore proibida não resultaria em morte, antes transformaria o homem e a mulher em verdadeiros deuses. Eles poderiam fazer o que lhes aprouvesse, viver em liberdade da forma como lhes agradasse. Infelizmente a mulher acredita em tais mentiras, e convence seu marido a se unir a ela naquela insurreição contra o Criador.
Naquele momento tudo mudou. Uma nova consciência passou a dominá-los. Eles perderam a inocência e descobriram a vergonha. O pecado atingiu o ponto mais íntimo de sua humanidade, na sua sexualidade. Eles tentaram cobrir sua nudez com folhas de figueira. As trágicas consequências de sua autoafirmação orgulhosa seguiram-se imediatamente. O restante de Gênesis 3 descreve essas consequências na forma de quatro separações e três maldições.
Primeiramente, os seres humanos são separados de Deus (Gênesis 3:8-9). Quando o SENHOR veio habitualmente ao cair da tarde para fazer companhia ao homem e sua esposa, a reação do casal agora caído é a seguinte: eles “se esconderam da presença do SENHOR Deus, entre as árvores do Jardim” (Gênesis 3:8). Ao invés de irem jubilosamente ao encontro de seu Criador, eles agora se escondem, embaraçosamente distantes. Eles estão envergonhados, não apenas entre si, mas também perante Deus. O propósito para o qual Deus criou esse primeiro casal é frustrado – é separado do Autor da vida. Desse modo, devido ao pecado, o problema fundamental da raça humana é, essencialmente, espiritual e teológico: nós estamos afastados de Deus. Agora passamos a adorar os ídolos. Humpty Dumpty sofreu uma grande queda.
A segunda separação: os homens estão separados de e dentro de si mesmos (Gênesis 3:10). O afastamento de Deus tem repercussões internas diretas. Quando o SENHOR indagou ao homem onde se encontrava, ele respondeu em palavras que revelam um estado interior radicalmente alterado: “Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me.” (Gênesis 3:10). O medo, a vergonha e a culpa estilhaçaram o sentimento de integralidade e bem-estar que o homem anteriormente possuía. A linha divisória entre o bem e o mal atravessa o coração de todos os seres humanos, como Solzhenitsyn observou. Em razão do pecado, portanto, a humanidade tem sofrido um dano interior significativo; estamos profundamente dilacerados por dentro. Assim, buscamos inutilmente a felicidade e a completude por conta própria, em uma vida de pura imanência debaixo do sol. Humpty Dumpty sofreu uma grande queda.
Em terceiro lugar, os seres humanos foram separados uns dos outros (Gênesis 3:11-13). Quando Deus indagou ao homem a respeito de sua nudez, e se ele havia comido ou não o fruto proibido, ele imediatamente buscou se defender e culpar a outrem por seu erro. “A mulher”, diz ele, “que Tu me destes, ela me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gênesis 3:12, ênfase acrescentada). Este episódio marca o início não apenas da batalha dos sexos, mas também das profundas divisões dentro da comunidade humana. Nossa alienação teológica e psicológica tiveram repercussões sociais significativas. O pecado não apenas nos separa de Deus e de nós mesmos, mas também uns dos outros. Humpty Dumpty sofreu uma grande queda. Nesse ponto da narrativa, Deus anuncia uma série de maldições: sobre a serpente, cuja humilhante derrota “com a cara na poeira”[7] é profetizada; sobre a mulher, que sofrerá arduamente como mulher e mãe; e, por último, sobre o homem, que deve suar abundantemente para ter domínio sobre a terra. Para, depois de tudo isso, morrermos.
Tendo sido estes três julgamentos outorgados, uma separação final é descrita no final de Gênesis 3. Deus expulsa o primeiro casal humano do Jardim, e coloca um batalhão angélico na entrada leste, com o intuito de evitar que os homens entrem novamente (Gênesis 3:20-24). Nós trocamos a graça e a benção do Éden pelo caos e confusão de um mundo alquebrado. Desde então, buscamos reconquistar nossa felicidade por meio de nossos próprios esforços “utópicos”, individual ou coletivamente.
