Os Puritanos e a certeza inabalável do Espírito

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Algumas vezes, os Puritanos falavam sobre a segurança da salvação como fruto da fé, e, outras vezes, como uma qualidade da fé; falavam sobre a segurança proveniente da fé assim como sobre a fé que cresce mediante a segurança. Para eles, a segurança era a fé amadurecida e bem desenvolvida; poderia haver fé sem segurança, mas onde a segurança fizer-se presente, ela estará presente como um aspecto da fé, organica-mente relacionada a ela, não como algo distinto e separado dela. Assim sendo, precisamos iniciar este estudo revendo aquilo que os Puritanos ensinavam sobre a natureza da fé em geral.

A fé, diziam os Puritanos, começa na mente, com a crença na veracidade da mensagem do evangelho. Resulta da iluminação espiritual. Na iluminação, o Espírito aclara a mente, capacitando o homem a receber as realidades espirituais, e imprime sobre a mente a realidade objetiva daquelas coisas sobre as quais a Palavra de Deus dá testemunho. O conhecimento das realidades espirituais, assim dado, é tão imediato e direto como o é o conhecimento das coisas materiais que obtemos através dos sentidos físicos; tal conhecimento produz uma convicção imediata, análoga àquela que a percepção dos sentidos nos traz. A Bíblia alude ao processo, utilizando termos emprestados dos sentidos — visão, audição, paladar (Jo 6.40; Ef 4.21; Hb 6.5) — e diz-nos que isso produz a "forte convicção do entendimento" (Cl 2.2). Essa apreciação espiritual das coisas espirituais é dada ao homem, como um ser que pensa, por meio da exposição raciocinada das Escrituras e da reflexão racional sobre as mesmas. O homem não pode conhecer qualquer objeto espiritual salvo através do uso de sua mente; mas o conhecimento espiritual vai além da razão. Não se trata de mera conjectura lógica ou imaginativa e certamente também não é uma certeza derivada de alguma inferência, extraída de premissas mais certas; antes, sua certeza origina-se da conscientização imediata e do contato com a realidade conhecida. Não é um instável "conhecimento imaginário e flutuante" de segunda mão. E um conhecimento "real" e "sólido", produto de uma direta percepção, por meio do senso espiritual das coisas conhecidas. A operação divina mediante a qual essa percepção é dada é aquilo que Calvino e seus sucessores chamaram de testimonium internum Spiritus Sancti — testemunho interno do Espírito Santo. Paulo refere-se a isso, em 1 Coríntios 2.4, como a "demonstração do Espírito".

Goodwin apresentou o assunto desta forma: "O Espírito Santo, quando opera em nós a fé... faz duas coisas: Primeira, Ele... nos dá um novo entendimento... 1 João 5.20... uma nova visão para contemplarmos a Cristo... Segunda, Ele mesmo torna-se uma luz sobre essa nova compreensão", conferindo assim "visão" espiritual acerca das realidades espirituais.1 Esse conhecimento espiritual é, de fato, mais certo do que qualquer outra coisa. Ele pode ser obscurecido pelas tentações; aquele que o possui pode ficar tão fora de contato consigo mesmo por um longo tempo, ou tão confuso e deprimido interiormente que chega a duvidar e a negar o mesmo; mas no fim será um fator predominante, e, a longo prazo, o efeito desses lapsos pode levá-lo a compreender quão inabalável e completamente seu coração está convicto desse conhecimento espiritual. Tal é o conhecimento das coisas divinas, dado a todos os verdadeiros crentes; e é a qualidade da certeza vinculada ao conhecimento que garante que os crentes não se desviem. Esse testemunho do Espírito quanto à verdade objetiva do eangelho é o fator fundamental da fé pessoal, e essa "forte convicção do entendimento" sobre o evangelho, conferida pelo Espírito, é requisito prévio para a segurança pessoal acerca da salvação.

