O Gnosticismo Antigo
“Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?” (João, o apóstolo – 1Jo 2.22).
“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De fato, as próprias heresias são equipadas pela filosofia”[1]. Foi dessa forma que Tertuliano (160-240 d.C.) ligou a filosofia de seu tempo ao seu “filhote religioso” mais ilustre, o Gnosticismo, um amalgamado de filosofia pagã, esoterismo mitológico e elementos da doutrina apostólica que veio para tentar apagar o evangelho legado por Cristo e seus apóstolos da memória da Igreja. Dado o extremo grau de periculosidade que esse movimento representou para a manutenção da ortodoxia nas fileiras do cristianismo, não seria nenhum exagero afirmar que, de todas as heresias (“mentiras teológicas”) que a igreja primitiva teve que enfrentar, o Gnosticismo foi, sem sombra de dúvidas, a pior.
Definir o que foi o Gnosticismo não é uma tarefa fácil, mas vamos tentar, em princípio, nos deter a algumas de suas designações mais genéricas. Gnosticismo é um termo que deriva da palavra grega gnosis, que significa, literalmente, “conhecimento”. Para os gnósticos, a verdade é secreta, e somente é revelada a algumas pessoas detentoras de um “conhecimento” especial (daí o porquê do termo). A salvação da alma consiste exatamente em descobrir qual é essa “verdade”, voltando-se o indivíduo para dentro de si mesmo em busca de suas origens. Essa característica aproxima o gnosticismo do neoplatonismo, na sua busca de tentar restabelecer a união com a divindade a partir de uma interiorização contemplativa. Os gnósticos elaboraram uma teogonia[2] extremamente complexa a fim de explicar a origem do universo, incorrendo numa cosmovisão puramente dualista (Bem x Mal). Segundo eles, o Supremo e Verdadeiro Deus transcendente e último (não cognoscível), que habita acima dos universos criados, fez emanar de si mesmo todas as substâncias visíveis e invisíveis existentes no mundo. Dessas emanações vieram os éons, que eram seres divinos intermediários entre o Supremo Deus e nós. Um desses seres eônicos, chamado Sofia, teria feito emanar de si mesmo o deus (também chamado de “Demiurgo”) que criou o mundo material e psíquico, à imagem da sua própria imperfeição. Este deus (que é identificado com o Deus do Antigo Testamento), então, passou a pensar que era o próprio Deus Supremo, incorrendo em orgulho. É dessa forma que o gnosticismo explica as mazelas do mundo, bem como toda a corrupção deste, concluindo, com isso, que toda matéria é inerentemente má. É no meio de toda essa confusão que os gnósticos unem elementos da filosofia pagã e do misticismo esotérico das religiões de mistério para fazerem uma verdadeira “salada” mística e religiosa.
Ao contrário do que muita gente pensa, essa filosofia não nasceu dentro do cristianismo. Suas origens remontam às antigas tradições persas e babilônicas antes mesmo de Cristo ter nascido. Mas o grande problema para nós foi quando, tendo surgido o cristianismo, alguns cristãos presumiram que poderiam aliar as crenças gnósticas às doutrinas apostólicas, numa “tentativa de explicar Cristo em termos da filosofia pagã ou da ‘teosofia’”[3]. Isso resultou num verdadeiro desastre para a Igreja, uma mancha terrível na história do povo de Deus[4]. As ideias gnósticas passaram a fazer parte da dieta doutrinária de muitos grupos ditos cristãos, que já não sabiam mais delinear marcos entre a ortodoxia e a heresia. A habilidade dos mestres gnósticos em sintetizar noções gnósticas com conceitos cristãos, pegando emprestado destes algumas de suas terminologias, fez com que o próprio evangelho fosse redefinido, ainda que este se mostrasse totalmente pagão em eu âmago. Muitos passaram a ensinar que Jesus era um “éon” que se desviou astuciosamente do mundo das trevas para trazer esse “conhecimento” secreto (a gnosis), proporcionando aos espíritos da luz, que habitam nos seres humanos, a plena liberdade do cativeiro do mundo terreno e material. A doutrina apostólica, então, passou a ser mais um elemento a compor a “salada” gnóstica, que agora passou a autodenominar-se de “cristã”, o que fez com que o nome do Gnosticismo se associasse ao do Cristianismo até aos dias atuais (contudo, é bom que fique bastante claro que não havia um “cristianismo gnóstico”, como muitos estudiosos de história antiga o querem, e sim, um “gnosticismo cristão”).
