A inusitada visita de dois pregadores a sua velha mestra

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Eles tinham sido amigos de infância e de igreja, além de companheiros nos primeiros anos de estudo. Encontraram-se recentemente, por acaso, na feira de rua da pequena cidade de Brejo da Várzea no sertão Paraibano, onde nasceram e foram criados. Após terem terminado o curso ginasial, cada um tomou seu rumo, e só agora, por obra do acaso, é que estavam se vendo frente a frente

Após as saudações de praxe, os dois se alegraram muito, riram e se abraçaram pela grata coincidência: ambos eram agora pastores de duas igrejas evangélicas. Armando Pedreira estava com sessenta anos de idade, e Amadeus dos Santos já passava dos sessenta e dois.

Armando Pedreira tinha vindo à sua cidadezinha natal para um encontro especial com a velha Deolinda, professora dos dois pastores nos tempos do curso ginasial. Amadeus viera visitar sua única irmã, que se encontrava muito enferma, e resolveu atender o convite do seu companheiro de profissão para irem juntos à casa da antiga mestra de Moral e Cívica.

Diante da varanda da casa de Deolinda, ficaram por algum tempo estáticos e desorientados como duas crianças assustadas, pois não se viam desde o término do curso ginasial. Uma torrente de pensamentos e fatos vividos atordoava as suas mentes. A professora amavelmente convidou-os a entrar, mas eles acharam por bem ficar na varanda ao sabor do vento úmido daquela tarde de outono. Um odor de eucalipto e capim santo exalava por aquele ambiente, é que D. Deolinda tinha ao redor de casa uma horta medicinal, para feitura de seus prediletos chás, que afirmava ser um santo remédio para suas cólicas e enxaquecas freqüentes. Naquele momento, bem acomodada em sua cadeira de balanço, Deolinda imaginou por alguns segundos: “Será que seus ex-alunos continuavam como antes, após todos esses anos decorridos?” Já tinha ouvido por terceiros que eles eram dois ministros protestantes. Continuava a pensar: “Armando Pedreira pregaria um Deus conservador, tradicional?. Amadeus pregaria um Deus mais tolerante, como era a sua maneira de ser, quando estudante?”.

A velhinha estava ansiosa por aquela oportunidade, em que poderia conferir se as suas tão saudosas e barulhentas aulas tinham deixado algo no espírito daqueles dois homens já bem maduros. “O que teria ficado de indelével em suas personalidades, em razão dos velhos ensinamentos e diálogos do tempo de ginásio?” ─ perguntava para si mesmo.

Passado o nervosismo dos primeiros instantes, os dois pregadores conversaram bastante sobre fatos engraçados da época de estudante. Recordaram alguns embates no grêmio literário da escola. Entretanto, na cabeça de Armando Pedreira reverberava algo que o deixava impaciente. Ele pensava: “nesta disputa eu não poderei perder de jeito nenhum”. “Mostrarei a força da minha instituição”. Algo falava em seu ser: “Tente rápido ganhar essa alma para o seu rebanho! Caso contrário a perderá para a igreja de Amadeus”.

Pedreira atribuía essa voz que saia de dentro dele, a alguma coisa vindo da parte de Deus, sem, no entanto, refletir que tudo aquilo que sentia era fruto de um forte e insano desejo de ganhar uma disputa contra seu arqui-rival de estudos escolares, Amadeus. Achara então, que tinha chegado à oportunidade de encerrar aquele entrevero um tanto fútil, e, percebendo o adiantado da hora, dirigiu-se a velha professora, já aparentando impaciência:

─ A senhora permite, neste momento, entregar-lhe algo que Deus está ordenando que eu fale?

─ A palavra é toda sua, caro Pedreira. Sou toda ouvidos ─ responde Deolinda.

Pedreira faz então uma rápida oração. Em seguida abre gulosamente a sua Bíblia e lê o que está escrito em Salmos (9.17): “...Os ímpios serão lançados no inferno, e todas as nações que se esquecem de Deus”.

