A frase de Cazuza supracitada entre aspas reflete bem a postura de muitos evangélicos brasileiros diante das diversas perspectivas teológicas existentes dentro do Protestantismo. Tenho lido ultimamente (em blogs, sites, livros, revistas etc.) diversos manifestos cada vez mais verborrágicos de muitos que defendem uma suposta neutralidade hermenêutica, argumentando que “nada de Calvino ou Armínio, prefiro ficar com a Bíblia”, aliada a uma espécie de desilusão teológica, argumentando que “teologia é aquilo que os teólogos dizem acerca de Deus”. Para os tais, tudo isso se constitui numa prova incontestável da vaidade e tagarelice dos “teólogos de plantão”, que só sabem ficar repetindo as frases e pensamentos de teólogos renomados, já que são “incapazes” de ser originais.
Embora seja oportuno fazer uma referência às centenas de novas denominações (“partidos”) que surgem no cenário brasileiro a cada dia, de nomes que vão de Igreja Noiva de Jesus da Segunda Divisão a Igreja Abastecedora de Água Abençoada, não é meu objetivo, aqui, comentar sobre essas aberrações, embora o assunto por si só já dispense comentários. Mas, talvez eu escreva algo específico sobre isso. Meu alvo no presente artigo são aqueles que arrogam para si uma hermenêutica “equilibrada”, os quais eu chamaria carinhosamente de “os equilibrados”. Estes parecem ignorar completamente os conceitos teológicos e hermenêuticos embutidos em suas mentes, acusando de “parcialidade teológica” os pobres mortais que não conseguem se desvencilhar dos seus pressupostos. Para eles, tudo isso gera somente disputas teológicas inúteis e nocivas ao Reino de Deus, ainda que elas sirvam para traçar limites entre a ortodoxia e a heresia (Calcedônia serviu para alguma coisa!).
Uma das disputas mais acirradas é entre calvinistas e arminianos, particularmente no que se refere às questões soteriológicas, o que também se constitui, via de regra, numa questão hermenêutica. Não quero entrar no mérito da discussão sobre quem está com a razão, até porque sou muito suspeito para falar sobre isso. Mas o que mais me irrita é ver gente se dizendo que não é uma coisa nem outra. Semelhantemente àquele “garoto que ia mudar o mundo”, da aludida música do Cazuza, os profetas do equilíbrio agora assistem a essa disputa teológica “em cima do muro”. “É preciso evitar os extremos – a virtude está no meio”, é o jargão favorito deles. Mas o pior de tudo é que, geralmente, eles não sabem delinear com precisão que extremos são esses, muito menos a virtude. Quando o assunto é predestinação, por exemplo, um livro bastante usado pelos “equilibrados” é Eleitos, mas livres (Editora Vida), de Norman Geisler, que arroga para si uma pretensa “perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio”. Todavia, qualquer leitor que tenha uma boa instrução teológica logo saberá que o livro nada mais é do que um arminianismo disfarçado sob o guarda-chuva da “moderação”[1]. Prefiro lidar com os mais convictos, ainda que arminianos, aos pretensos “neutros”. Não creio que haja um meio-termo entre uma coisa e outra. Recentemente fui questionado por um leitor por que escrevo “a partir de uma ótica calvinista, e não, a partir de uma ótica bíblica”. Minha resposta foi:
Para muitas pessoas, o fato de alguém se declarar como um calvinista não demonstra apenas arrogância, mas também, desprezo por Cristo. Segundo eles, estamos incorrendo no mesmo erro da igreja de Corinto, ao criarmos “partidos” no corpo de Cristo (cf. 1Co 1.10ss; 3.1-7). E isso engrossa mais ainda o coro da multidão dos inconformados: “Abaixo o PPC (Partido Predestinalista de Calvino)”!
