Nos tempos de minha adolescência quando fazia o curso ginasial, lembro-me bem que o meu professor de Português dedicava-se com esmero incomum a nos ensinar como fazer uma redação, assim como nos incentivava insistentemente a ter gosto pela leitura. Ficaram retidas em minha memória as estórias instigantes que ele contava; eram contos que suscitavam reflexão. E ele assim perguntava: “Levi, qual a “moral da história” que você acabou de ouvir?”. Era nessa ocasião que eu levantava da carteira e de frente para meus colegas de classe, expunha ao meu modo o que tinha depreendido do que fora exposto.
Eu e meus colegas tínhamos que ouvir atentamente as minúcias do que o professor contava, para depois resumir numa pequena frase, tudo que o conto queria dizer. Tínhamos que descobrir a moral do conto lido em sala de aula. Na maioria das vezes, as histórias eletrizantes que eu ouvia, tinham dois lados, como as duas faces de uma moeda.
E assim fui aprendendo não só a ler passivamente com os olhos, mas principalmente a ler exercitando a mente. Foi ali, junto ao velho professor de redação, que surgiram as primeiras raízes da minha árvore interior. Nascera ali o hábito pela leitura, e, eu devorava com apetite incomum livros de aventuras e fábulas, romances, etc, os quais me fizeram ver, que não devia só ler por ler. Vi que podia viajar através da leitura, através do mundo da imaginação. Aprendi também a duvidar, pois nem tudo que os meus tutores falavam como verdades acabadas, tinham lá as suas razões de ser.
Hoje, cinco décadas distantes daquelas saudosas aulas, me ponho a pensar Naquele que foi o maior contador de histórias de todas as épocas. As parábolas que Cristo deixou, têm uma moral muito mais profunda do que a "moral" das histórias contadas pelo meu velho professor de Português, porque elas tocam o meu interior, sondando instintos e desejos escondidos no fundo e escuro mar do meu inconsciente. Instintos esses, que às vezes, afloram a superfície de minha consciência sob a forma de afetos antagônicos.
Ponho-me a imaginar o que seria de nós, cristãos, sem essas belas histórias que os Evangelistas da Igreja Primitiva cuidadosamente deixaram registradas. O que seriam dos Evangelhos se não fossem as Parábolas que Cristo contou um dia?
Quero ressaltar aqui, dentre elas, uma daquelas histórias das quais ainda hoje tiramos lições nos campos da moral, da religião, da filosofia e da psicanálise ─ a "Parábola do Filho Pródigo". Essa parábola mostra de uma forma irretocável, o verso e o reverso, o lado direito e o avesso do belo bordado existencial humano, nela estão expressas a Lei e a Graça, o afeto do ressentimento e do arrependimento, como as duas faces da moeda que representam o homem frente as suas vicissitudes e contradições. É a história de dois filhos, que na verdade, são metáforas do nosso “eu” contraditório. Não creio que o Grande contador de história, Jesus Cristo, nessa emblemática parábola, tivesse a intenção de acusar quem quer que fosse.
A beleza e a profundidade dessa história só aparecem com todas as suas cores e nuances se a levarmos para dentro de nós mesmos. Só assim fazendo é que poderemos descobrir que no nosso coração podem habitar corolários antagônicos: de um lado o arrependimento, a misericórdia e a graça na pele do filho pródigo; do outro lado a face amarga da inveja, do ressentimento que se apodera de nós, como um sentimento de injustiça quando não somos reconhecidos pelos nossos próprios méritos ─ é o que simboliza o irmão do filho gastador, da parábola. De um lado, um descumpridor da Lei, que reconhece que não merece ser chamado mais de filho, e deseja ser agora um simples empregado do Pai. Do outro lado, um irmão que se considera melhor que o outro, confundindo santificação com submissão e repressão dos desejos básicos (tinha vontade de comer um cabrito assado com os seus amigos, mas nunca teve a coragem de expor isso para o seu Pai, talvez pelo medo de ser reprovado).
Todas as histórias contadas pelo Mestre dos mestres têm no seu bojo uma parte de nós mesmos. Entender as Suas parábolas é o maior exercício que podemos realizar para nos conhecermos mais profundamente. As histórias que Cristo contou, que estão registradas nos Evangelhos, nos convidam a refletir ─ como na parábola do filho pródigo ─ sobre os dois herdeiros de um mesmo Pai, que apesar de tão antagônicos, tão paradoxais, podem habitar dentro de uma mesma alma.
A razão maior da releitura dessa significante parábola foi demonstrar que o homem é essa mistura de necessidades e instintos animalescos, como também é abertura para o que é Transcendente e Divino. O nosso humanismo reside na tensão ou no equilíbrio entre os dois herdeiros da parábola, que temos dentro de nós. O Pai “da parábola” deu provas de como se faz esse equilíbrio: “Recebeu com festa e danças o seu filho que havia se perdido, e ao mesmo tempo consolou o filho mais velho que se sentiu injustiçado e ressentido”.
Quantas vezes, aqui ou acolá, queremos nos desvestir e enxotar para bem longe o filho gastador e perdulário, para ficar só com aquele bem certinho e cumpridor dos seus deveres? Quando estivermos nesse dilema, recordemos o que aconteceu com o apóstolo Paulo, quando ao experimentar o ápice do paradoxo existencial humano, bradou dilaceradamente: “Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo dessa morte?” (Romanos 7: 24)
Dois mil anos se passaram e a parábola do Pai e seus dois filhos, relatada pelo maior contador de histórias, ainda reverbera dentro de mim. Toda vez que eu a releio, me vejo por dentro, o bastante para recolher-me a minha insignificância.
Ensaio por Levi B. Santos
Fonte: [ Ensaios & Prosas ]
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