Os atributos do cristão - 1/2

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Texto base: Romanos 12.9-21

Os cristãos são convocados pelo evangelho a manifestarem amor uns pelos outros, especialmente pelos inimigos. O amor é a base dos nossos relacionamentos. Nossas atitudes devem ser regidas pelo amor, conforme o apóstolo João [em sua primeira carta] e os demais escritores sacros admoestam. 

Visto que o amor tem decrescido não somente da sociedade, mas especialmente na igreja, Paulo, em Romanos 12.9-21, enumera uma lista de virtudes baseadas no amor, as quais não devem ser apenas almejadas, mas, sobretudo, alcançadas pelos cristãos através da oração e do agir soberano do Espírito Santo na concessão delas.

INTRODUÇÃO 


No trecho anterior (vs.3-8), Paulo utilizou a analogia do corpo humano e suas partes, a fim de ilustrar a unidade e a diversidade dos dons espirituais na igreja (vs.5-6). O apóstolo também focalizou a necessidade de cada cristão reconhecer os seus dons e a importância de usá-los de forma apropriada para a edificação coletiva (vs.6-8).  

O presente trecho (vs.9-21), por sua vez, expressa similaridades com os ensinamentos de Jesus no Sermão do Monte (compare os vs.14, 17,21 com Mateus 5.43-45). Não obstante, a linha de pensamento que Paulo descreve em Romanos 12 é praticamente a mesma de 1 Coríntios 12-13 (sobre a analogia do corpo humano, compare os vs.4-5 com 1Co 12.12-27; acerca da diversidade dos dons espirituais, compare os vs.6-8 com 1Co 12.28-30; e a respeito do amor como o dom supremo, compare os vs.9-31 com 1Co 13).

Segundo muitos estudiosos, não há uma ordem sistemática neste trecho de Romanos 12. Eles afirmam que a estrutura do raciocínio de Paulo é digressiva, isto é, confusa e desorganizada, como se o apóstolo não tivesse um foco. Pessoalmente, reconheço que este trecho, no que se refere a divisões e subdivisões é, com efeito, o mais abstruso da carta aos Romanos. Entretanto, mesmo que não seja um paradigma a ser observado, há várias formas de metodizá-lo.  
                
Paulo elenca uma lista de imperativos que os cristãos devem obedecer. John Murray realça que o capítulo inteiro ocupa-se com os aspectos práticos da santificação; e, por esse motivo, as exortações têm de abranger diversas situações da vida.[1] À partir deste trecho, Paulo inicia uma longa série de imperativos baseados no amor, o qual se estende até o capítulo 15.    
      
O esboço analítico desta seção pode ser dividido em apenas duas seções. Primeiro, o apóstolo discorre sobre a relação dos cristãos uns com os outros (vs.9-13, 15-16); Segundo, ele disserta acerca da relação dos cristãos com aqueles que os consideram inimigos (12.14,17-21).
    
EXPLANAÇÃO

1. O relacionamento dos cristãos uns com os outros (12.9-13,15-16) 

A palavra “amor” αγάπη (ágape) aparece em Romanos 12 vezes (veja as ocorrências em 5.5, 9; 8.35-36, 39; 9.3; 12.9-10; 13.8, 10; 14.15; 15.30). Nos capítulos antecedentes, essa palavra salienta o amor de Deus pelos seus eleitos. No capítulo em voga, todavia, Paulo enfatiza o amor como uma marca preponderante do cristão. Este novo trecho, diferentemente do anterior (vs.3-8), onde o apóstolo tratou sobre os dons espirituais, sublinha o fruto do Espírito, descrito em Gálatas 5.22 [amor, alegria, paz, longanimidade]. Portanto, qual é o motivo dessa distinção?  