Amadeus reflete: “Meu Deus, o Pedreira continua duro como nos tempos de estudante?. Mal começou a conversa e já entra falando de uma maneira constrangedora!”.

Cabisbaixo, Amadeus ouve todo aquele discurso de “ganhadores de almas”, que culmina com o pedido para a professora aceitar Jesus como seu Salvador. O próprio Amadeus foi constrangido por Pedreira, a cantar bem baixinho o hino quinze da Harpa Cristã, enquanto ele reforçava o apelo, tudo feito de uma maneira pré-estabelecida, um verdadeiro “clichê”.

A professora, bem educadamente, olhando nos olhos de Armando Pedreira, fala:

─ Bem senhor Pedreira, eu não ia incluir em nossa conversa o lado religioso, mas vamos debater como fazíamos na sala de aula. Vamos argumentar:

─ Por que o senhor me considera uma ímpia e me convida de modo tão extremado para aceitar Jesus a fim de poder escapar do fogo do inferno?

─ D. Deolinda! ─ responde Pedreira, alvoroçado: Eu lhe conheço bem desde aquele tempo. A senhora sempre teve uma queda para o ateísmo. Lembro-me bem dos seus monólogos, e das suas inserções um tanto perigosas sobre a mensagem cristã.

D. Deolinda pede licença ao Pedreirinha ─ como era chamado pelos seus colegas de classe ─ abre a sua velha bíblia encardida pelo tempo, mas cheia de grifos e lê em João (Cap 8:15): “...vós julgais segundo os padrões humanos, eu a ninguém julgo ( palavras de Jesus)”.

Senhor Pedreira! ─ fala a professora, como se estivesse na sua antiga sala de aula ─ Refresque bem a sua memória e procure lembrar-se daquela palestra que discorríamos sobre o “julgar”, quando eu afirmava que o mesmo é sempre produto de premissas falsas. Esse julgamento não corresponde à verdade, pois é resultado de uma avaliação que se faz pelo que se vê, pelo exterior! Você não está a ver o que há no meu coração. Você parece que esqueceu o que eu dizia em minhas preleções no ginásio: “tenham cuidado ao abordarem uma pessoa, e nunca pensem, de início, que ela é o pior elemento. É preciso muito ouvir, para depois falar”.

─ Mas professora, não sou eu quem diz, é a “palavra”. Não tenho culpa ─ retruca Pedreira, já com a camisa empapada de suor.

Vamos ler juntos, Marcos 7:13: “...invalidais, assim a palavra de Deus pela vossa tradição que vós mesmos transmitistes”. Essa fórmula vazia, esse clichê ou slogan que já é uma tradição no seu meio, anula o Evangelho de Cristo ─ conclui a velha professora.

A esta altura, o Sr. Amadeus dos Santos, agradecia a Deus pelo que estava presenciando. Com os dedos das mãos contraídos, dizia para si mesmo: só falarei na ocasião propícia. Ali mesmo, passavam em sua mente, como um filme, as competições do grêmio literário de quarenta e cinco anos atrás.

─ E o senhor, o que faz atualmente? ─ pergunta a professora, dirigindo-se agora para Amadeus.

─ Dou apoio espiritual a um pequeno número de pessoas em minha igreja, mostrando para elas a graça e a misericórdia infinita de Deus para com todos, sem acepção, ensinando os princípios éticos cristãos, a moderação e tolerância, em suma o amor dirigido também aos que não são do nosso grupo.

Armando Pedreira não se contendo, levanta-se furioso e fala:

─ Está vendo Dona Deolinda! ─ Começamos a pastorear nossos rebanhos na mesma época. A minha igreja conta com seiscentos membros, e a do Sr. Amadeus, segundo me contaram, tem quarenta membros. Se a igreja dele não cresce, algo vai mal. Para Deus não existe coração duro, existe pregador frouxo. Na certa ele não está usando o método correto.

Qual o método que você usa bem, para fazer adeptos? ─ pergunta a professora, voltando-se para Amadeus.

