De religioso e louco, todo mundo tem um pouco

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Por: Eudes Alencar

O artigo no jornal falava sobre os dramas de religiosos muçulmanos, imigrantes nos EUA que, para sobreviver, tinham que vender produtos haram (proibidos pela religião, tais como bebida alcoólica, carne de porco). O drama de consciência de alguns, a indiferença de outros e no meio de tudo o depoimento de um imã que era uma pérola do lavar as mãos: "Neste país, todo o mundo tem de fazer alguma coisa. Eu faço meu discurso diante das pessoas, depende da opção delas" E arremata: "Alá dará as punições no dia do julgamento; eu não tenho autoridade para isso."

Um jovem muçulmano confessou, queria vender apenas produtos halal, aqueles permitidos pela religião. Mas excluiria o público não religioso, reduziria sua freguesia, assim se conformava rezando, cheio de culpa pelas coisas ruins que dizia fazer, para que Alá o perdoasse. Isso é a tradução do ser religioso, no sentido mórbido da palavra.

O ser humano tem uma atração atávica pela tutela, ainda que, contraditoriamente, se rebele contra o mando, caso este lhe chegue à colher na boca, o teto frouxo, os molambos com que se veste. A maioria clama pelas cebolas e melões quando tem que, na hora fatal, assumir seu próprio destino. Nestas horas, as escravidões, da alma e do corpo, parecem pequenas, apenas um diminuto efeito colateral do luxo que é ter quem se preocupe, quem assuma as responsabilidades e no final, nos diga o que é halal e o que é haram.

Lidamos muito mal com a liberdade. Primeiro porque ela nos retira caminhos andados, circuitos fechados, marcos quase eternos com os quais nos acostumamos e os defendemos com ardor apaixonado: sempre foi feito assim, consolamo-nos. E isto é tudo que basta para não ter que enfrentar o peso de que, no final de tudo, cada um dará conta de si mesmo.

Que seja, a religião é boa. Preserva a saúde. Livra dos vícios. Conserva a família, ainda que a troco da dor dos que são subjugados nas ordens hierárquicas que cria. Ajuda a administrar o dinheiro – menos quando ele se torna “sacrifício” para agradar um demiurgo dono de banca. Um seu Nonô da vida, um Ebenezer Scrooge nunca antes visitado pelos espíritos.

Toda religião tem vocação para o legalismo, efeito de nossa permanente necessidade de ter tudo muito bem explicadinho e de não conseguir viver muito tempo no “vale da sombra da morte” sozinhos. Assim, para facilitar as inúmeras situações de encarar aquilo que não há explicação ou qualquer sentido, inventamos regras, leis, ritos que nos ajudam a substituir Deus que, por algum motivo insondável, calou-se, ignorou solenemente nossa petição por escape.

A questão é, novamente, a dificuldade de pensar só, se assumir. Concluir nossos próprios sentidos sem recorrer a Deus em sua explicação. Às vezes, simplesmente, Ele não está lá. Que dizer, está, mas alheia-se de propósito. Perdoem a licença poética em dizer que ele não está quando, afirmamos cheios de certeza, repetindo sua Palavra: Ele enche os céus e a terra, está em toda parte como descobre assombrado o salmista (Sl 139).

A religião se aproveita de nossa preguiça de pensar ou de conferir o falado com o escrito. Haverá sempre uma interpretação disponível, desde que um se alije de lutar com o texto que, na maioria das vezes, pede apenas interpretação textual simples, mesmo que não se saiba nada da língua nativa em que foi escrito. Quer dizer, basta saber ler e ter um pouco de bom senso.

A religião tem dificuldade em promover a paz. Padece de um mal recorrente, está sempre comparando seu séquito de dogmas com os outros e dizendo: estão errados. Antes da guerra com o outro, ela nos faz capitular ou permanecer em guerra contra nós mesmos. Ela fará tudo para sobreviver, ainda que a troco de sua morte mental ou física.

A única coisa sagrada para ela é ela mesma. Deus não é sagrado para a religião, ele é meio.

A religião explica Deus especialmente quando Ele, aparentemente, não valida aquilo que é o entendimento comum de sua Palavra. Ele parece não gostar do senso comum, pois, suspeito, Ele é Deus novo em cada relação que estabelece. Ela media Deus/Jesus e deixa o fiel com a versão que cria.

A religião fabrica gente com medo, suscetível, como os jovens muçulmanos que sofrem porque vendem produtos haram. As regras e a ameaça de inferno, caso quebradas, tornam as pessoas maleáveis para toda sorte de manipulação vil. Transformá-los em homens-bomba desesperados por virgens e rios de leite e mel, por exemplo.

No caso cristão, a religião os torna apáticos, alienados, primitivos dualistas que odeiam o corpo ou simplesmente em tolos cujo Deus parece-se mais com um gênio da lâmpada. Vestem roupas de marca, anseiam pelas riquezas e glória efêmeras e não sabem a menor diferença entre o halal e o haram. Para tudo isso, não se enganem, tem sempre um imã/pastor de plantão, mas lavará as mãos na primeira oportunidade porque, afinal, você é quem não tem fé suficiente.

A liberdade (Exousia), que pressupõe um poder de escolha, fazer o que é agradável, poder físico ou mental, capacidade ou força com que um é dotado, esta pede um radical abandono, um desprendimento do eu possessivo, uma submissão à lei do amor que temos em Cristo a fonte e a inspiração da vida.

Autor: Eudes Alencar
São Luis-MA
Fonte: [ Ultimato ]
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