A questão é mais abrangente do que se imagina. Certa vez perguntei a um irmão qual era a igreja (denominação) que ele fazia parte, e ele me respondeu que era da “igreja de Jesus”. Eu perguntei a ele se ele pertencia a uma “igreja sem nome”, o que ele interpretou como uma ironia de minha parte (e foi, de fato). “Mostre-me na Bíblia uma igreja presbiteriana, batista, congregacional, episcopal ou qualquer outra denominação que eu calo a minha boca”, disse ele contrariado. Imediatamente, lembrei-me dos “espirituais” de Corinto, que diziam que eram “de Cristo”, constituindo-se, talvez, no pior dos partidos daquela igreja (1Co 1.10ss). O que noto nessas ideias é um discurso de protesto contra os modelos tradicionais de igreja do período da Reforma. Para muitos, a igreja moderna entendeu errado a mensagem de Jesus. É preciso rever absolutamente tudo. Muito pouco (para não dizer nada) restou da igreja primitiva. É exatamente isso que Brian McLaren, o guru do movimento de igreja emergente propõe no livro A mensagem secreta de Jesus (Ed. Thomas Nelson Brasil). Para ele, a igreja até hoje ainda não entendeu o que Jesus queria transmitir. O evangelho foi sendo modificado ao longo da História, de tal forma que pouco restou da genuína doutrina apostólica. Urge, pois, que compreendamos qual é a “mensagem secreta” do Mestre. Apesar de McLaren ter razão em alguns aspectos, não creio que a igreja perdeu por completo a essência do evangelho. Aliás, é bom que se diga que a proposta dele se aproxima mais de uma “neo-ortodoxia pós-moderna” do que de um clamor ao resgate das origens da igreja primitiva[2]. Creio que, pelo fato de Deus preservar os seus eleitos de tropeçar (cf. Jd 24, onde o contexto sugere um livramento de apostasia total), Ele mesmo é quem supre a sua Igreja com os meios ordinários para tal. Ou será que Deus aderiu a uma espécie de “deísmo teológico”, abandonando o Seu povo por completo da Sua Palavra, deixando-o à deriva?
Fico me perguntando se uma “extinção denominacional” seria a solução para a crise de identidade da igreja evangélica brasileira; se isso traria mais “equilíbrio” ao povo de Deus. Será que aqueles que promovem a esse tipo de unidade estão certos? Não está na hora de derrubar os “partidos” (calvinista, batista, presbiteriano, episcopal, arminiano, pentecostal etc) e viver a plenitude orgânica do Corpo de Cristo? Sinceramente, além de não crer que isso seja possível, também não creio que seja viável. Não seria possível porque ninguém estaria disposto a abandonar seus pressupostos, e não seria viável porque isso só aumentaria ainda mais a cratera – não haveria unidade teológica, obviamente. Prefiro continuar seguindo o sistema reformado de teologia, não por julgá-lo perfeito, e sim por ver que é o que mais se aproxima do padrão legado pelos apóstolos (o bom e velho método gramático-histórico). Sei que muitos me considerarão um arrogante exclusivista pelo que acabo de dizer, mas essa é minha opinião. Sei também que a grande massa evangélica no Brasil não é reformada, mas nem por isso eu chegaria ao ponto de dizer o que Cazuza disse, que os “meus inimigos estão no poder”. Apesar das diferenças teológicas que tenho com algumas pessoas, reconheço-as como irmãs e irmãos em Cristo. Mas, continuo dizendo que a teologia e uma boa hermenêutica são necessárias. Talvez tão necessárias ao ponto de eu parafrasear (sem medo de ser feliz!) nosso poeta: “Teologia: eu quero uma pra viver”[3]!
Soli Deo Gloria!
__________________
[1] Sobre esse livro veja a excelente resenha de Franklin Ferreira em http://www.monergismo.com/textos/resenhas/eleitos_livres_franklin.htm
[2] Sobre isso, ver artigo de Mauro Meister em http://tempora-mores.blogspot.com/2007/03/em-meio-ao-caos-areo-igreja-emergente.html.
[3]Por uma questão de precaução, gostaria de avisar aos leitores que NÃO ESTOU AFIRMANDO QUE É A TEOLOGIA REFORMADA QUEM IRÁ ME CONDUZIR PARA O CÉU! Como bem disse o erudito reformado Herman Bavinck, em seu leito de morte, "minha erudição para nada serve agora. Somente a fé me resta".
