Algumas objeções contemporâneas no âmbito do Culto consideradas e refutadas - 2/4

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3. Argumento de que “O Princípio Regulador do Culto Aplica-se apenas ao Templo”.

Um outro argumento popular contra o princípio regulador do culto baseia-se na ideia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao culto no tabernáculo e no templo. Esta ideia baseia-se no contexto da citação clássica do princípio regulador, Dt 12:32, e na noção de que Deus era muito exigente com o culto do tabernáculo/templo apenas porque o serviço do templo tipificava a pessoa e a obra de Jesus Cristo. Se este argumento for aceito, pode-se concluir que: (1) O culto descentralizado em Israel que ocorria na sinagoga não era estritamente regulado. Em outras palavras, os israelitas podiam fazer o que bem desejassem no culto desde que não violasse o ensinamento expresso da Escritura (esta é essencialmente a concepção episcopal-luterana do culto aceitável); (2) O princípio regulador foi ab-rogado com a morte de Cristo quando o Seu sacrifício perfeito tornou desnecessário o culto do templo; (3) Portanto, a igreja da nova aliança não tem nada a ver com o princípio regulador e tem a liberdade para criar ritos, cerimônias e dias santos conforme desejar, desde que as invenções humanas não violem ou contradigam a Palavra de Deus.

A ideia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao serviço do santuário central deve ser rejeitada por várias razões. Primeira, a noção de que Dt 12:32, pelo fato de ser dado numa seção que trata primariamente do tabernáculo, aplica-se apenas ao tabernáculo é simplesmente adotada sem comprovação exegética. É-nos dito em alguma parte do capítulo 12, ou em qualquer outro lugar em todo Velho ou Novo Testamentos, que o princípio de acrescentar ou subtrair está limitado ao tabernáculo ou templo? Não, não nos é dito. Mas, será que não podemos inferir do contexto que este princípio extremamente explícito aplicava-se apenas ao tabernáculo/templo? Não. Na verdade, o contexto prova exatamente o oposto. Conquanto é verdade que o capítulo 12 contém uma extensa discussão sobre o santuário central (em particular sobre a necessidade de se oferecer sacrifícios e oferendas no santuário central) o contexto de Dt 12:32 fala também da repressão à idolatria e ao sincretismo com o culto pagão que podem ocorrer não apenas no tabernáculo, mas em toda a terra de Israel. Observe o contexto imediato da passagem:


Quando o SENHOR, teu Deus, eliminar de diante de ti as nações, para as quais vais para possuí-las, e as desapossares e habitares na sua terra, guarda-te, não te enlaces com imitá-las, após terem sido destruídas diante de ti; e que não indagues acerca dos seus deuses, dizendo: Assim como serviram estas nações aos seus deuses, do mesmo modo também farei eu. Não farás assim ao SENHOR, teu Deus, porque tudo o que é abominável ao SENHOR e que ele odeia fizeram eles a seus deuses, pois até seus filhos e suas filhas queimaram aos seus deuses. Tudo o que eu te ordeno observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás (Dt 12:29-32).

A passagem aplica-se não apenas ao comportamento no tabernáculo, mas às praticas de culto em toda a terra de Israel. Se Dt 12:32 aplicava-se apenas ao santuário central, por que razão seria ele usado como texto fundamental para suprimir a idolatria pagã em todo o país? O culto pagão cananeu era descentralizado, com ídolos do lar, sítios pagãos, lugares altos e bosques sagrados. Será que devemos crer que Dt 12:32 preocupa-se apenas com o sincretismo dentro do tabernáculo? O versículo 31 preocupa-se apenas em suprimir o sacrifício de crianças dentro do tabernáculo? É claro que não! O contexto de Dt. 12:32 prova que ele não está restrito apenas ao tabernáculo/templo.


A segunda razão é que Dt 12:32 não pode ser interpretado à parte de passagens virtualmente idênticas, que afirmam sola scriptura, que se aplicam não apenas ao tabernáculo/templo, mas à vida como um todo. As passagens de sola scriptura ensinam que a igreja não tem autonomia ou autoridade legislativa quanto a ordenanças de doutrina, ética ou culto. Observe as seguintes passagens: ―Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do SENHOR, vosso Deus, que eu vos mando (Dt 4:2). Toda palavra de Deus é pura... Nada acrescentes às suas palavras, para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso (Pv 30:5-6).