Apenas Deus e Seu reino podem preencher os anseios do coração. A vida sem Deus é vã e fútil. Humpty Dumpty sofreu uma grande queda.
Usando as palavras de Francis Schaeffer, Gênesis 3 conta a narrativa da Queda histórica espaço-temporal e seus resultados[8]. No cerne deste episódio estava a busca humana equivocada por liberdade, autonomia, autolegislação e independência. Os resultados dessa busca foram ignorância e o mau desejo. Os efeitos noéticos e afetivos do pecado desestruturaram nossas vidas de modo horrível. As quatro separações, juntamente com as três maldições, convergem na morte. O mundo é, agora, um cemitério cósmico, gemendo em desespero, ansiando por libertação[9]. “Humpty Dumpty” sofreu uma grande queda. O que pode nos livrar desta morte? O que pode nos salvar dessa queda?
Continua nos próximos dias...
_______________
Notas do tradutor:
[1] Evidentemente que a canção é homônima na língua original do artigo, o inglês. Sendo assim, o título da música de Annie Lennox é “Why”.
[2] Frase extraída da obra Asinaria, do dramaturgo romano Plauto (Titus Maccius Plautus 230 a.C. - 180 a.C), a qual pode ser traduzida como “o homem é o lobo do homem”. O texto diz originalmente Lupus est homo homini non homo. Entretanto, a frase acabou sendo popularizada por Thomas Hobbes no século XVIII, e por isso, por vezes, é a ele atribuída.
[3] Do alemão: “Onde está Deus?”
[4] O termo latino ad nauseam diz respeito à falácia conhecida como argumentum ad nauseam, isto é, a argumentação que tenta se validar por meio da repetição constante de determinada questão – repete-se a mesma afirmação de modo insistente até o ponto de provocar "náusea" e fastio ao interlocutor objetor, de modo que ele abra mão da discussão, embora não concorde com a afirmação do seu oponente. No contexto do presente artigo, o autor quer dizer que a situação aludida se repete infinitamente até à exaustão.
[5] Esses versos fazem parte de uma canção infantil da época Vitoriana bastante difundida nos países de língua inglesa. Humpty Dumpty é uma espécie de ovo antropomórfico que, sentado num muro, cai de forma abrupta, partindo-se, sendo impossível de recompô-lo. O personagem foi extremamente popularizado pelas obras de Lewis Carroll, especialmente nas animações baseadas nos seus livros sobre Alice. O autor o utiliza como uma metáfora literária da condição pecaminosa do homem herdada de Adão. Autores como o irlandês James Joyce, em seu labiríntico Finnegans Wake, já trabalharam com essa associação entre Humpty Dumpty e o homem espiritualmente caído.
[6] A presente tradução da cantiga, que mantém as rimas e a musicalidade próprias, foi realizada por Maria Luiza X. de A. Borges, e se encontra na seguinte obra: CARROLL, Lewis. Alice – Edição Comentada. Notas de Martin Gardner. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 1. ed. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 200. Outra tradução também apropriada diz:
[7] No original, o autor utiliza um neologismo “dusteating" defeat, o qual traduzido literalmente soaria algo como “a derrota comedora de pó”, fazendo alusão à maldição proclamada em relação à serpente: “sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.” (Gênesis 3:14).
[8] O autor faz menção aqui ao livro Gênesis no Espaço-tempo, do Dr. Francis Schaffer, excelente apologista cultural. No livro, recentemente publicado pela Editora Monergismo, Schaffer demonstra como a narrativa de Gênesis, longe de ser uma mitologia fundacional (como creem os teólogos liberais), é um relato fiel às origens (do universo, da vida, e do homem como ser pessoal), constituindo-se como base sólida para o homem moderno.
