Onde está a contracultura?

.

Por Norma Braga

Estamos no mundo mas não somos do mundoSomos o sal da terra, a luz do mundo. São palavras de Jesus sobre nós. Os cristãos são chamados por Ele para ser contracultura. “Eles não são do mundo, como eu também não sou” (Jo 17.14). Isto significa que lutamos pela pureza: dentro de nós, no caminho tão pessoal e bonito da santificação, pela graça de Deus; e também fora de nós, denunciando a crueldade do pecado e convidando a outros para que sigam o mesmo caminho, escorados de igual modo na graça de Deus. Quando o fazemos fora de nós, confrontamos não só os incrédulos, para que se convertam, mas também os próprios crentes, para que deixem determinados pecados e se santifiquem, desatando os laços com outros (falsos) doadores de identidade – bens materiais, aparência, ideologias, saberes, profissões, condição social etc. Nossa identidade realmente última deve ser Cristo em todas as esferas da vida.

Quando o cristão adere inadvertidamente ao culto a um ídolo mundano, incorporando ao cristianismo elementos espúrios, esse chamado de Cristo tende a se tornar inócuo. Afinal, se nossa identidade é partilhada entre Cristo e ídolos, não nos diferenciamos do mundo o suficiente para salgá-lo. E o sal que não salga “só presta para ser pisado pelos homens” (Mt 5.13). Esse culto ambíguo e informe recebe um nome na filosofia reformada: “síntese”. E há muito mais sínteses do que conseguimos identificar, certamente: como dizia Calvino, o coração é uma incansável fábrica de ídolos.

No blog, e também no livro, uma das sínteses mais presentes em minha denúncia do pecado é a que mistura cristianismo com esquerdismo. Dediquei longo tempo ao estudo do esquerdismo em suas variadas formas – soviético, chinês, cubano, politicamente correto – e ainda pretendo fazê-lo muito mais. Porém, sabendo que o pecado nos empurra para extremos que apenas parecem opostos, mas são análogos, tenho ocupado minha mente hoje com a síntese que indiferencia cristianismo e conservadorismo – ou, de modo mais específico, cristianismo e luta contra o esquerdismo (ou luta cultural). Encerro a ambas as sínteses – com esquerdismo e com conservadorismo – sob a expressão “politização da fé”.

O que ocorre quando o cristianismo se dilui na politização da fé? A luta contra o pecado se torna predominantemente exterior, quando na verdade é primordialmente interior – ou seja, sempre se inicia com a identificação dos pecados íntimos, seguindo-se com arrependimento, perdão e cura diante de Deus. De fato, esse autoexame é uma condição sine qua non para o exame adequado dos pecados exteriores, conforme enfatizou Jesus em Lucas 6.41-42. Se não conhecemos nem nossos próprios pecados, como enxergaremos o pecado alheio?

Em Letters of Francis A. Schaeffer [Cartas de Francis A. Schaeffer], o grande apologista apresenta um referencial para que a importância da interioridade na vida cristã seja preservada, representado por um esquema onde aparecem três círculos concêntricos:


O círculo da apologética se correlaciona com “a aplicação da teologia à incredulidade” (John Frame), ou seja, com a luta da verdade contra a mentira que reside no coração humano (a começar pelo coração do próprio apologista: não esquecer Lucas 6.41-42). O das doutrinas diz respeito à afirmação positiva da fé cristã. E o interior é de onde fluem “os rios de água viva”, onde ocorre a conversão, onde se dá o relacionamento pessoal da alma individual com Deus . Sem o interior, nenhum dos outros dois pode constituir um cristianismo legitimamente bíblico. Sem o interior, de fato, não pode haver um salgar efetivo, pois somente nos diferenciamos do mundo à medida que nos deixamos transformar por Cristo.

Para Schaeffer, e também para mim, não há alternativa a não ser pedir a graça de Deus para que cada um desses círculos esteja em seu devido lugar na nossa vida. Porque somos pecadores, nossa tendência sempre será nos afastar de Deus para manter nossos pecados intactos (Jo 3.19). Então, para disfarçar esse afastamento, tenderemos a substituir a vida interior com Deus pela luta exterior com as pessoas, as ideologias, os pais, os professores, o “sistema”, achando que servimos a Deus com isso, sem perceber o quanto estamos secos por dentro. É quando o empunhar das armas toma o lugar da novidade de vida em Cristo. Se você acredita ter caído nessa armadilha, talvez ajude lembrar que estamos soldados neste mundo, mas nossa verdadeira natureza é de adoradores: amar a Deus e aos irmãos é o que faremos por toda a eternidade.

É precisamente nessa inversão – que suprime a primazia da vida interior e a substitui pela luta cultural – que eu identifico o cruzamento entre esquerdismo e conservadorismo como sínteses com o cristianismo. A única diferença é que não creio ser possível, para o cristão, aderir ao esquerdismo sem realizar sínteses, enquanto o conservadorismo, por ser a posição mais natural biblicamente, pode ser adotado sem corromper o cerne da fé. Porém, isto não significa que o cristão conservador deva se sentir imune ao mecanismo da inversão – e de fato, nesses tempos em que (finalmente!) as posições conservadoras “saem do armário” e se mostram à luz do dia, vários exemplos desse mecanismo já podem ser percebidos. Ainda tratarei mais disso aqui.

.
Imprimir ou salvar em PDF

Postar um comentário

Política de moderação de comentários:

1 - Poste somente o necessário. Se quiser colocar estudos, artigos ou textos grandes, mande para nós por e-mail: bereianos@hotmail.com

2 - A legislação brasileira prevê a possibilidade de se responsabilizar o blogueiro pelo conteúdo do blog, inclusive quanto a comentários; portanto, o autor deste blog reserva a si o direito de não publicar comentários que firam a lei, a ética ou quaisquer outros princípios da boa convivência. Comentários com conteúdo ofensivo não serão publicados, pois debatemos idéias, não pessoas. Discordar não é problema, visto que na maioria das vezes redunda em edificação e aprendizado. Contudo, discorde com educação e respeito.

3 - Comentários de "anônimos" não serão necessariamente postados. Procure sempre colocar seu nome no final de seus comentários (caso não tenha uma conta Google com o seu nome) para que seja garantido o seu direito democrático neste blog. Lembre-se: você é responsável direto pelo que escreve.

4 - A aprovação de seu comentário seguirá os nossos critérios. O Blog Bereianos tem por objetivo à edificação e instrução. Comentários que não seguirem as regras acima e estiver fora do contexto do blog, não serão publicados.

Para mais informações, clique aqui!

Blog Bereianos!