A Gênese da Revolução Civil - Uma Refutação a Olavo de Carvalho (Parte 1)

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Nosso problema básico hoje é que temos duas religiões em conflito, o humanismo e o cristianismo, cada um com sua própria moralidade e as leis dessa moralidade.” R. J. Rushdoony

Nos últimos dias, o meio evangélico brasileiro voltou sua atenção para as declarações do jornalista, ensaísta e professor Olavo de Carvalho nas redes sociais. Natural de Campinas, Olavo de Carvalho hoje mora na Virgínia, que faz parte do "Bible Belt", o cinturão bíblico dos Estados Unidos. Ele destacou-se em anos recentes especialmente por suas opiniões políticas. Suas últimas declarações, apimentadas por sua personalidade controversa, causaram desconforto e irritação entre os protestantes. Nosso propósito aqui será fornecer informações e elementos alternativos aos usados por Olavo de Carvalho, especialmente no ensaio “Herança de Confusõespublicado no Diário do Comércio no dia 8 de setembro de 2015, com algumas poucas referências a outras opiniões no mesmo contexto publicadas em sua comunidade no Facebook. A tese defendida por ele é que as liberdades modernas não são de forma alguma herança da Reforma Protestante, e que a Reforma na verdade seria a responsável pela divinização do Estado e muitos males modernos.

O primeiro erro visível no texto parece ser uma incompreensão ou negligência, tanto da diferença entre as cosmovisões luterana e calvinista quanto das consequências e desenvolvimentos heterogêneos da Reforma em cada país que alcançou, nos quais ela enfrentou problemas diferentes e encontrou estruturas políticas, sociais e tensões históricas também diferentes. Ademais, há a mais absoluta falta de referência ao contexto histórico e filosófico que precedeu a Reforma Protestante. Diga-se de passagem, a eleição da Reforma como "bode expiatório" dos católicos romanos não é uma opinião original, mas já sustentada há alguns séculos por católicos como o visconde de Bonald.

Contudo, a opinião historicista, que influenciou de Bonald e até mesmo Guillaume Groen Van Prinsterer, estadista holandês e precursor de Abraham Kuyper (embora Prinsterer tenha escrito trabalhos no intuito de refutar a acusação papista), não pode ser considerada suficiente ou adequada para explicar a complexidade do tema. Herman Dooyeweerd explica que "[se] identificamos o aspecto histórico com 'o que aconteceu', então esquecemo-nos de que os acontecimentos concretos exibem muitos outros aspectos que não são de caráter histórico. Consequentemente, a realidade é equiparada a apenas um de seus aspectos (o aspecto abstraído da ciência da História). Abandonamos então o motivo cristão da criação e nos tornamos historicistas." 

Mas, como Groen mostrou, o período anterior à Reforma já dá indícios que o secularismo e a Revolução Civil estavam vivos antes da Reforma Protestante, o que dificulta mais ainda a abordagem tradicional de muitos deles. Groen Van Prinsterer, em seu livro mais famoso, Incredulidade e Revolução”, nos dá algumas informações importantes:

"Pouco antes da Reforma, o cristianismo experimentava grandes doses de superstição acompanhada, como de costume, pela incredulidade. Aos eruditos interessava-lhes mais a mitologia grega do que as verdades cristãs. O brilho das cerimônias não podia esconder o espírito de dúvida e apostasia entre o clero corrupto. Em tempos como esses, um concílio viu-se na necessidade de proclamar a importância de crer na imortalidade da alma [Decreto do V Laterano, em 1513, contra o reavivamento do averroísmo aristotélico]. Isto necessariamente afetaria a lei constitucional. Primeiro na própria Roma. Seus ensinamentos sobre esse assunto nem sempre foram consistentes. Mas eles concordam em um ponto: os interesses e a supremacia da cadeira papal. A doutrina das duas espadas foi interpretada como se a espada espiritual fosse a usada pela igreja e a espada temporal, pelos soldados e governantes que dominavam como representantes da igreja, por seu mandato e permissão. Esta teoria continha a semente da incredulidade. Primeiro, moveu a soberania de Deus para a do Papa, convertendo o vicário em um rebelde, e o culto, em idolatria. Além disso, o que a igreja e o estado juntos reprimiram e coagiram a consciência provocou aversão à religião, e uma reação negativa à autoridade levou as pessoas a situações de perigo real. [...] A confusão na teoria leva ao caos na prática. O efeito prático da incredulidade é maior e mais geral do que se supõe. Alguns países gozaram de uma ordem aparente, que se manifestou e estabeleceu pela força arbitrária. Luís XI reprimiu com crueldade a seus súditos franceses. Henrique VII da Inglaterra pavimentou o caminho para o governo arbitrário de seus sucessores. A resposta de Carlos V na Espanha e nos Países Baixos à monarquia foi a supressão de todas as liberdades. Em terras germânicas, prevaleceu a anarquia. Pouca obediência inspirava o Imperador. Particularmente antes da Reforma, verificou-se uma terrível agitação entre os nobres, os camponeses e as pessoas das cidades. Por toda a Europa, as relações estavam por um fio, dava-se livre expressão às paixões, a liberdade foi além da legalidade e os estados foram atingidos por tumultos, se não pela insurreição. A tradição chegou a ser desprezada e o clamor por mudanças tornou-se universal. Essas eram as condições do cristianismo sob as doutrinas religiosas e políticas do papado, que não conseguiram curar ou proteger da enfermidade" (p. 99-101).