Embora seja oportuno fazer uma referência às centenas de novas denominações (“partidos”) que surgem no cenário brasileiro a cada dia, de nomes que vão de Igreja Noiva de Jesus da Segunda Divisão a Igreja Abastecedora de Água Abençoada, não é meu objetivo, aqui, comentar sobre essas aberrações, embora o assunto por si só já dispense comentários. Mas, talvez eu escreva algo específico sobre isso. Meu alvo no presente artigo são aqueles que arrogam para si uma hermenêutica “equilibrada”, os quais eu chamaria carinhosamente de “os equilibrados”. Estes parecem ignorar completamente os conceitos teológicos e hermenêuticos embutidos em suas mentes, acusando de “parcialidade teológica” os pobres mortais que não conseguem se desvencilhar dos seus pressupostos. Para eles, tudo isso gera somente disputas teológicas inúteis e nocivas ao Reino de Deus, ainda que elas sirvam para traçar limites entre a ortodoxia e a heresia (Calcedônia serviu para alguma coisa!).
Uma das disputas mais acirradas é entre calvinistas e arminianos, particularmente no que se refere às questões soteriológicas, o que também se constitui, via de regra, numa questão hermenêutica. Não quero entrar no mérito da discussão sobre quem está com a razão, até porque sou muito suspeito para falar sobre isso. Mas o que mais me irrita é ver gente se dizendo que não é uma coisa nem outra. Semelhantemente àquele “garoto que ia mudar o mundo”, da aludida música do Cazuza, os profetas do equilíbrio agora assistem a essa disputa teológica “em cima do muro”. “É preciso evitar os extremos – a virtude está no meio”, é o jargão favorito deles. Mas o pior de tudo é que, geralmente, eles não sabem delinear com precisão que extremos são esses, muito menos a virtude. Quando o assunto é predestinação, por exemplo, um livro bastante usado pelos “equilibrados” é Eleitos, mas livres (Editora Vida), de Norman Geisler, que arroga para si uma pretensa “perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio”. Todavia, qualquer leitor que tenha uma boa instrução teológica logo saberá que o livro nada mais é do que um arminianismo disfarçado sob o guarda-chuva da “moderação”[1]. Prefiro lidar com os mais convictos, ainda que arminianos, aos pretensos “neutros”. Não creio que haja um meio-termo entre uma coisa e outra. Recentemente fui questionado por um leitor por que escrevo “a partir de uma ótica calvinista, e não, a partir de uma ótica bíblica”. Minha resposta foi:
“O uso que faço da palavra ‘calvinista’ é de conotação histórica; não visa à pessoa de Calvino, e sim, à sua teologia, que serviu de base para as igrejas reformadas na Suíça e Holanda (Igreja Reformada), Inglaterra (Congregacionais, Batistas [alguns] e Anglicanos) e Escócia (Presbiterianos), bem como ao movimento Puritano dos séculos XVI, XVII e XVIII, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Por uma questão de coerência, você deveria sugerir também que eu mudasse o nome do blog (Optica Reformata), uma vez que ótica reformada é sinônimo de ótica calvinista”.
Para muitas pessoas, o fato de alguém se declarar como um calvinista não demonstra apenas arrogância, mas também, desprezo por Cristo. Segundo eles, estamos incorrendo no mesmo erro da igreja de Corinto, ao criarmos “partidos” no corpo de Cristo (cf. 1Co 1.10ss; 3.1-7). E isso engrossa mais ainda o coro da multidão dos inconformados: “Abaixo o PPC (Partido Predestinalista de Calvino)”!