Os dons espirituais são outorgados aos cristãos de “maneira diversa”, onde cada um é admoestado a exercer seus dons adequadamente para a edificação da igreja (vs.6-8). Por outro lado, é determinante que todos os cristãos apresentem os frutos do Espírito, conforme indicam os cinco deveres subsequentes. Senão vejamos:  
          
a) As obrigações pessoais (12.9)

Paulo descreve dois imperativos que assinalam a responsabilidade dos cristãos como indivíduos.  
    
i. Devemos amar de forma sincera (vs.9a)

O amor é a base de todos os mandamentos (Mt 22.34-40). Diferente do amor fraternal (vs.10), que é “restritivo”, pois faz parte do relacionamento entre irmãos na fé, o amor que Paulo realça aqui é “inclusivo”. O apóstolo exorta que o amor dos cristãos por Deus, pelos irmãos na fé, pelo próximo e até pelos inimigos, deve ser verdadeiro. 
    
O adjetivo sincero é a tradução do substantivo hipocrisia ανυπόκριτος (anypókritos), que, no grego, significa “fingimento”, “dissimulação”. Essa palavra caracteriza os “atores” que utilizavam “máscaras” nas peças de teatro, no mundo antigo; traz a ideia de “representar um papel”, “fingir ser alguém que não é diante das pessoas.” O hipócrita é um enganador! Stott ressalta que a igreja não pode transforma-se num palco. Afinal, o amor não é teatro; ele faz parte da vida real.[2] 

Nenhum pecado é mais digno de repreensão e mais destrutivo para a integridade do que a hipocrisia, porquanto é a contradição da verdade (veja Lc 22.48). Se o amor é o resumo da virtude, e a hipocrisia é a síntese do pecado, que contradição está envolvida na junção dessas duas coisas! Afeição dissimuladora![3]

Sendo assim, Paulo declara que a expressão de amor dos cristãos não deve ser encenada, como se estivessem representando um papel ou usando uma máscara. Nosso amor pelos outros deve ser genuíno, sem fingimento (Lv 19.18; Mt 22.34-40; Gl 5.14; Tg 2.8).  
              
ii. Devemos execrar o mal e afeiçoarmo-nos ao bem (vs.9b,c)

As palavras mal e bem retratam uma antítese. O Mal πονηρόν (ponirón) refere-se “aquilo que é prejudicial”, enquanto o bem αγαθός (agathos) designa “aquilo que é benéfico”. Paulo, então, recomenda negativamente a detestarmos, abominarmos αποστυγέω (apostygéo̱) todas as classes de maldade; em seguida, ordena positivamente a nos afixarmos κολλάω (kolláo̱) [“como cola”, que é a ideia no grego] em todas as manifestações de bondade. Fomos chamados não apenas para sermos diligentes na prática do bem, mas, sobretudo, a persistirmos ativamente nesta conduta. Apesar de sermos regenerados pelo Espírito Santo, ainda temos uma natureza pecaminosa que ama fazer o mal e, portanto, necessita ser subjugada todos os dias através do revestimento do novo homem (Ef 4.17-32; Cl 3.5-17). Destarte, precisamos “odiar” o amor ao mal e “agarrarmo-nos” ao bem!(Sl 97.10a; 1Pe 3.10-11).

b) As obrigações sentimentais (12.10)

Paulo desloca-se, agora, para a responsabilidade dos cristãos para com o aspecto emocional dos irmãos na fé. Ele tece dois imperativos. Vejamos, pois:
  
i. Devemos amar os irmãos na fé assim como amamos nossa família (vs.10a)

O apóstolo utiliza duas palavras incomuns para associar o “amor fraternal” ao “amor de viés afetivo”. Amai-vos cordialmente φιλόστοργοι (filostorgos), destaca o amor natural que sentimos por nossos familiares, como o amor dos pais pelos filhos e o amor entre irmãos. O amor fraternal φιλαδελφία (filadelfia), por sua vez, acentua o amor entre os irmãos na fé. As duas palavras eram empregadas para frisar os relacionamentos familiares. Paulo, no entanto, atribui uma nova conotação a essas palavras, referindo-se ao amor que uni os cristãos uns com os outros como membros da família de Deus em Cristo.