Já chamamos a atenção, na nossa discussão de Dt 4:2, que é pecaminoso para o homem criar as suas próprias regras éticas. Os membros da igreja ficariam justamente irados e ultrajados se seu pastor ou conselho decretasse que comer carne às sextas-feiras, ou usar jeans, ou andar de bicicleta era agora pecaminoso e merecedor de censura eclesiástica. Deuteronômio 4:2 também proíbe as autoridades da igreja de fazerem subtrações ou acréscimos ao culto prescrito na Escritura. A única forma de Dt 4:2 ser contornado pelos opositores do princípio regulador é pretextar que o culto a Deus não é assunto prescrito da lei, mas que pertence à esfera das coisas indiferentes (adiaforia). A ideia de que o culto a Jeová (o dever mais sagrado e importante da igreja) é adiafórico é impossível por dois motivos. Primeiro, a adiaforia refere-se apenas aos assuntos indiferentes que não são ordenados nem proibidos, que não são diretamente regulados pela Escritura. O culto, entretanto, é ordenado por Deus. Segundo, as áreas da adiaforia são opcionais. O culto não é opcional. Dt 12:32, que é virtualmente idêntico a 4:2, é dado no contexto do culto para enfatizar: (1) a autoridade exclusiva da Escritura sobre o culto, (2) a falta de autoridade legislativa do povo da aliança para determinar ou criar o seu próprio culto e (3) a necessidade de ater-se estritamente ao que diz a Palavra de Deus para evitar os acréscimos humanos que, por causa da depravação humana herdada, levam ao sincretismo e ao pecado. O princípio regulador é simplesmente o sola scriptura aplicado à esfera do culto. Aqueles que aplicam Dt 12:32 apenas ao templo, fazem-no somente porque não entendem Dt 4:2 e a completa aplicação da sola scriptura.

Terceira razão, a ideia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao templo ignora o fato de que o culto no tabernáculo/templo continha ordenanças cerimoniais e não cerimoniais. O sacrifício de animais, a queima de incenso e o uso sacerdotal e levítico de instrumentos durante o sacrifício eram cerimoniais. Mas a leitura da Escritura (1Ts 5:27; Cl 4:16; 1Tm 4:13), a oração (Mt 6:9; 1Ts 5:17; At 4:31; 1Co 11:13-15; Fp 4:7; Tg 1:5) e o cântico de louvor (Mt 26:30; At 16:25; 1Co 14:26; Ef 5:19; Cl 3:16; Hb 13:15; Tg 5:13) não eram cerimoniais. Tal afirmação prova-se pelo fato de que a leitura da Escritura, a oração e o cântico de louvor são, todos eles, aspectos integrais do culto cristão após a dissolução do templo e a ab-rogação das ordenanças cerimoniais. Por isso, é extremamente simplista e exegeticamente falaz argumentar que o princípio regulador foi anulado juntamente com a ordem cerimonial. Se o princípio regulador aplicava-se ao culto do templo, então, ele regulava o culto não cerimonial que lá ocorria.

Aqueles que argumentam que o princípio regulador aplicava-se somente ao templo que foi, portanto, ab-rogado com a lei cerimonial, são culpados de fazerem uma antítese total entre o culto no templo e o culto público na sinagoga/culto público cristão. Não se pode negar que o culto no templo tipificava Cristo e Sua obra. Não se deve, entretanto, subestimar o fato de que o templo era também um lugar de culto (Jo 4:21) e oração (Mt 21:13). Alguns dos elementos cruciais do culto público cristão foram praticados primeiramente no templo. Bushell escreve:

Para o judeu do Velho Testamento o ritual do templo era a imagem viva da adoração e todos os exercícios de piedade estavam, de uma forma ou de outra, atrelados àquela fonte. As práticas litúrgicas na sinagoga correspondiam, em muitos casos, diretamente às do templo. A oração, por exemplo, era oferecida na sinagoga no mesmo momento das oferendas do templo. Fora deste lugar de culto, a oração era sempre feita com a face voltada para o Templo, ou Jerusalém. As sinagogas eram consideradas santuários em miniatura, a ponto de sua mobília (tais como a arca e o candelabro de sete braços) ser calcada na do templo. Por isso, considerando a importância do templo até mesmo para o culto fora de Jerusalém, seria razoável postular um grau maior de continuidade entre a prática do culto cristão e certos aspectos da liturgia do templo; uma continuidade maior do que grande parte das autoridades está disposta a admitir. A escassez de referências na literatura quanto à influência da liturgia do templo no culto cristão é uma situação desequilibrada que precisa muito ser corrigida. É nossa opinião que o templo, e não a sinagoga, é a referência final para certos aspectos mais importantes no culto cristão. O fato de que muitos desses aspectos podem ter sido intermediados pela sinagoga está além da questão, pelo menos até onde vai a nossa preocupação com o assunto. [78]

Apesar de serem feitas certas tentativas de se limitar o princípio regulador ao templo, elas não têm absolutamente qualquer fundamento na Escritura. O culto do templo prova em si mesmo que o princípio regulador não pode estar restrito às ordenanças cerimoniais.

Quarta razão, há algumas passagens que aplicam o princípio regulador fora da esfera do culto do tabernáculo/templo. Se existir na Escritura pelo menos uma palavra que aplique o princípio regulador fora do culto do tabernáculo/templo, então a afirmativa de que o princípio regulador aplica-se apenas ao templo cai por terra. Vamos examinar três passagens.  

Em Mt 15:1-3 Jesus condenou os fariseus por acrescentarem a lavagem ritualística, que ocorria em casa e não no templo, à lei. Então, vieram de Jerusalém a Jesus alguns fariseus e escribas e perguntaram: Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos, quando comem. Ele, porém, lhes respondeu: Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Esta passagem constitui um sério problema para aqueles que ensinam que o princípio regulador aplicava-se apenas ao templo, e que as tradições criadas pelos homens são permitidas desde que não violem o claro ensinamento da Escritura. Onde, na Palavra de Deus, condena-se a lavagem das mãos? Se os acréscimos humanos são permitidos na esfera religiosa, o que poderia ser mais inocente, útil e prático do que um simples lavar de mãos? Entretanto o nosso Senhor não apenas recusou submeter-se a esse ritual religioso criado pelo homem como também repreendeu vigorosamente os fariseus por adicionarem uma regra humana à Palavra de Deus. Lavar as mãos é algo bem apropriado; pode-se desejar que fosse sempre praticado; mas elevá-lo à condição de ritual religioso é estultícia e pecado[79]. Os discípulos de Cristo foram bem treinados, pois sabiam que qualquer tradição humana, não importa quão boa e inocente, não deve ser observada quando recebe do homem, sem a sanção divina, status e significado religioso. Observe, as imposições ilegais [tradições humanas no culto] ficarão sob a responsabilidade dos que as sustentam, defendem, e as fazem vigorar, tanto quanto dos que primeiramente as inventaram e delas gozaram[80]. A antiguidade e os Pais [da Igreja] sem a Escritura são a velha cartilha dos supersticiosos formalistas... Daqui aprende-se que Deus em sabedoria põe em discussão as cerimônias dos homens para que sejam refutadas e condenadas.[81]

Jesus é um ardente defensor do princípio regulador. Ele rejeita a mais inofensiva das tradições religiosas e mostra-nos também como as tradições e leis humanas desviam e, portanto, invalidam a sentença sobre aquilo que Deus condenou. Rutherford escreve:

Os fariseus criticaram quando viram alguns dos discípulos comendo pão com as mãos sem lavar. Exigia-se a justificativa para a omissão de um ritual exterior, visível aos olhos. Essas tradições, entretanto, não são condenadas por Cristo por serem contrárias à Palavra de Deus ou por serem ímpias, mas por não serem ordenadas. Eles não acusavam os discípulos de Cristo da impiedade de qualquer sentimento perverso quanto a essas tradições, ou de crítica íntima ao ritual religioso de lavar as mãos, nem disputavam com eles sobre se as tradições dos anciãos deveriam, ou não, ser estimadas como a essência e a totalidade de todas as religiões, como disse Vasquez*, mas altercavam tão somente sobre a concordância externa em seguir, ou não seguir, a tradição dos anciãos, como está mais do que claro no texto. Cristo, na verdade, desaprovou o fato de terem maior consideração às tradições dos homens do que aos mandamentos de Deus, como os papistas e os formalistas o fazem; mas não era esse o ponto em questão entre os discípulos de Cristo e os fariseus. Cristo rejeita tais tradições com o argumento da falta de um Autor legal, quando as chama de preceitos de homens em oposição aos mandamentos de Deus.[82]  