Entretanto, essas simples definições e conceitos não são capazes de abranger todas as vertentes, modalidades e nuances próprias do gnosticismo que se instalou no seio da Igreja. O Gnosticismo, como um sistema de crenças, não era homogêneo. Havia uma ampla diversidade dentro do próprio movimento, já que “o pensamento gnóstico oferecia possibilidades para os ‘inventores’ de religiões, nas quais cada falso mestre podia inventar sua própria seita”[5]. Irineu (c. 180), bispo de Lyon, na Gália Romana, fala em pelo menos quatro tipos de gnosticismo existentes em seus dias: 1) Gnosticismo de tipo sírio (Saturnino); 2) Gnosticismo de tipo egípcio (Basílides, Valentino); Gnosticismo de tipo judaizante (Cerinto e os ebionitas); e 4) Gnosticismo de tipo pôntico (Márcion)[6]. Cada uma dessas variantes tinha suas próprias particularidades (sobre as quais não pretendemos entrar em detalhes agora). Uma coisa interessante é que, quando as premissas gnósticas conflitavam grosseiramente com as doutrinas apostólicas, os gnósticos “inventavam” suas próprias versões do evangelho. E o pior de tudo é que eles “assinavam” o documento como se o mesmo fosse de autoria dos apóstolos. Até a metade do século vinte, esses “evangelhos” somente eram conhecidos por nós através das obras polêmicas de seus críticos mais vorazes, como Irineu (130-200) em Contra as Heresias e Tertuliano (160-225) em Contra Márcion. Foi quando, em 1945, uma “biblioteca gnóstica” foi encontrada em Nag Hammadi, no Egito, contendo alguns manuscritos dos evangelhos gnósticos, como por exemplo, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe, o Evangelho dos Egípcios e o Evangelho da Verdade. Esses “evangelhos” não visavam apenas a “‘preencher’ supostas lacunas nas informações dos canônicos (como, por exemplo, sobre a infância de Jesus), mas [...] apresentar versões diferentes dos fatos e pessoas retratados nesses evangelhos”[7]. Um bom exemplo desses “evangelhos” que procuravam redefinir o papel de alguns dos personagens tidos como os “vilões” da história é o famoso Evangelho de Judas (descoberto na caverna de El Mynia, no deserto do Egito, em 1978), no qual Judas, apresentado nos Evangelhos canônicos como um traidor, é redefinido como o único que realmente compreendeu a mensagem “secreta” que o Mestre veio trazer. Desse modo, Judas é transformado no “herói” da história, demolindo toda a sua tradicional fama de vilão. Embora sua descoberta tenha se dado tão recentemente, Irineu já fazia referências a ele na sua obra Contra as Heresias (Livro I, 31.1 – lá aparecem também uns tais de “cainitas”, uma seita que inocentava a Caim). E não apenas Irineu, mas todos os tratados polemistas asseveram que o gnosticismo foi um movimento marginal ao cristianismo, e não integrante deste; um intruso, e não um convidado; um “corpo estranho”, e não um órgão; uma gangrena que precisava ser removida às pressas, numa intervenção cirúrgica habilidosa.
Mas não devemos pensar que foi apenas no período pós-apostólico que essa heresia surgiu, não. Há claros indícios, a partir do próprio Novo Testamento, que a igreja neotestamentária enfrentou em suas fileiras uma forma incipiente de gnosticismo. Tertuliano afirma que Paulo tinha em mente a filosofia gnóstica quando advertiu aos cristãos colossenses para que estes tomassem cuidado com certas “filosofias e vãs sutilezas, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo” (Cl 2.8)[8]. Sugere-se que os hereges de Colossos estavam unindo elementos judaicos, crenças populares da Frigia e “germens” de gnosticismo ao evangelho, promovendo um verdadeiro sincretismo religioso, o que lhes rendeu a pecha de “heresia colossense” – um sistema de crenças absolutamente estranho. É possível também que sejam essas as “fábulas” e “genealogias sem fim” que Paulo fala aos jovens pastores Timóteo (1Tm 1.4) e Tito (Tt 1.14), sobre as quais eles deveriam tomar o máximo de cuidado. Ainda que não nos seja possível fazer uma absoluta associação desses erros com o gnosticismo, devemos pelo menos reconhecer certos pontos de semelhança entre eles.