Hendriksen escreve: 
         
Os vínculos que unem os membros dessa família espiritual são muito mais seguros e duráveis do que os que ligam os membros de uma família puramente física (Lc 14.26). O que o apóstolo está dizendo, pois, é que os membros dessa família espiritual precisam fazer tudo que estiver em seu poder para dedicar-se uns aos outros, e permanecer assim, com terna afeição.[4]

William Barclay alega que a igreja cristã não é uma coleção de conhecidos, nem mesmo uma reunião de amigos; é uma família em Deus.[5] Precisamos oferecer todo o nosso amor aos demais cristãos. Fazemos parte de uma família. Somos irmãos na fé (veja 1Ts 4.9; 1Pe 1.22; 1Jo 2 7-11; 3.11-12, 17-18).   
  
ii. Devemos engrandecer uns aos outros (vs.10b)

Este segundo imperativo mútuo complementa o anterior. Não devemos somente amar os nossos irmãos, mas, também, prestar honra a eles. No grego, a palavra preferindo-vos προηγέομαι (proegeomai), traz a ideia de “abrir e mostrar o caminho para os outros”; significa “demonstrar respeito, apreço, considerar os outros como melhores que nós”. Paulo solicita que devemos considerar nossos irmãos na fé como dignos de maior honra do que nós; que os estimemos mais do que a nós mesmos. Isso, porém, não denota que você e eu temos que considerar uns aos outros mais competentes do que nós. Cada um é eficiente naquilo que foi dotado por Deus. Antes, o apóstolo quer dizer que humildemente devemos “considerar” nossos irmãos melhores do que nós (veja Fp 2.3).

Devemos honrar nossos irmãos em vez de menosprezá-los por suas debilidades. Calvino disse que não há veneno mais letal para arrefecer [esfriar] os relacionamentos do que alguém imaginar-se depreciado.[6] Ao invés de contendermos por superioridade, que estejamos dispostos a conceder aos outros a preeminência.[7]
                                  
c) As obrigações espirituais (12.11-12)

Paulo convoca a atenção dos cristãos para a responsabilidade nos deveres espirituais. Tendo em vista o perigo da letargia espiritual concernente ao fato de honrarmos nossos irmãos na fé, o apóstolo aduz três imperativos que estão intimamente conectados. Senão vejamos: 

i. Não devemos ser indolentes na vida cristã (vs.11a)

Temos aqui uma admoestação negativa, a qual é direcionada contra o ato de cansar-se de fazer o bem (Gl 6.9). A expressão no zelo, não sejais remissos, implica que não devemos ser “preguiçosos”, “apáticos” na vida cristã, na doutrina, no trabalho para Deus; antes, precisamos ser diligentes.

Lloyd Jones expande:

Quando Paulo diz para os cristãos se animarem, não está pedindo que eles se transformem em algo que não são por natureza. Não podemos mudar nossa natureza ou temperamento. Sendo assim, Paulo não está tentando conseguir que alguém que talvez seja um pouco apático por natureza coloque uma máscara e desempenhe um papel. Não é isso. Contudo, ele está dizendo que nos animemos a nós mesmos.[8]  

Calvino frisa que, se esquecermos de nós mesmos na execução de muitos de nossos deveres, jamais estaremos adequadamente preparados para a obediência a Cristo, a menos que instemos conosco mesmos, esforçando-nos diligentemente por desprendermo-nos de toda nossa indolência.[9]   
          
ii. Devemos ser aplicados na vida cristã (vs.11b)

Este segundo preceito, de cunho positivo, acresce o anterior, demonstrando a importância de nos sustermos nele. Paulo recomenda que sejamos fervorosos no espírito. Pessoalmente, acredito que essa expressão refere-se não ao “espírito humano”, conforme muitos estudiosos atestam, mas ao “Espírito Santo”. Descarto a ideia de que, baseado em Atos 18.24-25, Paulo esteja fazendo alusão ao “espírito humano”. 
   