As pessoas que se opõem ao princípio regulador tentam, frequentemente, contornar a importância óbvia dessas passagens apelando para o contexto. Dizem que o exemplo apresentado por Cristo nos versículos 4 e 5 (de alguém que segue a tradição para esquivar-se de sustentar seus pais na velhice) nos informa que Cristo tinha na mente apenas as tradições negativas, isto é, as tradições que anulavam, abandonavam ou contradiziam à Palavra de Deus. O problema dessa interpretação é que ela ignora completamente o versículo 2, o confronto original que resultou na respostas de Jesus nos versículos de 3 a 9. Jesus exemplifica por que é errado acrescentar exigências humanas à Palavra de Deus. Elas terminam por suplantar a Palavra de Deus. (Quem conhece o judaísmo ou a história da igreja sabe que o ensinamento de nosso Senhor é verdadeiro). O fato de Cristo dar tal exemplo não minimiza jamais o verso 2, onde a mais inocente e aparentemente inofensiva das tradições humanas (lavar as mãos) é considerada totalmente imprópria. Como é que o fato de alguém lavar as mãos pode contradizer, violar, ou pôr de lado a Palavra de Deus? Jesus condena os fariseus por presumirem (ao contrário da Palavra de Deus) que os líderes religiosos têm autoridade legislativa na igreja. Quando tais líderes atribuem a si mesmos a autoridade de inventarem doutrinas ou mandamentos, o resultado final é decadência e mesmo apostasia. Observe que nos versículo 9 Jesus condena claramente todas as doutrinas e mandamentos humanos na religião. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens (Mt 15:9; cf. Is 29:13).

Além disso, a passagem paralela de Marcos 7 põe termo ao assunto definindo-o, porque nessa narrativa Jesus identifica explicitamente as tradições que Ele condena, como inclusive as lavagens religiosas[83]. Respondeu-lhes: Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão, porém, me honram, ensinando doutrinas que são mandamentos de homens. Porque, deixando o mandamento de Deus, retendes a tradição dos homens, como o lavar dos jarros e dos copos, e fazeis muitas outras coisas semelhantes a estas. E dizia-lhes: Bem invalidais o mandamento de Deus para guardardes a vossa tradição (Mc 7:6-9). É tão fácil destruir a autoridade da Palavra de Deus pelo acréscimo quanto o é pela subtração, tanto soterrando-a sob as invenções humanas quanto negando a sua verdade. A Bíblia toda, e nada a não ser a Bíblia, tem de ser a nossa regra de fé — sem acréscimos ou amputações.[84] O nosso Senhor não só condena as tradições humanas negativas, más ou contraditórias, mas a todas elas sem exceção. Spurgeon escreve:

A religião baseada na autoridade humana é inútil; devemos adorar ao verdadeiro Deus da maneira que Ele mesmo determina, ou não estaremos adorando-O jamais. Doutrinas e mandamentos só devem ser aceitos quando têm a sustentação da Palavra, e só por esta razão é que serão aceitos. A forma mais meticulosa de devoção será vã adoração, se for regulamentada por ordenanças humanas à parte dos próprios mandamentos de Deus.[85]  

Após um breve exame do ensinamento de Cristo no contexto só se pode concluir que o argumento de que nosso Senhor está condenando apenas certas tradições religiosas perniciosas, e não a toda e qualquer tradição humana, é "eisegesis" da pior qualidade. A tentativa de se burlar passagens que provam o princípio regulador, como Mateus 15:2-9, não são novas, mas são (de forma geral) reedições de antigos argumentos papistas e de lideranças eclesiásticas há muito rejeitados pelas igrejas reformadas. Observe as palavras de Zacarias Ursinus (escritas na década de 1570 e publicadas pela primeira vez na década de 1580):