A desmoralização e a confusão eram generalizadas. Não apenas a igreja tinha problemas de corrupção, mas, devido aos problemas religiosos, políticos e filosóficos, o próprio povo tornara-se profundamente imoral e rebelde. Muitos dos problemas sociais vistos hoje também se faziam presentes na Baixa Idade Média. As universidades, embora criadas pela igreja, viviam em conflito com ela. Algumas mulheres tinham o propósito de seduzir jovens padres. Surgiram movimentos heréticos e de grande tensão apocalíptica, como os "adamitas", pregando o nascimento de uma nova era na qual o pecado haveria de ser definitivamente retirado do mundo, e, por essa razão, andavam nus. Franciscanos entraram em guerra entre si. O Franciscanismo radical, influenciado pelas ideias do monge Joaquim de Fiori, atacavam a estrutura da igreja na tentativa de produzir uma nova era. Os novelistas começaram a entender as paixões humanas como "naturais", e a fidelidade marital como meramente religiosa. Francis Schaeffer, por exemplo, fala sobre a ascensão do realismo e da natureza na arte, com Von Eyck, Masaccio e outros. Antes da Baixa Idade Média, a arte ocidental era basicamente simbólica. Cristo e Maria eram pintados sem realismo, em posições rígidas, quase sempre sem panos de fundo retratando a natureza. Mas com Filippo Lippi (1406-1469) e Fouquet (1416-1480), Schaeffer mostra como a "natureza" começou a ganhar atenção e a devorar a graça:


"Bem poucos anos antes, artista nenhum ousaria pensar em pintar Maria em moldes naturais – pintar-lhes-ia apenas um símbolo. Quando, porém, Filippo Lippi executou o quadro da Madona em 1465, a mudança que se patenteava era surpreendente. Retratava uma jovem extremamente formosa com uma criança nos braços e uma paisagem que sem dúvida fora grandemente influenciada pela obra de Van Eyck. Esta Madona já não era mais um símbolo remoto, distante, de cunho transcendente, era uma linda jovem com uma criança. Mas hã algo ainda que devemos saber acerca deste quadro. A jovem que representava Maria era nada menos que sua amante, fato conhecido de toda Florença. Ninguém teria ousado fazer isso alguns anos antes. Na França, Fouquet pintou, por volta de 1450, a amante do rei, Agnes Sorel, como Maria. Todos quantos conheciam a Corte de perto, vendo o quadro, sabiam tratar-se da então amante do rei. Ademais, Fouquet pintou-a com um dos seios a mostra. Enquanto nos tempos precedentes a representação de Maria amamentando o menino Jesus, agora era a amante do rei, com um seio à vista – e a graça estava morta!" (A Morte da Razão, p. 6 e 7).


Em todos os lugares era possível perceber como o cristianismo começara a dividir espaço com a cultura pagã romana e grega. No teto da Capela Sistina, no Vaticano, pintada por Michelangelo, as profetisas pagãs como a Sibila Délfica, Cumana, Eritréia e Líbica dividiam espaço com os profetas do Antigo Testamento. Os escritos de Dante apresentaram a mesma hibridização. No campo filosófico, uma grande síntese entre o cristianismo e Aristóteles começou a ser feita por Pedro Abelardo (m. 1142) e seu pupilo Pedro Lombardo (m. 1160), cujos Quatro Livros das Sentenças tornaram-se padrão para estudo, sendo, inclusive, alvo de crítica pelos reformadores.