Lloyd Jones explica:

Você não pode mudar seu temperamento. Se você nasceu fervoroso no “espírito”, é o que você é; porém, se nasceu com uma espécie fleumática de temperamento, não será fervoroso no espírito, no sentido natural. Contudo, o texto nos diz que devemos ser “fervorosos no espírito”. Portanto, eu digo que essas palavras só podem referir-se ao “Espírito Santo”, que está em nós, cristãos, seja o que for que sejamos por temperamento. Não devemos nos esquecer de que isso é uma ordem, e, portanto, é algo que podemos ser.[10] 

A expressão sede fervorosos ζέοντες (zéontes), literalmente “mantendo o fervor”, significa “ferver ao ponto de ebulição, estar muito quente, inflamado”; traz a ideia de “estimulação”. Paulo está dizendo que devemos estar fervendo no “Espírito”, isto é, sempre entusiasmados com a vida cristã e suas nuances, como a oração, o estudo da Palavra, a assiduidade nos cultos e o serviço cristão. 

Hendriksen corrobora nosso entendimento da expressão “fervoroso no Espírito”, dizendo: 

Naturalmente, a fonte do entusiasmo não está no homem. Se uma pessoa está para ser “lançada ao fogo”, é o Espírito Santo quem deve fazer isso. Assim diz Paulo: “Nunca evitem demonstrar entusiasmo.” E acrescenta imediatamente: “Que ardam com o Espírito.” Os santos não só devem tomar cuidado de não apagar o Espírito, de não resistir ao Espírito e nem mesmo de entristecer o Espírito; devem rogar ardentemente que o Espírito Santo as encham de zelo, do entusiasmo necessário para apropriadamente levar a bom termo seus deveres cristãos e atingir seu alvo.[11]   
     
Calvino enuncia que nossa carne, à semelhança dos asnos, é perenemente indolente, e por isso carecemos de ser esporeados. Não há outro corretivo mais eficaz para a nossa indolência do que o fervor do espírito. Portanto, a diligência em fazer o bem requer aquele zelo que o Espírito de Deus acendeu em nossos corações.[12]  
      
A terceira exortação, por conseguinte, assinala que os cristãos devem ser fervorosos servindo ao Senhor τω κυρίω δουλεύοντες (to̱ kyrío̱ doulév̱ontes) [tradução literal]. O grego transmite a ideia de “estarmos continuamente trabalhando para o Senhor como escravos dele”. Essa frase completiva mostra que o “fervor no Espírito” não é algo isolado, não obstante está ligado ao “servir a Deus”, e tem “o duplo propósito de despertar-nos da ociosidade e regular o zelo”.[13]  

Logo, ser “fervoroso no Espírito” não implica em ter um comportamento extravagante e sem domínio próprio, conforme muitos pentecostais e neopentecostais apresentam. Pelo contrário, o “fervor no Espírito” é caracterizado pela diligência. Em outras palavras, da piedade e do serviço cristão sucede uma vida fervorosa.

James Dunn ratifica:

A frase adicional sirvam ao Senhor pode muito bem servir como "um controle ou uma pausa para aquilo que, de outra forma, poderia ser interpretado como um convite ao entusiasmo desenfreado". 

Stott, por sua vez, afirma que o comprometimento prático com o Senhor Jesus, tal como o de um escravo com o seu mestre, mantém o zelo firmemente enraizado na realidade.[14] 

Não devemos permitir que a morosidade espiritual adentre-se em nossa vida e apague o “fogo do Espírito” (1Ts 5.19). Que sejamos constantemente aplicados nas disciplinas espirituais, servindo ao Senhor orando, conhecendo-o cada vez mais através do estudo das Escrituras, congregando e usando nossos dons para a edificação dos irmãos. Servir a Deus é “o antídoto supremo contra toda e qualquer tendência para a preguiça na vida cristã”.[15]  
  
iii. Devemos nos alegrar na esperança, sermos pacientes na adversidade e diligentes na oração (vs.12)  

Assim como a tríade anterior, os três imperativos em voga também estão interligados. Em primeiro lugar, temos que nos regozijar na esperança, que se refere à consumação da nossa salvação, que se dará no futuro, por ocasião da segunda vinda de Cristo (5.2, 4-5; 8.24-25; 15.4, 13; 1Pe 1.3-5). Todavia, é importante frisarmos que a esperança não é o “objeto” da alegria que devemos ter. Antes, o “foco” da nossa esperança é Cristo! Desse modo, a esperança que temos no estabelecimento do reino de Deus nesta terra sobre a égide do Senhor Jesus é a “causa” da nossa alegria. Portanto, o conselho instaurado é que devemos nos alegrar “em virtude” da esperança da regeneração de todas as coisas. 
    
