Coringa e “A Faca Entrou”: a perigosa atenuação da culpa

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A obra mais falada do cinema nos últimos dias é “Coringa” (Joker). O filme, aguardado com muita expectativa, traz um Joaquin Phoenix candidato ao posto de melhor ator do ano, tenha ou não o reconhecimento da Academia (entenda aqui ganhar o Oscar). E na minha humilde opinião, se o que ele ou outro ator tivesse entregado na atuação, ficasse abaixo do que vemos na tela, talvez o filme nem fosse tão aclamado como vem sendo.

O trabalho do diretor não é ruim. O roteiro é que deixou algumas coisas a desejar. Apesar de dois excelentes plot twists (uma mudança radical e surpreendente da narrativa), o fato do Coringa ter sido planificado como personagem me desagradou. Explico: Personagens planas e esféricas são uma denominação cunhada por E.M. Forster, retiradas da obra Aspectos do Romance. Ao meu ver, o Coringa da mais recente versão cinematográfica é uma personagem plana, unilateral. Arthur Fleck, a pessoa que se torna o arqui-inimigo do Batman, é alguém que apresenta uma inocência e uma fragilidade que nos faz ter muita simpatia por ele. Em boa parte da película vemos o homem com problemas mentais querendo encontrar o seu lugar no mundo. Querendo ser notado. Querendo ser amado. Mas a notabilidade e o amor não vem. O que Arthur Fleck acumula é fracasso, desdém, sofrimento, abandono, traição. Pobre Arthur…

O Coringa interpretado por Phoenix é mais vítima do que vilão. Isso me incomodou. Basicamente o que vemos em cena é que a resposta de Arthur Fleck para todo o mal que sofreu e absorveu é a violência. Justificada por uma vida de constantes abusos, a aparição do Coringa deixa a personagem sem sua vilania clássica. Ora, o Coringa é um psicopata, alguém mal que no universo dos quadrinhos cometeu inúmeras atrocidades. Faltou a este Coringa do cinema ser mais esférico (ainda usando E.M. Forster). Ele até poderia sofrer, ele até poderia ter seus traumas. Mas faltou um indicativo de pura maldade. Alguma coisa que mostrasse que mesmo com os fatores externos, havia algo de perverso em Arthur manifesto desde muito cedo. Nem que fosse arrancar a cabeça de uns bonecos.

Algumas pessoas vão me dizer que todo o enredo está sendo contado na ótica do próprio Coringa. Portanto, nem toda aquela narrativa significa ser verdadeira. Contraponho argumentando que esta é uma interpretação alternativa. O roteiro do filme não traz uma narrativa em primeira pessoa. Ele apresenta a estória. Ele apresenta a origem do vilão. Há, no mínimo, uma dubiedade de intenção ou de interpretação. Só que o que é apresentado na tela é o que o público médio vai entender: Coringa foi uma resposta da vilania social. Gothan, aqui funcionando mais como uma personagem do que como cenário, forjou Arthur.

Vi e ouvi inúmeras pessoas comentando exatamente o que coloquei acima. As pessoas saíram do cinema colocando a responsabilidade do Arthur ter virado o Coringa em tudo e em todos: na sociedade, na mãe, no Thomas Wayne, no apresentador do Talk Show (De Niro está ótimo aqui, por sinal), menos responsabilizando o próprio protagonista pelas suas ações. E aqui eu gostaria de usar a contribuição do Theodore Dalrymple para destacar o como que isto é problemático.

Dalrymple é o pseudônimo de Anthony Daniels. Hoje um aclamado e respeitado ensaísta britânico, mas que é médico psiquiatra de formação e a exerceu por muitos anos. Um dos seus livros mais recentes lançados em português é “A Faca Entrou” (É Realizações, 2018), recheado de histórias reais de assassinos conhecidos por Dalrymple quando ele atuava como clínico geral e psiquiatra numa penitenciária. O título da obra é explicado da seguinte maneira pelo seu autor:

No entanto observei um fenômeno peculiar na penitenciária onde comecei a trabalhar vinte anos atrás — o uso da voz passiva pelos prisioneiros como forma de se distanciar das próprias decisões e persuadir os outros da falta de responsabilidade por suas ações. A princípio, notei o fenômeno ao falar com assassinos que tinham esfaqueado alguém até a morte e, invariavelmente diziam “a faca entrou”, como se a faca tivesse guiado a mão em vez da mão guiar a faca. Um assassino desses pode ter cruzado a cidade levando a faca consigo para confrontar a exata pessoa de quem guardava um sério rancor. Ainda assim, foi a faca que entrou.