Alguns há que se opõem ao que dissemos aqui, afirmando, como apoio à pretensa religiosidade, que as passagens que citamos condenando-a referem-se apenas às cerimônias instituídas por Moisés e aos mandamentos humanos ilegítimos que não fazem parte do culto a Deus, e não aos preceitos sancionados pela igreja, e bispos que nada ordenam contrário à Palavra de Deus. Mas a falsidade deste argumento pode ser provada por certas declarações, análogas às passagens da Escritura que citamos, que também rejeitam àquelas leis humanas, que, em sua própria autoridade, nada prescrevem com referência ao culto divino que Deus não tenha ordenado, embora, em si mesma, a coisa não seja pecaminosa nem proibida por Deus. Embora não fosse pecaminosa em si mesma, Cristo rejeita a tradição dos judeus quanto ao lavar as mãos, pois associavam a ela a ideia de culto divino, dizendo assim: Não é o que entra pela boca o que contamina o homem, mas o que sai da boca, isto, sim, contamina o homem e Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, mas estes, por dentro, estão cheios de rapina e intemperança! (Mt 15:11; 23:25). O mesmo se aplica ao celibato e à discriminação entre dias e tipos de carnes, ao que Ele chama de doutrinas de demônios, embora sejam intrinsecamente legítimas ao piedoso, como Ele ensina noutra parte. Por isso, aquelas coisas que são em si mesmas indiferentes, que não são ordenadas nem proibidas por Deus, se forem prescritas e realizadas como culto a Deus, ou se delas se supor que Deus seja honrado quando as executamos e desonrado quando as negligenciamos, é claramente manifesto que a Escritura as condena, nestas e em outras referências.[86]

Outra passagem da Escritura que desaprova a teoria do apenas ao templo é Cl 2:20-23: Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquilo outro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade. O apóstolo Paulo, escrevendo sob a inspiração do Espírito Santo, vários anos após o princípio regulador ter sido supostamente abolido, impôs rigorosamente o princípio regulador.

Paulo diz que qualquer adição ao que Deus ordenou ou autorizou é religião auto-imposta, ou como diz a versão do rei Tiago, culto da vontade [ou culto de si mesmo, ARA ou pretensa religiosidade, NVI]. A palavra grega usada por Paulo (ethelothreskeia) significa culto que se origina da própria vontade do homem. Este não é o culto ordenado por Deus, mas que brota da própria ingenuidade do homem; é devoção não autorizada... O referido culto não é solicitado nem aceito. É superstição...[87]

O essencial é que essas ordenanças são formas de culto ou de ato religioso escolhido pelo homem, conforme a vontade do homem, não significa escolhidos por Deus. Este é o cerne do culto corrupto: quando os homens procuram estabelecer as suas próprias formas de culto. Podemos chamá-lo de culto tipo livre escolha, pois os advogados do culto feito pelo homem alegam que o homem tem o direito (ou a liberdade) de instituir meios aceitáveis para adorar a Deus.[88] 

Paulo diz que fazer acréscimos à Palavra de Deus é uma demonstração de falsa humildade. Será que o homem é capaz de melhorar a adoração e o ato de culto que Deus instituiu? É o ápice da arrogância e da estupidez pensar que o homem pecador pode melhorar as ordenanças de Deus. É provocar a Deus, pois isso recai sobre a Sua honra, como se Ele não fosse sábio o suficiente para determinar o modo do Seu próprio culto. Ele odeia todo fogo estranho oferecido em Seu templo. Lv 10:11. Uma cerimônia [qualquer] pode a um tempo [qualquer] levar a um crucifixo. Aqueles que defendem o uso do sinal da cruz no batismo, por que não defendem também o óleo, o sal e o creme?[89] Como diz Paulo: a regras e regulamentos feitos pelo homem não têm valor algum para o que crer (Cl 2:23).

Os oponentes do princípio regulador tentam contornar o ensinamento de Colossenses de modo semelhante à passagem de Mt 15:2. Eles pretendem que Paulo não está condenando a todas as tradições humanas, mas que só está preocupado com a eliminação de certos tipos de ascetismo. Em outras palavras, é errado criar regras que proíbam comer carne e outros alimentos, mas é inteiramente aceitável inventar práticas de culto, dias santos e rituais.