Contudo, as principais evidências da infiltração gnóstica na igreja neotestamentária encontram-se nos escritos do apóstolo João, especialmente nas suas cartas. Nelas, o apóstolo nos dá algumas informações do tipo de gnosticismo que a igreja de então estava enfrentando. A principal acusação de João contra os ensinos heréticos era que “muitos enganadores tem saído ao mundo, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo” (2Jo 7 – ênfase minha). Na realidade, essa negação da encarnação de Jesus é uma doutrina gnóstica que ficou conhecida depois como Docetismo (do grego dokeo – lit. “parecer”, “aparência”). Essa variante gnóstica ensinava que todas as manifestações da natureza humana de Jesus eram apenas uma aparência, uma ilusão de ótica (uma espécie de holograma). Sendo assim, seguindo a premissa gnóstica básica de que a matéria é essencialmente má, os falsos mestres, além de negarem a humanidade de Jesus (encarnação), negavam também a própria crucificação e ressurreição deste, atribuindo tudo a uma mera ilusão, já que Deus não poderia ter assumido a forma humana, em Jesus. João também nos informa que os hereges, de igual modo, negavam a divindade de Jesus. Essa outra variante gnóstica pode ser atribuída a um homem chamado Cerinto, que residia em Éfeso e foi, inclusive, contemporâneo (e possível adversário) do próprio João. De acordo com Irineu, um polemista do segundo século, Cerinto “representava Jesus como não tendo nascido de uma virgem, mas como sendo filho de José e Maria segundo o curso comum da geração humana, enquanto que era, não obstante, mais justo prudente e sábio do que os outros homens. Além disso, depois do seu batismo, Cristo desceu sobre ele, em forma de pomba, vindo do Supremo Regente, e que depois proclamou o desconhecido Pai, e realizou milagres. Mas por fim Cristo separou-se de Jesus, e então Jesus sofreu e ressuscitou, enquanto Cristo permaneceu impassível [isto é, “não sujeito a dor ou ferimento”], visto que era um ser espiritual”[9]. A ideia de Cerinto sugere que Jesus não era verdadeiramente Deus, mas que foi habitado pelo Cristo, uma emanação do éon divino que desceu sobre o homem Jesus. Esse Cristo veio sobre Jesus por ocasião do seu batismo, mas o deixou por ocasião da sua crucificação. Isso faz com que a divindade de Jesus seja algo imposto, vindo de fora, e não inerente a ele. Esse pensamento de Cerinto foi aderido pelos Ebionitas[10], uma seita gnóstica de tipo judaizante do fim do primeiro século. Para João, contudo, tanto a negação da encarnação quanto da divindade de Jesus constitui-se em verdadeira mentira teológica. Uma das definições que o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa dá para mentira é “aquilo [...] que se aproxima da verdade ou é real apenas na aparência” (ênfase minha). João concordaria plenamente com essa definição. Se Cristo era apenas uma “aparência”, como queriam os docetistas, então o próprio Deus era um mentiroso, e Jesus, uma mentira; se Jesus não tinha um corpo físico, então ele não foi para a cruz para morrer pelos nossos pecados, muito menos ressuscitou para a nossa justificação (cf. Rm 4.25). Por este motivo, para o apóstolo João qualquer coisa que se aproxime da verdade, mas que não seja exatamente a Verdade, não passa de pura mentira; qualquer um que negue que Jesus é o Cristo (plenamente humano e plenamente divino) é um mentiroso (1Jo 2.22).
As fortes ênfases joaninas à retidão do viver cristão em oposição às dissoluções carnais sugerem que esses falsos mestres também ensinavam que o cristão poderia pecar à vontade, pois não fazia diferença alguma, visto que a carne má. O apóstolo combate essa ideia com veemência, dizendo que “todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus” (1Jo 3.9 – ênfase minha). Outra característica desses falsos mestres era a sua flagrante falta de amor para com os outros irmãos, uma vez que o acesso às verdades espirituais (a “gnose”) pertencia somente aos “iluminados”. Isto posto, duas categorias de crentes foram criadas: a dos “iluminados” e a dos “não-iluminados”. João combate essa falácia ao dizer que “se [...] andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7 – ênfase minha). O apóstolo é mais enfático ainda quando diz que “se alguém disser: Amo a Deus, e odiar seu irmão, é mentiroso, pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4.20 – ênfase minha). João é tão vigoroso em seu combate ao erro que ele adverte a um grupo de cristãos a não receber em suas casas qualquer um que não traz a sã doutrina, muito menos dar-lhes as boas-vindas, “porquanto aquele que lhe dá boas-vindas faz-se cúmplice das duas obras más” (2Jo 10,11). Quanto a isso, Irineu, em sua conhecida obra Contras as Heresias, no livro III, nos traz um episódio interessante envolvendo João e Cerinto, contado por Policarpo, bispo de Esmirna e discípulo de João: “E há quem o tenham ouvido dizer que João, o discípulo do Senhor, indo banhar-se em Éfeso e tendo visto Cerinto nos banhos, saltou para fora das termas sem ter-se banhado e disse: ‘Fujamos, não ocorra que também as termas venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da verdade’”[11]. O zelo que João nutria pela verdade legou para os cristãos subseqüentes a munição necessária para que o erro religioso fosse combatido.