[9] Tal como Paulo asseverou em sua carta aos Romanos, nos ensinando que a criação não será destruída, mas, sim, restaurada por Cristo: “Porque a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus. Porquanto a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e está com dores de parto até agora; e não só ela, mas até nós, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, aguardando a nossa adoção, a saber, a redenção do nosso corpo.” (Romanos 8: 19-23).
***
QUEDA
“Eis o problema fundamental da raça humana: nós estamos afastados de Deus.”
“E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom” (Genesis 1:31). No entanto, no nosso tempo as coisas não parecem tão atraentes. O que aconteceu? Por que tudo se encontra tão torto e alquebrado? Por que, Senhor? Por que me encontro tão curvado, tão alquebrado, e as demais pessoas também?Todos, sem exceção, se indagam sobre essa questão do “porquê”. Annie Lennox lança um assolador “Por quê?” em sua angustiante canção homônima[1], na qual a cantora investiga suas próprias futilidades e o alquebramento que existe entre ela e os outros.
These are the tears,
The tears we shed.
This is the fear,
This is the dread.
[Estas são as lágrimas,
As lágrimas que derramamos.
Este é o medo,
Este é o pavor.]
Por quê? Por que há valentões no parquinho? Por que há vermes e lagartas lutando pela vida no passeio ou no asfalto após a chuva? Em primeiro lugar, por que tanto concreto e asfalto? E tantos formigueiros de formigas-de-fogo? Por que há digitária no meu jardim ao invés da viçosa grama-bermudas ou da festuca? Por que é tão difícil aprender, mas tão fácil esquecer? Qual o motivo de existir o movimento Rastafari ou a religião sincretista caribenha da Santeria? Por que há essa repugnante reificação das mulheres e do corpo feminino? Por que essa viciosa predação entre animais que podemos ver no Animal Planet?
Por que a humanidade é esse lobo voraz para si mesma – homo homini lupus[2]? Por que existem diretores executivos super-gananciosos? Por que Chris morreu de aneurisma cerebral no último ano, apenas duas semanas após termos sido companheiros de quarto numa conferência? Por que, no momento em que escrevo este artigo, meu amigo e também colega de profissão, Rodney, está lutando pela vida numa UTI com pancreatite? Por que minha mãe teve que suportar uma dúzia de complicadas cirurgias de câncer antes de morrer? Por que ainda há tanto racismo no mundo? Por que tanta solidão? Por que há tão rígidas distinções sociais e de classe no Plaza, no Broadmoor, ou no Biltmore? Wo ist Gott[3]? Por quê? Ad nauseam[4].
Humpty Dumpty sat on a wall.
Humpty Dumpty had a great fall.
All the king's horses and all the king's men
Could not put Humpty Dumpty back together again[5].
[Humpty Dumpty num muro se aboletou,
Humpty Dumpty lá de cima despencou.
Todos os cavalos e os homens do Rei a arfar
Não conseguiram de novo lá para cima o içar.][6]
Desconheço se há uma interpretação oficial dessa canção infantil que provavelmente ouvimos assentados no colo de nossas mães ao longo de toda nossa infância. Mas é possível vê-la como uma parábola representando a criação e queda da humanidade, um instantâneo daquilo que aconteceu no espaço compreendido em Gênesis 1 a 3. E é a narrativa apresentada no terceiro capítulo mais especificamente que nos mostra o que deu errado – ela nos faz compreender a razão pela qual nós e todas as demais coisas se encontram tão desordenados atualmente.
No princípio, na criação, “Humpty Dumpty” se assentou sobre um muro, tendo uma natureza “muito boa”. Mas, então, “Humpty Dumpty” sofreu uma grande “queda” – mergulhando no pecado. Uma vez que era apenas um frágil ovo, as consequências foram devastadoras. Nenhuma quantidade de esforço humano, quer realizado pelos cavalos do rei ou pelos homens do rei, foi capaz de coloca-lo novamente em seu lugar.