Em segundo lugar, só iremos ter paciência na tribulação se nos alegrarmos através da esperança. Paulo não ensina que devemos “suportar” as pressões da vida, mas sim, “perseverarmos” em meio às intempéries (8.35-39; Jo 16.33; Atos 14.22; 2Co 1.4-5, 4.17; 8.2; 1Ts 1.6-7; 3.3; 2Ts 1.4; 2Tm 3.11-12). O propósito do Senhor no decreto dos infortúnios para os cristãos é pedagógico. As calamidades têm o poder de santificar, aperfeiçoar e amadurecer os cristãos para, assim, torná-los cada vez mais semelhantes à Cristo Jesus (2Co 4.17-18). 

Em terceiro lugar, se não houver afinco na oração, será impossível nos alegramos na esperança do retorno de Cristo e sermos persistentes na fé nas adversidades. A oração faz parte de uma vida cristã normal, saudável. Precisamos orar constantemente! (At 2.42; Cl 4.2; 1Ts 5.17; 1Tm 2.8). A inércia na oração gera tepidez espiritual! John Murray pontua: 
      
A perseverança em meios às tribulações é medida por nossa diligência na oração. A oração é o instrumento determinado por Deus para o suprimento da graça suficiente para toda circunstância e, particularmente, contra o desencorajamento de coração a que somos tentados pelas aflições. Quão assustadoras seriam as tribulações, se não possuíssemos esperança (1Co 15.19); quão derrotistas seriámos na perseguição, se não tivéssemos os recursos da esperança e da perseverança fornecidos a nós através da oração.[16] 
           
A oração é o mecanismo mais eficaz para não sermos sucumbidos pelo desânimo espiritual que as tribulações geralmente produzem em nosso coração. Lloyd Jones conclui, expandindo:

São esses os antídotos contra a preguiça, a moleza, o desalento, o pessimismo, ou o medo dos incrédulos modernos e seus escritos. Leiam as Escrituras, considerem o plano de Deus, Contemplem Jesus, fixem seus olhos nele (Hb 12.2). Vejam o que Ele fez, vejam o que Ele está fazendo, vejam o que Ele ainda vai fazer. Assim não haverá preguiça.[17]    
                           
d) As obrigações sociais (12.13)

Desta vez, Paulo apresenta aos cristãos os deveres sociais. O apóstolo ressalta dois imperativos.  
  
i. Devemos ser generosos para com os irmãos em necessidade (vs.13a)

No grego, o verbo compartilhar κοινωνέω (koino̱néo̱), literalmente “compartilhando”, denota “comunhão”, “parceria”. Traz a ideia de “participar nas diversas necessidades e sofrimentos dos irmãos, repartindo os nossos recursos com eles sempre que precisarem”. 

Adolph Pohl observa:

Às vezes, o membro que passava a pertencer a uma igreja domiciliar perdia facilmente seu respaldo social anterior. Era possível que as viúvas fossem excluídas da assistência pública aos pobres por causa de sua fé. Com isso, elas eram depositadas aos pés da igreja como uma tarefa (Tg 1.27). Os mestres da igreja também careciam de auxílio em seus primórdios, uma vez que o serviço dedicado à igreja comprometia sua subsistência (Gl 6.6; 1Co 9.14).[18]

Numa sociedade em que impera o individualismo e a indiferença, devemos, como cristãos, assumir os problemas dos irmãos como se fossem os nossos próprios problemas, sofrendo e lutando com eles. Devemos ser parceiros dos irmãos que se encontram atribulados.   