A autoridade da igreja de Roma estava em crise inclusive dentro de seus próprios portões. No século XI, os papas quiseram afirmar seu poder secular, enfraquecido pelo feudalismo. Era o Curialismo, que tem sua raiz na carta do papa Gelásio I ao imperador Anastácio (494), e donde nasceu a teoria das duas espadas, conforme anteriormente citada por Groen. Em 1075, o papa Gregório VII lançou o Dictatus Papae, documento no qual reivindicava, por exemplo, que o papa "é o único que deveria ter os pés beijados por todos os príncipes”. Pouco depois, Inocêncio III viveu o auge do papado, vivendo os ditames de Gregório, afirmando que o papa ocupava uma posição intermediária entre o divino e o humano – “inferior a Deus, porém superior ao homem”. E Bonifácio VIII, em sua bula Unam Sanctam (1302), definiu que “para a salvação, é necessário que toda criatura humana esteja sujeita ao Pontífice Romano”. A morte do papa Bonifácio VIII marcou a decadência desse poder soberano e iniciou aquilo que ficaria conhecido como o Cativeiro Babilônico do papado (1309-1377), quando o papa ficou exilado em Avinhão. Entre 1378 e 1417, aconteceu o Grande Cisma do Ocidente, quando, durante algum tempo, dois, e depois três papas, alegaram simultaneamente ser o cabeça supremo da Igreja. Dante, a quem nos referimos agora há pouco, colocou Bonifácio num dos mais baixos círculos do inferno em sua obra magna, “A Divina Comédia [Inferno]”, junto a dois outros papas simoníacos maculados pela soberba do Curialismo de Gelásio I (494), que reivindicava poder sobre ambas as esferas temporal e espiritual. Dante escreveu que, “[…] visto que a Igreja procurou ser dois governos ao mesmo tempo, ela está afundando muito, conspurcando tanto seu poder quanto seu ministério”.  

No início do século XV, mais perto de Martinho Lutero, as demandas por uma reforma na igreja eram enormes. Da crise do Grande Cisma do Ocidente surgiu o Conciliarismo, que afirmava a superioridade dos concílios ecumênicos sobre o papa no governo e na reforma da igreja, no caso deste cair em heresia ou tomar atitudes contra a integridade da Igreja. Grandes implicações políticas eram trazidas nessa visão. Ela não queria abolir o papado, mas declarar que a plenitudo potestatis, a “plenitude do poder”, residia somente em Deus. A soberania seria cambiada. O papa Pio II, em 1460, enterraria completamente o movimento com a bula Execrabilis, ameaçando de excomunhão todos que tentassem burlar seu decreto. Anulavam-se as tentativas de reforma por outros meios senão pela autoridade papal. Ressurgia assim a monarquia papal e o papado fechava os ouvidos para os clamores por reforma. O papado reivindicava a soberania intramundana do paganismo para si, em vez de combatê-la como fizeram os primeiros cristãos dentro do Império Romano. Gregório XII disse que “Eu sou o papa, e não preciso do conselho de ninguém. Sim, eu estou acima da lei, e vocês devem conformar-se às minhas decisões." [Herbert B. Workman, The Dawn of the Reformation, vol. II, The Age of Hus (New York, NY: AMS Press, [1902] 1978), 68. Sov. 51]

Em 1440, o humanista Lorenzo Valla provou a falsidade de alguns documentos papais, conhecidos hoje como "Falsa Doação de Constantino" e as "Falsas Decretais de Isidoro". Alguns governantes já confiscavam terras da igreja. Eles preferiam uma igreja corrupta e fraca para assegurarem seu próprio poder. E devemos nos atentar ao fato de que o próprio poder secular já começava a questionar e rebelar-se contra a autoridade da igreja de Roma, uma vez que ansiavam por uma igreja sob controle (por exemplo, o Galicanismo na França). Rousas J. Rushdoony, também historiador, falou a esse respeito:


"O reino do Vaticano progressivamente tornou-se administração, arquitetura, arte, e, com o tempo, estado papal. Era mais fácil para os papas ser cabeças do estado do que de uma igreja que ameaçava reis com ultimatos morais. Uma Europa Erastiana estava em construção, uma em que o estado controlou a igreja dentro de seus domínios. Na Inglaterra, em 1514-1515, as pessoas de Londres manifestaram-se contra a igreja por causa do assassinato de Richard Hunne, considerado herege, na prisão do bispo em Saint Paul. Charles VIII, Louis XII, e outros monarcas franceses eram campeões de uma igreja Galicana, uma controlada por eles, não pelos papas, e aos católicos da Espanha não era permitido um apelo ao papa, contra o rei ou contra a Inquisição do rei. Antes, Ferdinando e Isabella haviam sido 'vigorosamente Erastianos'. Maximiliano I (1459-1519) esperava ganhar o trono papal depois da morte do papa ou pela deposição dele. Todos esses homens confiscaram propriedades e bens da igreja quando lhes aprouve fazê-lo. Estes eram 'bons católicos' que fizeram tanto dano à igreja quanto Henrique VIII. Thomas More, um 'bom católico' posteriormente feito santo, aconselhou Henrique VIII a tomar os mesmos passos aos quais ele opôs-se posteriormente. […] A Renascença estava ansiosa com a tradição, mas não a tradição cristã, e sim aquela da antiguidade pagã. Lorenzo Ghiberti deixou transparecer algum ressentimento pelo triunfo do Cristianismo. A arte começou a perder seu panorama e referência sobrenatural, e, progredindo na arte renascentista, ‘não há referência além do que nós vemos’”  (Sovereignty, p. 261-262).


Como pode, pois, a Reforma Protestante ser a causa de um fenômeno que lhe precede, ainda que tal tendência só tenha assumido uma forma consistente posteriormente, com o Iluminismo? Como a Reforma pode ser causa para a Revolução Civil se essa começou a tomar forma antes de Lutero nascer? É necessário, portanto, buscar a verdadeira causa da transformação do "homem cristão" em "homem civil".


JOAQUIM DE FIORI E A TENSÃO ESCATOLÓGICA

O abade Joaquim de Fiori (m. 1202), monge cisterciense, é muito pouco conhecido, especialmente entre os evangélicos. Eric Voegelin, de quem trataremos adiante, citado por Olavo de Carvalho em seu ensaio no Diário do Comércio, cita-o diversas vezes como uma das figuras-chave para o entendimento das tensões escatológicas que marcam as revoluções modernas. A interpretação agostiniana da estrutura da história, tendo marcado a Idade Média até aquele momento, chegava ao ocaso. Joaquim dividiu a história em três eras, associadas às três pessoas da Trindade através de uma interpretação simbólica que é inaceitável do ponto de vista da Reforma Protestante, mas não incomum naquele período. A Primeira Era (ou Reino), a Era do Pai; a Segunda Era, a Era do Filho, que começou com o advento do Cristianismo até o ano 1260, segundo os cálculos de Fiori; e a Terceira Era, por vir, a Era do Espírito Santo. Essa Terceira Era seria anunciada pelo aparecimento de uma nova ordem de homens espirituais descalços, que se oporiam à falsa autoridade da igreja e abririam caminho para um milênio de paz entre as nações e as religiões que duraria até o juízo final. [Eric Voegelin, A Nova Ciência Política, p. 88-89]

O pensamento fioriano invadiu a Igreja a tal ponto que Inocêncio III subscreveu-a, quando o papado viveu uma grande concentração de forças, tanto na Igreja quanto no Estado. Frederico II (1194-1250), um dos maiores imperadores de todos os tempos, também foi influenciado pela profecia fioriana. Frederico viu-se como o grande fundador dessa Terceira Era, de maneira que ele estava então acima do bem e do mal, e além da religião, que seu Império tentou eliminar as diferenças, por exemplo, entre muçulmanos e cristãos. As Cruzadas contra islâmicos aconteceram antes de Frederico II, no entanto, ele negociou com os muçulmanos e conseguiu reabrir Jerusalém para os cristãos, já que, conforme dito, ele se encontrava além da religião. É interessante que Frederico II tenha chamado sua cidade natal de Nova Belém. Dante Alighieri, citado por Voegelin [p. 82], também aderiu a esta Terceira Era. Hoje, é claro, ele é visto como um poeta muito devoto ao catolicismo romano. Em “Monarquia”, há certa confusão neste ponto:

"Todas estas ações são servas da especulação, bem supremo, para o qual a Bondade Suma criou o gênero humano. Bastante se insistiu já sobre este ponto: a tarefa própria do gênero humano, tomado na totalidade, é de pôr continuamente em ato toda a potência do intelecto possível, em vista, primeiro, da especulação, em vista da prática, e por via de consequência, depois. […] Viu-se que o meio mais imediato para chegar ao fim supremo é a paz universal. […] Mas o gênero humano tanto mais imita Deus quanto mais se unifica, dado que a razão verdadeira da unidade apenas em Deus se encontra.”