A canção infantil termina em desespero. Não se oferece uma solução para a “quebra” de Humpty Dumpty. Contudo, felizmente a Bíblia não termina do mesmo modo. Ele continua explicando como Deus coloca Humpty Dumpty novamente em seu lugar por meio de Jesus Cristo. Essa é a narrativa da Redenção. Mas estamos nos adiantando no assunto... Por enquanto, queremos utilizar esses quartos versos da canção infantil a fim de ilustrar a Queda e a consequente e ampla devastação que ela deixou em seu rastro.
Este é o segundo “ato” da narrativa cósmica das Escrituras, o segundo maior tema na visão bíblica da vida e do mundo. Num primeiro momento, nos são apresentadas as boas-novas da criação, mas agora temos as más notícias da queda. Isso introduz um conflito fundamental no drama bíblico, o qual deve ser resolvido antes que termine o enredo de Deus. Tal relato demonstra, ao contrário de outras cosmovisões, que o mal não está enraizado na criação em si mesma, mas, sim, na rebelião moral da raça humana contra a autoridade divina do Deus santo. Às vezes costumo chamar esse episódio de “descriação”, devido ao dano que ele causou ao mundo muito bom criado por Deus: chamo-o assim devido à forma como a Queda distorceu as intenções divinas para a humanidade, o nosso conhecimento, o nosso amor, a nossa capacidade de criação cultural, e, enfim, toda a terra.
Por vezes, contudo, achamos difícil levar a sério essa narrativa primitiva. Por quê? Provavelmente porque ela tem sido frequentemente satirizada. Como Herbert Schlossberg observou: “Séculos de arte religiosa e, recentemente, centenas de animações de mulheres nuas, maçãs e serpentes têm servido para nos distrair do significa da Queda em Gênesis 3”.
Atualmente, como James Smith me ajudou a compreender, a narrativa da Queda é ridicularizada à luz da vigente noção evolucionária da predação e da necessidade da morte para a sobrevivência e desenvolvimento das espécies mais adaptadas.
Independentemente disso, nós devemos tentar deixar nossos preconceitos contemporâneos de lado, e descobrir que, embora possa ser difícil para nós entendermos essa narrativa, ela, contudo, faz com que muitas outras coisas sejam compreensíveis, como Peter Kreeft já disse – ela esclarece, por exemplo, nosso persistente abatimento e a profunda dor do mundo.
Os cinco primeiros versículos de Gênesis 3 são um relato da tentação da mulher. O versículo 1 nos informa que a serpente, a mais astuta das alimárias, foi usada por Satanás como o agente da tentação (Apocalipse 12:9; 20:2). Confrontando Eva, o Diabo lança uma pergunta perscrutadora: “É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?”. A serpente/Satanás não apenas testa o conhecimento da mulher a respeito da palavra de Deus, como também busca difamar o caráter divino ao sugerir sutilmente que Deus é mesquinho em Suas provisões para o homem. Nos versos 2 e 3 a mulher responde recitando o mandamento originalmente dado por Deus (Gênesis 2:16-17). Ela acrescenta, contudo, que o fruto proibido não deveria sequer ser tocado, e muito menos comido, para que eles não morressem. Assim, será que Eva foi a primeira legalista? Numa tentativa de persuadir a mulher a seguir seu próprio percurso revoltoso, a serpente/Satanás nega categoricamente a afirmação divina de que a desobediência resultaria em morte. Ele prossegue nessa sua negação assegurando que o comer da árvore proibida não resultaria em morte, antes transformaria o homem e a mulher em verdadeiros deuses. Eles poderiam fazer o que lhes aprouvesse, viver em liberdade da forma como lhes agradasse. Infelizmente a mulher acredita em tais mentiras, e convence seu marido a se unir a ela naquela insurreição contra o Criador.
Naquele momento tudo mudou. Uma nova consciência passou a dominá-los. Eles perderam a inocência e descobriram a vergonha. O pecado atingiu o ponto mais íntimo de sua humanidade, na sua sexualidade. Eles tentaram cobrir sua nudez com folhas de figueira. As trágicas consequências de sua autoafirmação orgulhosa seguiram-se imediatamente. O restante de Gênesis 3 descreve essas consequências na forma de quatro separações e três maldições.