Naturalmente, a fé é mais do que a iluminação mental. Estende-se da cabeça ao coração, expressando-se naquilo que Baxter chamava de "confiança prática" em Deus, por meio de Cristo. O homem volta-se da autoconfiança e do pecado para descansar a sua alma em Cristo e em suas promessas. Por meio disso, tanto exprimiu quanto estabeleceu o hábito da fé em sua alma; e a fé, uma vez estabelecida, impõe-se como a dinâmica de uma nova vida. A fé gera a esperança, atua pelo amor, mantém-se numa firme paciência, manifesta-se em boas obras, faz a alegria e a paz surgirem natural e espontaneamente no coração. "A fé é a roda mestra; ela põe em funcionamento todas as demais graças". "A fé é a mola de relógio que põe em ação todas as rodas douradas do amor, da alegria, do consolo e da paz" . Assim, a fé é reputada como aquilo que contém, dentro de si, uma certa quantidade de segurança, desde o começo; o crente espera, ama, serve e regozija-se porque crê que Deus teve misericórdia dele.

Mas essa ainda não é a segurança "firme e bem fundamentada" que os Puritanos pensavam ser a única segurança digna do nome. Um novo convertido, em casos excepcionais, pode desfrutar de um forte e contínuo senso de segurança; usualmente, porém, tal segurança não é conferida enquanto a fé ainda não for testada e amadurecida, enquanto não for aperfeiçoada e fortalecida, mediante o conflito com as dúvidas e com as flutuações dos sentimentos. Os Puritanos suspeitavam um pouco, quando excessos de alegria acompanhavam a primeira profissão de fé; eles nunca esqueciam que, em uma parábola de Jesus, os ouvintes de solo pedregoso é que recebiam a Palavra com súbita alegria. Convertidos autênticos, sãos e completos, afirmavam eles, geralmente não começam desse modo.


Uma "plena segurança" é uma bênção rara, mesmo entre os crentes adultos na fé; é um grande e precioso privilégio, que não é dado indiscriminadamente. "O senso de segurança é uma misericórdia boa demais para os corações da maioria dos homens... Deus só a confere para seus melhores e mais queridos amigos". "A segurança é a beleza e o ápice da glória cristã nesta vida. Usualmente faz-se acompanhar pela mais forte alegria, pelos consolos mais doces, pela mais intensa paz. É uma coroa... que poucos usam..." "A segurança é carne para os adultos na fé; poucos bebês, se é que há algum, são capazes de recebê-la e digeri-la".

A segurança não é normalmente desfrutada exceto por aqueles que primeiro labutaram e procuraram por ela, tendo servido fiel e pacientemente a Deus, ainda que passando algum tempo sem ela.

A segurança vem como uma recompensa à fé... A fé deve lutar primeiro, realizando uma conquista, e então a segurança é a coroa, o triunfo da fé... e o que prova a fé mais do que as tentações, os temores, as dúvidas e os raciocínios contra a condição da própria pessoa? Essa triunfante segurança, Romanos 8.37,38... vem após um teste, pois ninguém é coroado enquanto não tiver se esforçado.

Segurança desse tipo não é essencial à fé; antes, conforme disse Brooks, deriva-se da fé experiente, e não somente da existência da fé. De fato, trata-se de um aspecto da fé que aparece somente quando a fé já atingiu elevado grau de desenvolvimento, muito além de seu mínimo exercício salvífico. Goodwin falava sobre a segurança como "um ramo e apêndice da fé, uma adição ou complemento da fé" e também como "a fé elevada acima de seu nível normal". E disse: "As Escrituras referem-se à segurança como algo distinto da fé (embora fundida a esta, pois ambas formam uma só coisa)". Esse era o conceito geral da segurança de salvação, por parte dos Puritanos.