Há uma série de razões pelas quais a condenação de Paulo aos preceitos humanos não pode estar limitada a certas práticas ascéticas. Primeira, o amplo contexto da passagem indica que Paulo rejeita enfaticamente todas as tradições humanas na esfera religiosa, e não meramente leis dietéticas ascéticas. O provável problema na igreja de Colossos era a influência de uma forma primitiva de ascetismo gnóstico. Paulo, no capítulo 2, condena enfaticamente o legalismo gnóstico. Entretanto, ao condenar esta filosofia em particular, e ao falso sistema ético que dela deriva, Paulo condena todas as formas de filosofia não cristã e todo culto e ética fundamentados na filosofia e tradição de homens. Nesta epístola, Paulo primeiro aponta Jesus Cristo aos colossenses. Os crentes colossenses precisam trazer à memória que Cristo é preeminente (1:18); que em Cristo, que é o Cabeça de todos, eles estão completos (2:10); que alguns não têm se mantido fiéis à Cabeça (2:19); que em Cristo estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (2:3). Cristo, sozinho, é Rei e Cabeça da igreja. Somente Ele é a nossa santificação. Somente através de Cristo e da Sua palavra-lei procede justa doutrina, propósito e ética. Por isso Paulo escreve: Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo (Cl 2:8). Calvino escreve:

Conforme a tradição dos homens. Ele [Paulo] aponta mais precisamente qual é o tipo de filosofia que reprova, e ao mesmo tempo condena-a duplamente como inútil: porque não é segundo Cristo, mas conforme as inclinações dos homens; e porque consiste dos rudimentos do mundo. Note, entretanto, que ele opõe Cristo aos rudimentos do mundo, e igualmente, às tradições dos homens; com isso, o que ele quer dizer realmente é que, qualquer coisa produzida pela imaginação do homem não está de acordo com Cristo, a quem o Pai designou como nosso único mestre, para que Ele nos guarde na simplicidade do Seu evangelho, que se corrompe até mesmo pela menor partícula do fermento das tradições humanas. Ele também quer dizer que são estranhas a Cristo todas as doutrinas que tornam o culto a Deus — que, segundo a lei de Cristo, sabemos ser espiritual — em rudimentos do mundo, e que, como tais, escravizam as mentes dos homens com ninharias e frivolidades, ao passo que Cristo chama-nos diretamente para Ele.[90]

É universal, a condenação de Paulo à filosofia conforme as tradições dos homens. Não se pode argumentar que, nessa passagem, Paulo condena apenas o ascetismo gnóstico e não condene as filosofias de Kant, Hegel, Schleiermacher, Marx e Dewey. Para Paulo não existe neutralidade filosófica ou ética. Uma doutrina ou prática ou está, ou não está, em concordância com Cristo. E se não estiver, ela procede, então, da imaginação autônoma do homem e é (segundo Paulo) uma tradição de homens. Por isso, quando em 2:20-23 Paulo condena os preceitos humanos, ele usa a mesma linguagem universal. No versículo 20 Paulo pergunta àqueles que estão em erro em Colossos o seguinte (numa paráfrase): Por que é que vocês agem como pessoas perdidas que continuam a viver sob uma visão pagã e sujeitando-se assim a preceitos humanos? E então, no versículo 21, Paulo dá exemplos específicos. Seriam os preceitos humanos, mencionados no versículo 21, as únicas tradições humanas que Paulo proíbe? Não. Por causa da condenação universal da filosofia e tradição humanas, que tanto precedem quanto sucedem o versículo 21, os preceitos humanos desse versículo devem ser vistos como uns poucos exemplos tirados da categoria universal das filosofias e tradições humanas. Não há como limitar a assertiva de Paulo no versículo 22 segundo os preceitos e doutrinas dos homens apenas aos preceitos do ascetismo gnóstico, tanto quanto a condenação da filosofia humana no versículo 8 não pode ser restrita a uma única comunidade grega. Além disso, a declaração do versículo 22, segundo os preceitos e doutrinas dos homens, espelha a condenação às tradições judaicas quanto à doutrina e a ética encontradas em Is 19:13 e Mt 15:2-9. A Bíblia condena os acréscimos e os preceitos criados pelo homem, na doutrina, na ética e no culto, sejam eles judaicos, gregos, persas, romanos, alemães, ingleses ou americanos.