Primeiramente, os seres humanos são separados de Deus (Gênesis 3:8-9). Quando o SENHOR veio habitualmente ao cair da tarde para fazer companhia ao homem e sua esposa, a reação do casal agora caído é a seguinte: eles “se esconderam da presença do SENHOR Deus, entre as árvores do Jardim” (Gênesis 3:8). Ao invés de irem jubilosamente ao encontro de seu Criador, eles agora se escondem, embaraçosamente distantes. Eles estão envergonhados, não apenas entre si, mas também perante Deus. O propósito para o qual Deus criou esse primeiro casal é frustrado – é separado do Autor da vida. Desse modo, devido ao pecado, o problema fundamental da raça humana é, essencialmente, espiritual e teológico: nós estamos afastados de Deus. Agora passamos a adorar os ídolos. Humpty Dumpty sofreu uma grande queda.
A segunda separação: os homens estão separados de e dentro de si mesmos (Gênesis 3:10). O afastamento de Deus tem repercussões internas diretas. Quando o SENHOR indagou ao homem onde se encontrava, ele respondeu em palavras que revelam um estado interior radicalmente alterado: “Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me.” (Gênesis 3:10). O medo, a vergonha e a culpa estilhaçaram o sentimento de integralidade e bem-estar que o homem anteriormente possuía. A linha divisória entre o bem e o mal atravessa o coração de todos os seres humanos, como Solzhenitsyn observou. Em razão do pecado, portanto, a humanidade tem sofrido um dano interior significativo; estamos profundamente dilacerados por dentro. Assim, buscamos inutilmente a felicidade e a completude por conta própria, em uma vida de pura imanência debaixo do sol. Humpty Dumpty sofreu uma grande queda.
Em terceiro lugar, os seres humanos foram separados uns dos outros (Gênesis 3:11-13). Quando Deus indagou ao homem a respeito de sua nudez, e se ele havia comido ou não o fruto proibido, ele imediatamente buscou se defender e culpar a outrem por seu erro. “A mulher”, diz ele, “que Tu me destes, ela me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gênesis 3:12, ênfase acrescentada). Este episódio marca o início não apenas da batalha dos sexos, mas também das profundas divisões dentro da comunidade humana. Nossa alienação teológica e psicológica tiveram repercussões sociais significativas. O pecado não apenas nos separa de Deus e de nós mesmos, mas também uns dos outros. Humpty Dumpty sofreu uma grande queda. Nesse ponto da narrativa, Deus anuncia uma série de maldições: sobre a serpente, cuja humilhante derrota “com a cara na poeira”[7] é profetizada; sobre a mulher, que sofrerá arduamente como mulher e mãe; e, por último, sobre o homem, que deve suar abundantemente para ter domínio sobre a terra. Para, depois de tudo isso, morrermos.
Tendo sido estes três julgamentos outorgados, uma separação final é descrita no final de Gênesis 3. Deus expulsa o primeiro casal humano do Jardim, e coloca um batalhão angélico na entrada leste, com o intuito de evitar que os homens entrem novamente (Gênesis 3:20-24). Nós trocamos a graça e a benção do Éden pelo caos e confusão de um mundo alquebrado. Desde então, buscamos reconquistar nossa felicidade por meio de nossos próprios esforços “utópicos”, individual ou coletivamente.
Apenas Deus e Seu reino podem preencher os anseios do coração. A vida sem Deus é vã e fútil. Humpty Dumpty sofreu uma grande queda.
