Porque Paulo não condenou a escravidão?

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Por Daniel Grubba

A carta de Paulo à Filemom é a mais curta e mais pessoal das cartas paulinas. São apenas 335 palavras em grego, e também a única amostra de correspondência particular de Paulo que foi preservada. Tornou-se conhecida como “a carta da cortesia”, pois nela Paulo intervém com delicadeza e tato em favor do escravo Onésimo, que não somente fugiu, mas ainda furtou seu patrão Filemom. Esta pequena carta, como documento sócio-histórico, traz à tona o polêmico tema da escravidão. Portanto, nossa proposta é tentar responder a indagação sincera de muitos cristãos e não-cristãos: Por que Paulo não condenou a escravidão?

Deve ficar claro de antemão, que é muito difícil, com base nos poucos textos de Paulo que falam da escravidão especificamente, formar uma declaração definitiva e sistemática das opiniões de Paulo sobre o assunto. Temos algumas indicações em I Coríntios 7.20-22 e Filemom. Especificamente no que tange a carta a Filemom, J. D. Crossan esclarece que “não se trata de um tratado teórico sobre a escravidão em geral, mas de respostas práticas no tocante a um escravo particular”.

A escravidão, como instituição social, era muito comum no mundo greco-romano dos dias de Paulo. Alguns pesquisadores calculam que metade da população do Império Romano era constituída por escravos , outros, porém, estimam que nos séculos I e II d.C., de 85 a 90 por cento dos habitantes de Roma eram escravos ou de origem escrava. Devemos também considerar que os escravos do Império estavam longe de serem tratados como os escravos que eram trazidos nos navios negreiros (séc. XVIII). Devemos ter o cuidado para não generalizar. Pesquisadores apontam que no século I foram concedidos muitos direitos aos escravos, mudanças humanitárias foram incorporadas ao mundo romano e a vida dos escravos melhorou radicalmente. Por exemplo, eles podiam participar dos cultos religiosos como membro da família do dono, podiam casar-se, tinham permissão para juntar dinheiro e comprar a liberdade, e muitos exerciam funções dignas como, artesãos, artífices, arquitetos, médicos, administradores, filósofos, gramáticos, escritos e mestres.

A questão levantada por vezes é que o NT nunca condena a escravidão explicitamente e assim é defeituoso num ponto fundamental. Os críticos da Bíblia perguntam se Paulo não estaria aprovando a instituição da escravidão, uma vez que o apóstolo parece estar fornecendo a escravatura humana ao enviar de volta ao seu proprietário. O secularista Isaac Asimov escreveu:

"Contudo, enquanto Paulo intercede a favor do escravo Onésimo, que é agora irmão de Filemom segundo o cristianismo, não há nenhuma sugestão por parte de Paulo de que a escravidão fosse errada ou imoral como instituição. Na verdade, Paulo até aconselha os escravos a obedecerem a seus mestres. Portanto, apesar de alguns princípios inovadores, o cristianismo de modo algum foi uma doutrina de revolução social".


Russel Champlin responde a acusação de Isaac Asimov sobre a atitude de Paulo para com a escravatura:

"É inútil a posição que o próprio se opunha a escravidão, mas guardou silêncio. Antes, ele nunca mostrou a intenção de derrubar o sistema, e é provável que não se sentisse compelido a fazê-lo. Provavelmente compartilhava da atitude de que deveria usar de maior humanidade com os escravos, de usaram filósofos como Aristóteles, Zeno, Epicuro e Sêneca. Além disso, lebremo-nos da cultura dos hebreus, de que Paulo fazia parte, onde havia uma atitude mais humana para com os escravos".

Champlin aborda um ponto interessante. A escravidão no mundo antigo, principalmente entre os hebreus, estava longe de ser como a escravidão desumanizante exercida sobre os índios e negros nos séculos passados. Podemos notar com muita clareza que o Antigo Testamento defendia os direitos civis do escravo, e o protegia contra as crueldades de seus senhores (Alguns exemplos: Ex 21.7-11; Ex 21.26-27; Dt 23.15; Lv 25.42,43). Porém esta análise da escravidão no AT não responde a pergunta: Por que Paulo não defendeu a alforria imediata de todo escravo?

Hendriksen responde dizendo que “tal revolução repentina de toda economia romana teria resultado em miséria indescritível para muitos escravos que dependiam de seus senhores para viver, e teria colocado um obstáculo intransponível à propagação da fé cristã.” Além do mais, se a igreja tivesse iniciado uma revolução imediata contra as estruturas escravagistas, o evangelho não teria se difundido como aconteceu na igreja primitiva. O tempo não estava maduro para a solução de questões tão difíceis.

Devemos ter em mente que algo mais revolucionário estava acontecendo, do que simplesmente proclamar a alforria imediata dos escravos. Quando Paulo pede a Filemom que recebe a Onésimo como um irmão amado, algo absolutamente impensável e inacreditável acontece: Paulo passa a declarar em alto e bom som que no cristianismo “não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”; isto é, todos são iguais perante o Criador. Está claro nas cartas paulinas que a conversão a Cristo derrubou todas as barreiras sociais, raciais e econômicas. A igreja como um todo deve se caracterizar por virtudes como amor, perdão, igualdade e solidariedade. O apologista Norman Geisler nos ajuda a compreender o dilema que estamos tratanto:

"Olhando com maior cuidado o texto de Filemom, vemos que Paulo não estava favorecendo a escravidão, mas na verdade a estava combatendo, pois instou Filemom [...] a tratá-lo como um “irmão caríssimo”. Assim ao enfatizar a inerente igualdade de todos os seres humanos, tanto por criação como por redenção, a Bíblia estabeleceu os reais princípios morais que foram usados para acabar com a escravidão e para restabelecer a dignidade e a liberdade de todas as pessoas, de toda cor ou grupo étnico".

Estamos diante de uma verdadeira revolução, porém, revolução não-armada; trata-se de uma revolução pacífica, uma revolução no coração das pessoas que compõe a comunidade cristã. Gosto da citação Hendriksen quando ele diz que:

"O que Paulo ensina [...] é que o amor vindo de ambos os lados (senhores e escravos), é a única solução. Este amor é a resposta de Deus para com seus filhos, seja este filho preto ou branco, escravo ou livre. É este amor de Deus que derrete a crueldade transformando-a em bondade e, assim fazendo-o, transforma déspotas em patrões bondosos, escravos em servos serviçais, e a todos os que aceitam, em irmãos em Cristo".

Vemos claramente na carta de Paulo à Filemom que o elo entre senhor e escravo foi quebrado por um breve tempo entre fuga e retorno. Mas o elo entre os dois, como irmãos em Cristo, nunca seria rompido, nem aqui nem no porvir. E este foi o grande desígnio de Deus, seu maravilhoso plano.

Autor: Daniel Grubba
Fonte: [ Soli Deo Gloria ]
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