Com aquela voz miudinha e de tonalidade baixa, corpo já envergado pelo peso da idade, e sofrido pela angústia ao ver tantas injustiças e incompreensões por parte daqueles que em nome de Cristo deveriam trazer alívio para as pessoas, mas ao contrário colocavam mais fardos pesados nos ombros delas, Amadeus começa lentamente a falar:

─ Meu rebanho é pequeno, não resta dúvida, porém, acredito que o pouco com Deus é muito. Estamos sempre mostrando por onde passamos, que Deus é perdão e misericórdia; procurando levar a verdadeira paz aos que estão em desarmonia. Sabe Dona Deolinda, eu considero a pregação do evangelho como uma prestação de socorro a uma vítima de afogamento, como exemplo. Não procuro saber quem é a pessoa que está em perigo de morte, e jamais eu posso numa situação como esta, pregar o medo, pois eu irei fazê-la afogar-se mais rápido ainda.

Pedreira não se contendo, pede licença a professora e intervém intempestivamente:

─ Está vendo porque sua igreja não cresce? ─ dispara arrogantemente. ─ Este povo é de dura cerviz. Olha, se não for com a ameaça de castigo, de destruição não se converte ninguém. Fale do fogo do inferno que arde mil vezes mais do que o nosso fogo de lenha, e isto eternamente. Eu quero ver quem resiste! Deus há alguns anos, me confiou uma grande missão: pregar nas cerimônias fúnebres. Deixo de comparecer, por este motivo até as festas de casamento e de aniversário. É lá nos cemitérios, que Deus me usa poderosamente. Ali, as pobres almas estão fragilizadas, e, mesmo que elas não estejam entendendo o que estou pregando, não deixo nunca de bradar no final de minha preleção: “Quem sabe, se não pedirão a tua alma hoje? Se não aceitares Jesus, irás direto para o inferno onde há choro e ranger de dentes!. É quando muitos, com medo da condenação eterna se rendem chorando ajoelhados”.

Dona Deolinda não se agüentando mais, pede a palavra, iniciando assim os seus argumentos:

─ Como você diz que é o medo que traz as suas pobres almas ao rebanho, eu quero ler aqui em I João (4:18): “... no amor não há medo. Antes o perfeito amor lança fora o medo, porque o medo produz tormento. Aquele que teme não é aperfeiçoado no amor”.

A velha professora sabia de suas leituras de pedagogia infantil, que a criança herda da paternidade a submissão rigorosa e a arrogância. Ela entendia perfeitamente que o modo de agir dos pais, como eles se comportam, o que eles dizem, o que eles valorizam, estruturam a personalidade da criança.

Deolinda permaneceu silenciosa por alguns segundos, pensando com os seus botões, o tempo bastante para chegar à conclusão, de que a maneira de agir do seu ex-aluno e agora pregador Armando Pedreira, tinha muito a ver com a educação recebida do seu pai. Ela fez uma rápida retrospectiva dos tempos de criança daqueles seus dois ex-pupilos e, chegou à seguinte racionalização: “a rigidez doutrinária e a insistência paterna em forma de cobranças repetitivas, tinham marcado fortemente a personalidade, do agora adulto, Pedreira. Não é assim que acontece com o bebê, que em seu desenvolvimento absorve e apreende tudo que é insistentemente repetido, quer em gestos, quer em palavras”?