A questão é mais abrangente do que se imagina. Certa vez perguntei a um irmão qual era a igreja (denominação) que ele fazia parte, e ele me respondeu que era da “igreja de Jesus”. Eu perguntei a ele se ele pertencia a uma “igreja sem nome”, o que ele interpretou como uma ironia de minha parte (e foi, de fato). “Mostre-me na Bíblia uma igreja presbiteriana, batista, congregacional, episcopal ou qualquer outra denominação que eu calo a minha boca”, disse ele contrariado. Imediatamente, lembrei-me dos “espirituais” de Corinto, que diziam que eram “de Cristo”, constituindo-se, talvez, no pior dos partidos daquela igreja (1Co 1.10ss). O que noto nessas ideias é um discurso de protesto contra os modelos tradicionais de igreja do período da Reforma. Para muitos, a igreja moderna entendeu errado a mensagem de Jesus. É preciso rever absolutamente tudo. Muito pouco (para não dizer nada) restou da igreja primitiva. É exatamente isso que Brian McLaren, o guru do movimento de igreja emergente propõe no livro A mensagem secreta de Jesus (Ed. Thomas Nelson Brasil). Para ele, a igreja até hoje ainda não entendeu o que Jesus queria transmitir. O evangelho foi sendo modificado ao longo da História, de tal forma que pouco restou da genuína doutrina apostólica. Urge, pois, que compreendamos qual é a “mensagem secreta” do Mestre. Apesar de McLaren ter razão em alguns aspectos, não creio que a igreja perdeu por completo a essência do evangelho. Aliás, é bom que se diga que a proposta dele se aproxima mais de uma “neo-ortodoxia pós-moderna” do que de um clamor ao resgate das origens da igreja primitiva[2]. Creio que, pelo fato de Deus preservar os seus eleitos de tropeçar (cf. Jd 24, onde o contexto sugere um livramento de apostasia total), Ele mesmo é quem supre a sua Igreja com os meios ordinários para tal. Ou será que Deus aderiu a uma espécie de “deísmo teológico”, abandonando o Seu povo por completo da Sua Palavra, deixando-o à deriva?
Fico me perguntando se uma “extinção denominacional” seria a solução para a crise de identidade da igreja evangélica brasileira; se isso traria mais “equilíbrio” ao povo de Deus. Será que aqueles que promovem a esse tipo de unidade estão certos? Não está na hora de derrubar os “partidos” (calvinista, batista, presbiteriano, episcopal, arminiano, pentecostal etc) e viver a plenitude orgânica do Corpo de Cristo? Sinceramente, além de não crer que isso seja possível, também não creio que seja viável. Não seria possível porque ninguém estaria disposto a abandonar seus pressupostos, e não seria viável porque isso só aumentaria ainda mais a cratera – não haveria unidade teológica, obviamente. Prefiro continuar seguindo o sistema reformado de teologia, não por julgá-lo perfeito, e sim por ver que é o que mais se aproxima do padrão legado pelos apóstolos (o bom e velho método gramático-histórico). Sei que muitos me considerarão um arrogante exclusivista pelo que acabo de dizer, mas essa é minha opinião. Sei também que a grande massa evangélica no Brasil não é reformada, mas nem por isso eu chegaria ao ponto de dizer o que Cazuza disse, que os “meus inimigos estão no poder”. Apesar das diferenças teológicas que tenho com algumas pessoas, reconheço-as como irmãs e irmãos em Cristo. Mas, continuo dizendo que a teologia e uma boa hermenêutica são necessárias. Talvez tão necessárias ao ponto de eu parafrasear (sem medo de ser feliz!) nosso poeta: “Teologia: eu quero uma pra viver”[3]!
Soli Deo Gloria!
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[1] Sobre esse livro veja a excelente resenha de Franklin Ferreira em http://www.monergismo.com/textos/resenhas/eleitos_livres_franklin.htm
[2] Sobre isso, ver artigo de Mauro Meister em http://tempora-mores.blogspot.com/2007/03/em-meio-ao-caos-areo-igreja-emergente.html.
[3]Por uma questão de precaução, gostaria de avisar aos leitores que NÃO ESTOU AFIRMANDO QUE É A TEOLOGIA REFORMADA QUEM IRÁ ME CONDUZIR PARA O CÉU! Como bem disse o erudito reformado Herman Bavinck, em seu leito de morte, "minha erudição para nada serve agora. Somente a fé me resta".
Autor: Leonardo Galdino
Fonte: [ Optica Reformata ]
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