De fato, a heresia gnóstica teve que mover um verdadeiro arsenal de defensores da ortodoxia: os polemistas[12]. Inácio de Antioquia, Irineu, Justino, o mártir, Tertuliano e Hipólito foram alguns deles. Não era fácil combater os mestres gnósticos, pois, além de eles serem ótimos debatedores, o próprio gnosticismo, como já vimos, era bastante diversificado. Alguém comparou o gnosticismo à Hidra, um monstro (serpente) mitológico que tinha várias cabeças. Quando se cortava uma, nascia outra em seu lugar. Assim era o gnosticismo dos primeiros séculos. Por essa razão, essa heresia, enquanto sistema, não era fácil de ser refutada, uma vez que suas premissas possibilitavam aos inventores de religião criar o seu próprio “gnosticismo” com os elementos que preferissem. Dentre os principais mestres gnósticos estavam Saturnino (c.120); Basílides (c. 130); Valentino (c. 140), seu sucessor; Carpócrates; Cerinto; e Cerdon, dentre outros[13]. Mas nenhum deles, talvez, tenha chegado aos pés de um homem natural do Ponto, chamado Márcion (c. 160), sucessor de Cerdon. Dentre os mestres gnósticos ele foi, sem sombra de dúvidas, um dos maiores inimigos do cristianismo. Alguns chegam até a afirmar que, se havia alguém capaz de aniquilar o cristianismo nos primeiros séculos, esse alguém era Márcion. Irineu dedica boa parte da sua obra Contra as Heresias no combate a esse falso mestre, acusando-o de, por exemplo, mutilar o Evangelho de Lucas, “rejeitando narrativas referentes ao nascimento do Senhor”, uma vez que era docetista. Márcion também, segundo Irineu, mutilou as cartas de Paulo, “eliminando delas tudo que declara ser o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo o Deus que fez o mundo, bem como o ensino dos profetas anunciando o advento de nosso Senhor”. Ele estava criando o seu próprio cânon, o que forçou a Igreja a delimitar e reconhecer quais eram os livros verdadeiramente inspirados. Além disso, ele “persuadiu seus discípulos de que merecia mais crédito do que os apóstolos que legaram o Evangelho”[14]. Inácio de Antioquia também parece combater os ensinos de Márcion quando adverte os cristãos de sua época: “Torna-te surdo, quando te falam de um Jesus Cristo fora daquele que foi da família de Davi, filho de Maria, nasceu autenticamente, comeu e bebeu, padeceu verdadeiramente sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado e morreu verdadeiramente... De que me valeria estar em cadeias, se Cristo sofreu somente na aparência, como certos pretendem? Esses, sim, não passam de meras aparências”[15]. A pergunta feita por Inácio ecoa o mesmo argumento que Paulo havia exposto aos coríntios: “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a nossa fé” (1Co 15.14). Outro polemista importante, Tertuliano, afirma que Márcion herdou o “bom deus” sossegado dos estóicos, uma vez que Márcion cria que o deus do Antigo Testamento é mau, cruel e imperfeito. Por este motivo ele se negava a identificar o deus veterotestamentário com o Deus do Novo Testamento que, segundo ele, era o verdadeiro Pai de Jesus. Tertuliano ainda afirma que “quando Márcion afirma que a alma perece, obedece a Epicuro; quando nega a ressurreição da carne, segue o parecer de uma dentre todas as filosofias; quando confunde matéria e Deus, repete a lição de Zenon; quando alude a um deus de fogo, torna-se aluno de Heráclito”[16]. Toda essa série de coisas fez com que Márcion se tornasse a persona non grata mais eminente dentre os hereges de sua época. Isso é atestado por uma ocasião em que ele, ao topar com Policarpo, perguntou-lhe: “Reconheces quem eu sou?”, ao que Policarpo respondeu: “Reconheço. És o primogênito de Satanás”[17]. Decerto, havia muitos outros hereges gnósticos altamente perigosos, mas entrar em detalhes sobre a vida de cada um nos exigiria uma investigação mais intensa (e extensa).