É evidente que, para os Puritanos, a "segurança de salvação" era algo muito diverso daquela "segurança" geralmente dada aos convertidos, durante o diálogo de cinco minutos, no gabinete pastoral ("Você crê que João 1.12 diz a verdade e que você recebeu a Cristo? Então você é um filho de Deus"). Os Puritanos jamais teriam chamado de segurança a uma afirmação desse tipo. Profissões de fé, diziam eles, precisam ser submetidas a teste antes de serem acreditadas, até mesmo por aqueles que as fazem. Pois, de qualquer forma, para o Puritano, a segurança era mais do que uma simples inferência humana; antes, era a convicção, outorgada por Deus, de que um crente está firmado na graça, uma convicção selada pelo Espírito em sua mente e coração, tal como a verdade dos fatos do evangelho foi selada sobre a sua mente quando nasceu a fé, trazendo consigo a mesma certeza imediata. Explicou Brooks: "A segurança é o ato que reflete de uma alma agraciada, por meio do

qual ela se vê claramente em uma condição graciosa, abençoada e feliz; é um sentimento sensível e um discernimento experimental de que a pessoa está no estado de graça". As palavras-chaves, neste caso, são sensível e experimental. A segurança é o fruto consciente de uma iluminação sobrenatural, não podendo existir enquanto Deus não achar por bem proporcioná-la. A posição de um recém-convertido é, realmente, esta: à medida em que ele crê e obedece, irá experimentando novas medidas de paz e alegria, pois a verdadeira confiança produz verdadeiro consolo ("ninguém pode contemplar a Cristo sem sair dali mais animado"; "há uma voz do Espírito de Deus que sussurra paz para o seu povo, quando eles crêem"). O crente pode pensar e esperar, com razão, que ele é filho de Deus. Mas não pode dizer, no mesmo sentido absoluto da primeira epístola de João, que ele reconhece a sua filiação enquanto o Espírito não implanta essa certeza no fundo de seu coração. De qualquer modo, enquanto o Espírito assim não o fizer, no sentido dado pelos Puritanos, faltará esse senso de segurança; e, no dizer dos Puritanos, assim parece acontecer com a maioria dos crentes.

Quando raia essa segurança sobrenatural, ela transforma toda a vida cristã de uma pessoa. "Trata-se de uma nova conversão", disse Goodwin. "Isso faz um homem diferir de si mesmo quanto àquele que ele era antes, quase da mesma maneira como a conversão fê-lo diferir de quando ele ainda não era convertido. Há uma nova edição de todas as graças". Isso soa estranho, mas Goodwin queria dizer o que disse e passou a elaborar a idéia. Ele nos diz que o senso de segurança aumenta a fé (a fé "recebe um outro nível"); e esse revigoramento da fé resulta em uma nova liberação de poder, em cada ponto da vida cristã de uma pessoa.

Primeiro, a segurança aprofunda a comunhão do crente com o Deus triúno, quando ele medita sobre o "plano" do amor remidor.

Na segurança... a comunhão e o diálogo de um crente é... algumas vezes com o Pai, outras com o Filho, e outras com o Espírito Santo; algumas vezes o seu coração é impelido a considerar o amor do Pai em escolher, então o amor do Filho em redimir, e, por fim, o amor do Espírito Santo, que perscruta as coisas profundas de Deus, revela-as a nós, e mostra grande cuidado por nós...

Mas isso não é tudo. O aparecimento do senso de segurança reaviva o entendimento espiritual; por meio do senso de segurança "é fortalecido o olho da alma, para que veja mais profundamente as verdades; todas as verdades passam a ser mais claramente conhecidas". Isso faz um homem tornar-se ousado e poderoso em oração. Fá-lo tornar-se mais santo, embora já o fosse antes; "toda legítima segurança de salvação... santifica o homem"; "coisa alguma faz o coração do crente amar, estudar, praticar e crescer tanto na santidade quanto esse glorioso testemunho do Espírito.

Autor: J. I. Packer
Fonte: [ Josemar Bessa ]
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