Deolinda pode enfim perceber que a pressão psicológica que Pedreira sofrera de seu pai, influíra decididamente no seu modo de ser e de ver as coisas. Foi nessa hora que veio à sua lembrança, as palavras de Natã a Davi: “...agora portanto a espada jamais se afastará de tua casa”. Esse versículo despertou Deolinda para compreender com mais nitidez o que possivelmente acontecera com o seu ex-aluno: A espada do pai passara para o filho. Era com ela, que ele de maneira doentia, manejava para ganhar almas. Ele estava em nome do pai, carregando um fardo pesado, e o passando a outras pessoas, inconscientemente. Não soube se desligar do pai idealizado, justamente com medo do castigo. Aprendera quando criança, a obedecer através da ameaça de castigo, que num círculo vicioso produzia cada vez mais tensão e medo. Mas a professora entendia que Pedreira jamais poderia incriminar os pais por ele ter herdado àquela maneira de ser, pois com o advento de Cristo, cada um torna-se responsável por si mesmo. Deolinda compreendia que foi para aliviar esse jugo, que Cristo viera ao mundo fazer-se maldição por nós, e, achava que toda aquela resistência e arrogância do Pedrerinha ─ agora pregador do evangelho ─, era fruto da sua surdez espiritual. Ele não tinha ainda ouvido a voz branda de Cristo dizendo: “vinde a mim Pedreira, e eu tornarei suave o teu jugo, e farei bem leve esse fardo pesado, que te foi imposto pelos teus em teu ambiente”.

Deolinda, tomada de um impulso raro, põe a sua mão direita no ombro de Pedreira e fala sem meias palavras.

─ Sabe de uma coisa meu caro Armando Pedreira? ─ Não me leve a mal, o senhor precisa ser liberto ─ diz Deolinda, querendo encurtar o enredo. O senhor precisa ser liberto da sombra paterna do preconceito, da vingança e do medo com que foi alimentado durante toda a sua infância.

Ela lembrava perfeitamente de uma de suas aulas, como se fosse hoje. Parecia está vendo Pedreira com seu semblante ríspido, no exato momento em que Amadeus afirmava diante de todos os seus colegas, que dialogava com seus pais à mesa, após o jantar, às vezes, discordando deles, em assuntos de religião e política. Lembrou-se de como Pedreira não suportando o relato de Amadeus, retirou-se bruscamente da sala de aula, visivelmente contrariado. Deolinda entendera que aquela reação demonstrada por Pedreira, na verdade, tinha sido fruto de uma vingança executada inconscientemente, em defesa do que ele aprendera do seu pai, o qual, não tolerava o confronto de idéias. Ela não tinha dúvidas de que tinha sido isso mesmo, que fizera com que ele se retirasse da classe. Aquela inesperada fuga da sala de aula tinha sido um ardil, em defesa dos conceitos adquiridos do pai.

─ O que você tanto balbucia aí com os seus botões? ─ pergunta Deolinda, para um Amadeus encolhido e cabisbaixo.

─ É, Dona Deolinda, as coisas de Deus parecem um paradoxo. Há pouco tempo o colega Pedreira pedia para senhora aceitar Jesus. Mas, pelo que estou presenciando atentamente, quem necessita de libertação não é a senhora não, é ele...

Deolinda aproveitando o momento que Pedreira, um tanto nervoso, se dirigira ao banheiro, resolveu sussurrar ao pé do ouvido de Amadeus:

─ É meu caro Amadeus, você é um privilegiado, pois, ao que parece, sobre os seus ombros não foi imposto o “fardo pesado” da subserviência. Contudo, sejamos sóbrios, não vamos tripudiar sobre o seu amigo de púlpito. Antes, devemos aturá-lo com calma, até que ele possa, quem sabe, um dia, chegar ao pleno conhecimento da VERDADE.

Já era tarde da noite quando Deolinda, sem sono, deu asas à imaginação. Pensava de si para si: “Como a promessa de um paraíso após a morte e o medo do castigo eterno atraem as pessoas. Era esse o motivo pelo qual a igreja de Armando Pedreira estava abarrotada de almas penitenciando-se diariamente para escapar do inferno.

É isso mesmo! ─ diz a mestra, terminando o seu pensar: “Os Evangelhos falam de uma salvação que é de graça, mas ninguém acredita. Só se crê naquilo que se consegue através da troca, do toma-lá-dá-cá”.

A velha e cansada professora agora entendia o “porquê” da Igreja de Amadeus ter tão poucos fiéis.


Autor: Levi B. Santos
Guarabira, 27 de Julho de 2009
Fonte: [ Ensaios e Prosas ]

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