A influência gnóstica foi realmente uma praga dentro da Igreja, pois sua filosofia serviu de base para todas as outras heresias que surgiriam logo em seguida, principalmente àquelas que envolviam a Pessoa de Cristo e a Trindade[18]. Mas isso foi, de certa forma, bom, porque foi ali que a Igreja começou a cerrar fileiras e a fazer algumas definições teológicas importantes, como aconteceu nos concílios de Nicéia (325), Éfeso (431) e Calcedônia (451), por exemplo. As heresias, num certo sentido, “ajudaram” a Igreja na formulação dos credos mais importantes do cristianismo, como o famoso Credo Apostólico. Como bom calvinista, penso que tudo foi providencial. É claro que não podemos cair no erro de “louvar” os hereges por isso, mas também devemos reconhecer o que de positivo tudo isso trouxe à fé cristã de um modo geral.
Como deve ter ficado mais do que evidente em nossa breve pesquisa, o gnosticismo é totalmente incompatível com a doutrina dos apóstolos e, por extensão, com todo o restante das Escrituras. As tentativas de se conciliar as duas partes não passam de teimosia incrédula. Os mestres gnósticos não estavam atacando apenas pontos “periféricos” do evangelho, e sim, o próprio cerne dele: a Cruz de Cristo. Sem a cruz não há Cristo; sem a cruz não há ressurreição; sem a cruz não há justificação; sem a cruz não há redenção; em suma, sem a cruz não há evangelho. Mas o esforço dos hereges não foi suficiente para aniquilar a cruz, pois o próprio Cristo havia prometido que “as portas do inferno” não prevaleceriam contra a sua Igreja (Mt 16.18). A ortodoxia, a despeito dos fortes ataques que sofreu, se manteve de pé. Entretanto, os rastros do antigo gnosticismo perduraram, chegando até aos dias de hoje por diversos meios e de diversas formas e nomes, continuando a incomodar a Igreja militante de Cristo aqui na terra. A mentira ainda ronda por aí. Mas esse é um assunto para uma próxima conversa.
Continua na próxima postagem da série “A verdade sobre a mentira”, se Deus permitir...
Soli Deo Gloria!
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[1] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 32).
[2] “Doutrina concernente à origem dos deuses, quase sempre relacionada com a formação do mundo” (verbete Teogonia, do Dicionário Enciclopédico Ilustrado Larousse – versão eletrônica).
[3] H. Bettenson. Documentos da Igreja Cristã. Aste, SP, 1998. Págs. 77.
[4] Uma tradição antiga atribui a Simão, o mago samaritano sobre o qual Lucas relata em Atos 8.9-25, a responsabilidade pela introdução do gnosticismo no cristianismo (cf. Eusébio de Cesaréia. História Eclesiástica. Livro IV, cap. 22.5).
[5] MacArthur, John. Guerra pela verdade. Editora Fiel, 2008. Pág. 121.
[6] Irineu. Adversus Haeresis. Na realidade, Irineu não fala explicitamente em quatro tipos de gnosticismo. Isso foi deduzido por Henry Bettenson, a partir da obra de Irineu Contra as Heresias (H. Bettenson. Documentos da Igreja Cristã. Aste, SP, 1998. Pág. 77-80).
[7] Ver Santos, João Alves dos. Cristianismo e Gnosticismo: uma avaliação de sua incompatibilidade ao ensejo da publicação do “Evangelho de Judas”. Revista Fides Reformata XI, nº 1 (2006). Págs. 53, 54.
[8] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 33).
[9] Adversus Haeresis. XXVIII. 1. Citado por John Stott em I, II e III João – introdução e comentário. Edições Vida Nova, 1982. Pág. 41.
[10] Para mais detalhes, ver Eusébio de Cesaréia em História Eclesiástica. Livro II, cap. XXVII.1-6.
[11] História Eclesiástica. Livro IV, cap. 14.6.
[12] “Polemista” difere de “Apologista” pelo fato de que os polemistas defendiam a fé dos ataques internos (dos hereges), ao passo que os apologistas, dos ataques externos (dos pagãos, agnósticos etc.).
[13] Para uma lista mais completa, ver História Eclesiástica. Livro IV.
[14] Irineu. Contra as Heresias. I.XXVII.2-3. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Págs. 80-81).
[15] Inácio. Ad Trall. IX-X. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 77).
[16] Tertuliano. De praescr. Haeret. (c.200) VII. Citado por H. Bettenson em Documentos da Igreja Cristã (Aste, SP, 1998. Pág. 33).
[17] Idem. Livro IV, cap. 14.7.
[18] Como o Arianismo, o Monarquianismo (Patripassionista e Sabeliano), o Apolinarismo, o Nestorianismo e o Eutiquianismo, por exemplo, além do Montanismo, que Tertuliano veio abraçar depois.
Autor: Leonardo Galdino
Fonte: [ Optica Reformata ]
1 comentários:
Caro Ruy,
ResponderObrigado por postar mais um texto meu. Ore para que eu consiga escrever o próximo dessa série.
Um forte abraço!
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