Segundo, a interpretação que diz que Paulo proíbe o acréscimo de algumas filosofias e tradições humanas à doutrina, ética e culto da igreja, mas permite outras tradições humanas, viola o padrão ortodoxo dos métodos de interpretação protestante. Um estudo tanto do Velho quanto do Novo Testamentos prova, sem qualquer sombra de dúvida, que Deus proíbe acréscimos ou subtrações à doutrina, ética e culto estabelecidos na divina revelação (Dt 4:2; 12:32; Pv 30:6; Gn 4:3-5; Lv 10:1-2; 2Sm. 6:3-7; 1Cr 15:13-15; Jr 7:24,31; 19:5; Is 29:13; Nm 15:39-40; Mt 15:2-9; Jo 4:24; Ap 2:18, 19; etc.). Essa afirmação é simplesmente o entendimento confessional reformado de sola scriptura que tem sido discutido nas partes anteriores desse estudo. A tentativa de fazer de Paulo um bom episcopal, luterano, ou católico, quanto às tradições humanas, envolve a ignorância proposital de todo o ensinamento da Escritura. O coração do homem é tão enganoso que, pelo autoengano e sutilezas da razão humana, ele cria onde não existe brecha para a autonomia humana. Por isso, a nossa única esperança em manter a pureza na doutrina, na ética e no culto está em adotar e obedecer estritamente aos mandamentos de Deus sem se desviar para direita ou esquerda.

Outra passagem que desaprova a teoria do apenas ao templo é Jo 4:21-24: Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade.

Quando Jesus discutiu sobre adoração com a mulher samaritana e contrastou o culto da velha aliança com o da nova, Ele ensinou que em ambas as dispensações o culto deveria ser realizado sob os mesmos princípios. Observe a frase: mas vem a hora e já chegou (v. 23). Embora a morte de Cristo tenha eliminado todos os aspectos e cerimônias típicas do culto da velha aliança, a necessidade de adorar a Deus em espírito e em verdade não era um princípio novo, pois já vigorava quando Jesus disse essas palavras. Segundo Jesus, Deus deve ser adorado em espírito e em verdade, não porque o templo represente a Cristo e ao evangelho, mas devido à natureza e ao caráter de Deus. Bushell escreve:

O Espírito, que é a fonte da vida eterna, precisa ser também a fonte da verdadeira adoração. Se admitirmos que o Espírito apenas opera em e através da Sua Palavra, tal princípio tem por justa inferência que todo o culto verdadeiro deve estar fundamentado nas Sagradas Escrituras... O culto aceitável precisa ser conforme o caráter de Deus, como nos está revelado nas Escrituras, e em conformidade com tal e suficiente regra, em todos os seus aspectos. Somente o culto que procede em última instância do Espírito através da Sua Palavra é agradável a Deus.[91] 

Essa passagem da Escritura refuta por si mesma a ideia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao templo, porque quando Jesus começa essa discussão, fica claro que Ele falava do culto no templo em Jerusalém (v. 21). Portanto, quando Ele diz que o mesmo princípio de adoração em espírito e em verdade‖, que está em vigor agora na era da velha aliança, estará também em vigor na era da nova aliança, Ele está ligando à igreja da nova aliança o rígido princípio de adoração que regulamentava o templo. Se os crentes tanto da velha quanto da nova aliança querem adorar adequadamente a Deus, eles só podem fazê-lo em conformidade com a Sua natureza e caráter. E a única forma de aproximar-se de Deus num modo que O agrade é achegar-se a Ele nos Seus próprios termos conforme as Sua próprias regras. Isso significa que o culto tem de ser prescrito pela Escritura e não por homens pecadores. Deus que é em si mesmo a verdade tem de ser adorado conforme a verdade e não segundo a imaginação do homem. O Catecismo Maior de Westminster diz: “Os pecados proibidos no segundo mandamento são: o estabelecer, aconselhar, mandar, usar e aprovar de qualquer maneira qualquer culto religioso não instituído por Deus mesmo”... (Catecismo Maior de Westminster, resposta 109). A ideia de que o princípio regulador aplicava-se apenas ao culto do tabernáculo/templo não tem respaldo bíblico, contradiz o óbvio ensino da Escritura e, portanto, tem de ser rejeitado.