Usando as palavras de Francis Schaeffer, Gênesis 3 conta a narrativa da Queda histórica espaço-temporal e seus resultados[8]. No cerne deste episódio estava a busca humana equivocada por liberdade, autonomia, autolegislação e independência. Os resultados dessa busca foram ignorância e o mau desejo. Os efeitos noéticos e afetivos do pecado desestruturaram nossas vidas de modo horrível. As quatro separações, juntamente com as três maldições, convergem na morte. O mundo é, agora, um cemitério cósmico, gemendo em desespero, ansiando por libertação[9]. “Humpty Dumpty” sofreu uma grande queda. O que pode nos livrar desta morte? O que pode nos salvar dessa queda?
Continua nos próximos dias...
_______________
Notas do tradutor:
[1] Evidentemente que a canção é homônima na língua original do artigo, o inglês. Sendo assim, o título da música de Annie Lennox é “Why”.
[2] Frase extraída da obra Asinaria, do dramaturgo romano Plauto (Titus Maccius Plautus 230 a.C. - 180 a.C), a qual pode ser traduzida como “o homem é o lobo do homem”. O texto diz originalmente Lupus est homo homini non homo. Entretanto, a frase acabou sendo popularizada por Thomas Hobbes no século XVIII, e por isso, por vezes, é a ele atribuída.
[3] Do alemão: “Onde está Deus?”
[4] O termo latino ad nauseam diz respeito à falácia conhecida como argumentum ad nauseam, isto é, a argumentação que tenta se validar por meio da repetição constante de determinada questão – repete-se a mesma afirmação de modo insistente até o ponto de provocar "náusea" e fastio ao interlocutor objetor, de modo que ele abra mão da discussão, embora não concorde com a afirmação do seu oponente. No contexto do presente artigo, o autor quer dizer que a situação aludida se repete infinitamente até à exaustão.
[5] Esses versos fazem parte de uma canção infantil da época Vitoriana bastante difundida nos países de língua inglesa. Humpty Dumpty é uma espécie de ovo antropomórfico que, sentado num muro, cai de forma abrupta, partindo-se, sendo impossível de recompô-lo. O personagem foi extremamente popularizado pelas obras de Lewis Carroll, especialmente nas animações baseadas nos seus livros sobre Alice. O autor o utiliza como uma metáfora literária da condição pecaminosa do homem herdada de Adão. Autores como o irlandês James Joyce, em seu labiríntico Finnegans Wake, já trabalharam com essa associação entre Humpty Dumpty e o homem espiritualmente caído.
[6] A presente tradução da cantiga, que mantém as rimas e a musicalidade próprias, foi realizada por Maria Luiza X. de A. Borges, e se encontra na seguinte obra: CARROLL, Lewis. Alice – Edição Comentada. Notas de Martin Gardner. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 1. ed. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 200. Outra tradução também apropriada diz:
Humpty Dumpty sentou-se em um muro,
Humpty Dumpty caiu no chão duro.
E todos os homens e cavalos do Rei
Não conseguiram junta-lo outra vez.
[7] No original, o autor utiliza um neologismo “dusteating" defeat, o qual traduzido literalmente soaria algo como “a derrota comedora de pó”, fazendo alusão à maldição proclamada em relação à serpente: “sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.” (Gênesis 3:14).
[8] O autor faz menção aqui ao livro Gênesis no Espaço-tempo, do Dr. Francis Schaffer, excelente apologista cultural. No livro, recentemente publicado pela Editora Monergismo, Schaffer demonstra como a narrativa de Gênesis, longe de ser uma mitologia fundacional (como creem os teólogos liberais), é um relato fiel às origens (do universo, da vida, e do homem como ser pessoal), constituindo-se como base sólida para o homem moderno.
[9] Tal como Paulo asseverou em sua carta aos Romanos, nos ensinando que a criação não será destruída, mas, sim, restaurada por Cristo: “Porque a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus. Porquanto a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e está com dores de parto até agora; e não só ela, mas até nós, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, aguardando a nossa adoção, a saber, a redenção do nosso corpo.” (Romanos 8: 19-23).
Autor: David K. Naugle
Fonte: Cardus
Tradução: Fabrício Tavares
Divulgação: Bereianos
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