A generosidade em compartilhar nossos bens com os irmãos em necessidade é uma prova cabal do amor fraternal ordenado na Escritura (Gl 6.2; 1Jo 3.18). Calvino acentua que somente quando aliviamos as necessidades de nossos irmãos, por nenhuma outra razão senão para exercer nossa benevolência em prol deles, é que verdadeiramente comprovamos nosso amor.[19] Os cristãos da igreja primitiva, por exemplo, eram extremamente liberais e solidários (At 2.44-45). Acerca disso, MacArthur escreve: 

Os cristãos primitivos não viviam em comunidade ou associação e redistribuíam tudo em igualdade, antes, mantinham suas posses sem estarem presos às mesmas, estando dispostos a usá-las a qualquer momento em favor de alguém, à medida que as necessidades surgissem.[20]

ii. Devemos ser receptivos (vs.13b)

A palavra hospitalidade φιλοξενία (filoxenia), no grego, significa “amor aos estranhos” (Hb 13.2). O verbo διώκοντες (dió̱kontes), literalmente “buscando”, foi traduzido por praticar. Comunica a ideia de sermos “ativos na busca pela hospitalidade”.

Na época do Novo Testamento, viajar era perigoso e as hospedarias eram ruins, escassas e caras. Assim, os primeiros cristãos, com frequência, abriam suas casas para os viajantes, especialmente para os companheiros cristãos (veja 2Tm 1.16-18; 3Jo 5-8).[21]

John Murray complementa:

Na época dos apóstolos, existia a urgente necessidade da prática dessa virtude. Havia as perseguições pelas quais os cristãos eram compelidos a migrar e outras razões que os forçavam a mudar de um lugar para o outro. Os mensageiros do evangelho eram itinerantes no cumprimento de sua missão. O mundo não se mostrava hospitaleiro. Portanto, era um exemplo fundamental da maneira pela qual os crentes deveriam ser participantes das necessidades dos santos.[22]

A hospitalidade é uma ordem (1Pe 4.9), faz parte das boas obras (1Tm 5.10), é um privilégio (Hb 13.2) e, por isso, devemos praticá-la. Não somente os cristãos devem ser hospitaleiros para com os irmãos, mas especialmente os pastores. Eles devem ser os primeiros a exercerem a hospitalidade (Tt 1.8). 

e) As obrigações relacionais (12.15-16)

O apóstolo expõe a responsabilidade dos cristãos no vínculo afetivo. Paulo arrola três exortações. Vejamos, pois: 

i. Devemos nos identificar uns com os outros (vs.15)

No versículo 13, vimos que os cristãos devem manifestar empatia para com os irmãos na fé. Aqui, no presente versículo, temos outro exemplo de empatia. O corpo de Cristo [a igreja] é uma unidade composta de pessoas individuais. Sendo assim, temos que expressar nosso amor pelos irmãos na fé nos momentos de alegria e tristeza (1Co 12.26). Esse amor é confirmado por simples gestos que significam muito! MacArthur elenca-os:  

Ficar feliz com as bênçãos, as honras e o bem-estar dos outros – não importa qual seja a sua própria situação (2Co 2.3), e ser sensível e compassivo com relação às adversidades e aflições dos outros (Cl 3.12; Tg 5.11; Lc 19.41-44; Jo 11.35).23

A empatia, segundo John Murray, não se encontra em nós por natureza. Ciúmes e inveja, ódio e malícia são nossas inclinações naturais (Gl 5.20; Tt 3.3). Essa exortação, tanto quanto qualquer outra na lista de virtudes demonstra a transformação (vs.2) que deve ser realizada naqueles que são um só corpo em Cristo (vs.5).[24] Conforme disse Calvino, deixar de dar as boas vindas à felicidade de um irmão, com genuína alegria, é um sinal de inveja; e deixar de demonstrar real tristeza em seu infortúnio, é sinal de desumanidade. Portanto, sintamos compaixão uns pelos outros, de forma que nos identifiquemos mutuamente, demonstrando o mesmo estado mental.[25] 

ii. Devemos viver em conformidade uns com os outros (vs.16a)