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NOTAS: 
[78] Michael Bushell. The Songs of Zion, pág 71-72.
[79] Charles Haddon Spurgeon. The Gospel of Matthew (Grand Rapids: Revell, 1987), 201.
[80] Matthew Henry. Commentary (McLean, VA: MacDonald, s.d.), 5:210-211.
[81] David Dickson. Mathew (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1987 [1647]), 207.
* Gabriel Vasquez (1549-1604). Filósofo e teólogo jesuíta, também conhecido como ―Bellomontanus. Sua obra mais importante é Commentari ac Disputationes sobre a Summa Theologica de Tomás de Aquino.
[82] Samuel Rutherford, The Divine Right of Church Government and Excommunication (London: John Field, 1647), 138.
[83] A segunda metade do versículo 8, que começa com ― o lavar dos, não foi incluída nas edições críticas modernas do Novo Testamento grego (e.g., 3a. edição do Novo Testamento Grego das Sociedades Bíblicas Unidas; 26a. edição do Novo Testamento Grego Nestle-Aland). A maioria das traduções modernas em inglês (ASV, RSV, NASB, NEB, JB, NIV) refletem a crítica textual moderna deixando fora a segunda metade do versículo 8 [Em português o mesmo ocorre com ARA, NVI e BLH]. A versão ampliada do versículo 8 encontra-se no Textus Receptus (ou Texto Recebido) e no Texto Majoritário (ou bizantino/texto tradicional). As versões KJV (Versão do Rei Tiago) e NKJV (Nova Versão do Rei Tiago) têm por base o Textus Receptus. Em síntese, as edições críticas do Novo Testamento grego (em que estão baseadas virtualmente todas as traduções modernas) dependem primariamente de uns poucos manuscritos mais antigos que foram descobertos principalmente entre o final do século XIX e começo do século XX (e.g., o Codex Vaticanus e o Codex Sinaiticus). Os textos majoritários não são tão antigos quanto os utilizados nas edições críticas, mas são bem mais numerosos e são usados pela igreja de Cristo aproximadamente desde os primórdios do quinto século, no mínimo. O conhecimento erudito moderno dos textos majoritários (i.é, a arqueologia, a verificação de várias versões de papiros mais antigos, versões e citações dos primitivos pais da igreja [e.g., por exemplo, o polêmico texto final de Marcos foi aceito como canônico lá pelo segundo século d.C.]), sérios problemas com as pressuposições e metodologia dos primeiros mestres da crítica, como Wescott e Hort, e as grandes diferenças entre os manuscritos Vaticanus e Sinaiticus, fizeram muitos cristãos apontarem de volta o Texto Majoritário como superior ao texto da crítica moderna. Este autor considera que as versões da KJV e da NKJV para Marcos 7:8 refletem as verdadeiras palavras de Jesus. Entretanto, a aceitação do princípio regulador não depende da aceitação da versão do Texto Majoritário para Marcos 7:8.
[84] J. C. Ryle. Expository Thoughts on the Gospels: Mark (Wheaton, IL: Crossway Books, 1993), 101-102. Não obstante sejam verdadeiros seus comentários sobre Marcos, citados acima, Ryle (1816-1900) foi ministro anglicano e bispo (de Liverpool) e, portanto, não adotava o princípio regulador.
[85] Spurgeon. Matthew, 203.
[86] Zacarias Ursinus. Commentary on the Heidelberg Catechism (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, s.d. [de uma edição de 1852]), 518-519.
[87] John Eadie. Commentary on the Greek Text of the Epistle of Paul to the Colossians (Grand Rapids: Baker, 1979 [1884]), 199-200.
[88] Kevin Reed. Biblical Worship (Dallas: Presbyterian Heritage, 1995), 56.
[89] Thomas Watson. The Ten Commandments (Edinburgh: Banner of Truth, 1986 [1692]), 63.
[90] John Calvin. Commentary on the Epistle to the Colossians (Grand Rapids: Baker, 1981), 181.
[91] Michael Bushell. The Songs of Zion, 149, 151-152.

***
Autor: Brian Schwertley
Fonte: 
Sola Scriptura e o Princípio Regulador do culto, pág 76-89. Editora Os puritanos

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