Escreve ele em termos bem escolásticos. Dante já vislumbra o objetivo civilizacional além dos objetivos nacionais, locais e familiares, e estabeleceu a necessidade de uma Monarquia sobre o mundo, para assim estar submisso a Deus. Nas palavras dele, "toda a humanidade se ordena a um fim único. É preciso, então, que um só coordene. Tal chefe deverá chamar-se o monarca ou imperador. Torna-se evidente que o bem-estar do mundo exige a Monarquia ou Império."


Não vemos aqui nada além do propósito da Organização das Nações Unidas, e da salvação pela lei e pela razão prática, não pela graça mediante a fé. Dante continua: "Viu-se que o meio mais imediato para chegar ao fim supremo é a paz universal. […] Se consideramos o homem, verificamos que, porque todas as suas forças se ordenam à felicidade, importa que todas sejam dirigidas e reguladas pela inteligência. […] Resulta que toda a razão das coisas ordenadas a um fim se deve colher no mesmo fim” – ou seja, a paz deve ser buscada como meio para atingir o fim da paz. Se a fé não é importante, a coexistência o é. A fé cristã nessa obra foi substituída pela teologia natural. A Teologia Liberal, que enfraqueceu severamente o protestantismo, é apenas um tipo moderno de Teologia Natural, como Karl Barth notou. Dante elege o Monarca como o ordenador mundial, não a fé cristã, embora cite as Escrituras algumas vezes, com clara descontextualização. Ademais, seu conceito de felicidade é o mesmo de Aristóteles. Mostra-se aqui o padrão moral humanista, que utilizaria a Lei Natural de Tomás de Aquino como substituto para a religião na política, como veremos a seguir. Foi uma conclusão lógica para os humanistas o entendimento de que, se existem muitos povos com crenças diversas, a lei deveria basear-se na natureza, naquilo que eles têm em comum. Ainda para Dante, o Bem da unidade é maior do que o Bem das partes. Se a unidade consiste no Bem Supremo, aqueles que promovem divisão são, portanto, maus, porque são contra a unidade. Por isso ele povoou o inferno com muitos papas e clérigos. As diferenças doutrinárias, assim, tornam-se más e motivo de divisão como uma conclusão lógica desse pensamento. Finalmente, o objetivo do Império na visão dantesca é a perfeição da raça humana. Isso não soa marxista? Ou nazista? Mais clareza nesse aspecto podemos ver ainda no capítulo XV do seu Purgatório, no qual um anjo diz: "Mas se o amor da esfera suprema elevasse o desejo de vossos corações, não terias no peito tal temor, pois quanto mais existissem pessoas que pudessem falar “nosso” ao invés de “meu”, mais cada um iria possuir de bem." [p. 48]. Rushdoony é categórico em dizer que a Divina Comédia é a história da salvação política.

Voegelin notou quatro símbolos pertinentes na filosofia da história de Joaquim de Fiori que ecoam pela modernidade: (1) a concepção de história como uma sequência de eras; (2) o líder da Nova Era, o Dux; (3) o profeta dessa nova era; e (4) a irmandade de pessoas autônomas.

O primeiro pode ser reconhecido na teoria de Turgot e Comte sobre a sequência das fases teológica, filosófica e científica, bem como na dialética hegeliana. O segundo foi reconhecido na pessoa de S. Francisco de Assis pelos próprios franciscanos. Dante especula em sua obra “A Divina Comédia” sobre quem seria o Dux. O terceiro símbolo poderia incluir o próprio Joaquim de Fiori. O quarto, por sua vez, seria representado por uma comunidade de perfeição espiritual que aboliria qualquer necessidade institucional, e é exatamente a meta comunista.

Algumas acusações de Voegelin contra a Reforma serão discutidas num tópico à parte no transcorrer deste texto. No momento, vamos atentar para algo que os inimigos da Reforma convenientemente se esquecem de mencionar quando usam Voegelin como argumento: a figura de Francisco de Assis como o Dux, o Líder, da Nova Era.

Em nenhum momento, pois, foi necessário citar a Reforma Protestante como causa das conclusões acima.

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Autor: Vitor Barreto
Divulgação: Bereianos

Leia também:
A Gênese da Revolução Civil - Uma Refutação a Olavo de Carvalho (Parte 2)
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