A expressão tende o mesmo sentimento uns para com os outros sublinha a ideia de “termos uma mesma mentalidade uns para com os outros.” Em outras palavras, Paulo exorta os cristãos a “a terem o mesmo pensamento”, a “viverem em harmonia uns com os outros”. Com isso, o apóstolo exige que os cristãos pensem da mesma forma em todas as coisas? Não! A igreja é uma unidade constituída de indivíduos que pensam diferente uns dos outros em muitas coisas. Cada homem e mulher têm estilos e predileções que diferem uns dos outros. Isso faz parte da essência de cada ser humano. Desse modo, Paulo está dizendo que os cristãos precisam ser unânimes com relação à verdade, com as doutrinas primordiais da fé (1Co 1.10; 11.17-19; Fp 1.27; 3.15-16; Cl 2.1-3). 

Todos nós devemos pensar as mesmas coisas. As nossas mentes devem estar operando da mesma forma e seguindo os mesmos canais, para que não haja nenhuma divisão, nenhum cisma, mas sim, unidade como povo cristão.[26]  
   
iii. Devemos ser humildes (vs.16b) 

As duas proposições seguintes opõem-se ao orgulho, ao desejo por status e ao reconhecimento dos homens. Paulo traça uma antítese entre a mentalidade ufana [soberba] e a mentalidade humilde. A palavra condescendei συναπαγόμενοι (synapagómenoi), significa “deixar ser conduzido”, “indicando que nossos sentimentos e atitudes devem estar de tal maneira harmonizados com as coisas humildes, que nos sintamos perfeitamente à vontade com essas circunstâncias”.[27] O apóstolo recomenda que, ao invés de pensarmos que somos melhores do que os outros, sendo sábios aos nossos próprios olhos (Pv 3.7-8), de ambicionarmos coisas e posições sociais grandiosas, e de anelarmos a glorificação dos homens, devemos ser humildes, contentando-nos com o nosso status e com a vida que foi decretada para nós (veja Fp 4.11; 1Tm 6.8-9; Hb 13.5).

Continua nos próximos dias...


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NOTAS:
1. John Murray. Romanos, pág 491.
2. John Stott. A mensagem de Romanos, pág 399.
3. John Murray. Romanos, pág 491.
4. William Hendriksen. Romanos, pág 544.
5. William Barclay. Romanos, pág 175.
6. Calvino. Romanos, pág 447.
7. Matthew Henry. Comentário Bíblico do Novo Testamento – Atos a Apocalipse, Pág 390.
8. D.M. Lloyd Jones. Romanos, volume 12, pág 443.
9. Calvino. Romanos, pág 447.
10. D.M. Lloyd Jones. Romanos, volume 12, pág 447.
11. William Hendriksen. Romanos, pág 545.
12. Calvino. Romanos, pág 447.
13. John Murray. Romanos, pág 494.
14. John Stott citando James Dunn, em A Mensagem de Romanos, pág 401.
15. D.M. Lloyd Jones. Romanos, volume 12, pág 456.
16. John Murray. Romanos, pág 495-496.
17. D.M. Lloyd Jones. Romanos, volume 12, pág 474-475.
18. Adolph Pohl. Romanos, pág 125.
19. Calvino. Romanos, pág 449.
20. Bíblia de Estudo MacArthur. Notas de Rodapé, pág 1440.
21. Ibid, pág 1517.
22. John Murray. Romanos, pág 497.
23. Bíblia de Estudo MacArthur. Notas de Rodapé, pág 1517.
24. John Murray. Romanos, pág 498.
25. Calvino. Romanos, pág 452.
26. D.M. Lloyd Jones. Romanos, volume 12, pág 543.  
27. John Murray. Romanos, pág 500.  

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Autor: Leonardo Dâmaso
Fonte: Bereianos

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Os atributos do cristão - 2/2
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