O livro do Darlrymple expõe a negação da culpa e a transferência de responsabilidade para fatores externos. Isso tem sido uma mudança de paradigma que vem levando a sociedade a acomodação da violência e contribuído para uma disfuncionalidade que espanta aqueles que dela se apercebem. Uma vida sofrida ou regada por humilhações não dão um aval para crimes serem cometidos. Falando sobre os prisioneiros com quem trabalhou, Darlrymple assume que, em sua maioria, eles “tiveram infâncias terríveis, cheias de crueldade e negligencia”. Só que não existe uma conexão simples ou inescapável que nos faça afirmar categoricamente que uma coisa está ligada a outra. “Em outras palavras, eles decidiram fazer o que fizeram”.

Tornar o sofrimento, os abusos ou as negligências como causas que servem de gatilhos para atos criminosos e/ou violentos é coisa de quem enxerga “lógica no assalto” (Não pegou a referência? Clica aqui). É sandice! Não queria entrar no mérito de jogar o roteiro do filme para ideologia A ou B, pois, de fato, não acredito que o filme tenha abraçado uma ideologia. Mas não dá para negar que há uma enorme fatia no pensamento progressista que gosta de usar desse tipo de atenuante para respaldar atos que para muitos são injustificáveis. Coringa se torna celebrado em Gothan. As pessoas o exaltam. Alguém que era para ser visto como vilão é visto por uns como uma espécie de herói dos desvalidos. Insano? Muito. Só que o que potencializa a insanidade é quando admitimos que ela é real. Quem não viu uma parcela da sociedade celebrar o ato e a pessoa do Adélio Bispo, o homem que tentou matar, o então candidato à Presidência, Jair Bolsonaro? O mesmo foi de herói de um grupo a alguém que não poderia responder por seus atos, tido posteriormente como mentalmente incapaz (Biruta, no polular).

Coringa, ou melhor, Arthur Fleck, tinha problemas mentais, como dito. No filme não fica muito claro qual ou quais, mas sabe-se que ele possuía. Seria o transtorno mental um atenuador para os futuros crimes cometidos? Ao responder ao advogado de defesa de uma mulher acusada de assassinato, e que fora diagnosticada com um certo distúrbio de personalidade, se aquele distúrbio não deveria atenuar a culpa da acusada, Darlrymple nos conta que deu a seguinte resposta: “O senhor está cometendo um erro de lógica. Um homem com câncer no pulmão tem a doença porque fuma; um homem que fuma não tem necessariamente câncer no pulmão”.

Na Sagrada Escritura, aprendemos que o homem é um ser caído. O pecado é uma realidade que afeta a totalidade do ser humano. Jesus nos diz que é do coração que “procedem os maus intentos, homicídios, adultérios, imoralidades, roubos, falsos testemunhos, calúnias, blasfêmias” (Mateus 5.19). Só que a própria Escritura também nos diz que o homem é responsabilizado por seus atos. A narrativa do primeiro homicídio é conhecida, Caim mata seu irmão Abel por inveja. Todavia, antes de cometer tal brutalidade, ele havia sido exortado: “Então o Senhor perguntou a Caim: Por que te iraste? E por que está descaído o teu semblante? Porventura se procederes bem, não se há de levantar o teu semblante? E se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo; mas sobre ele tu deves dominar”. (Gênesis 4.6 e 7).

Caim está para Coringa assim como José está para Bruce Wayne. A história de José narra um dos dramas familiares mais conhecidos do conteúdo bíblico (Começa em Gênesis 37). Sofreu bastante e foi capaz de responder de maneira diferente ao que muitos justificariam como sendo uma vingança compreensível. Já o Bruce Wayne, o Batman, sofreu ao ver seus pais morrendo diante de seus olhos — assassinados à sangue frio. Cercado de dinheiro, estava sem sua família. Uma criança sozinha no mundo. O Batman não sucumbiu a vilania “justificável”. Não é mesmo?

Sei que o Batman junto com José do Egito e o Theodore Darlrymple formaram um grupo bem mais estranho do que os componentes da Liga da Justiça e similares. Mas espero que eles lhe ajudem a ver o que eu vi e tenham clareado o meu argumento. Se você ainda não assistiu ao Coringa, assista. O filme pode até não ser tudo isso que falam, no entanto, é um bom filme e lhe fará pensar em muitas coisas. Vale ressaltar que todo e qualquer disparate deste texto (da minha análise como “crítico de cinema de araque”) é de minha inteira responsabilidade.

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Autor: Pr. Thiago Oliveira
Divulgação: Bereianos
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O problema teológico com a tal justiça social de Tim Keller

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A Igreja começou a abraçar amplamente a chamada justiça social, e muito disso é graças ao livro de Tim Keller, Generous Justice: How God’s Grace Makes Us Just.[1]

Certamente há muitas coisas boas no livro de Keller – a maior delas é o seu chamado para que a Igreja busque a justiça. No entanto, acho que Keller comete alguns erros graves quando se trata de identificar o que é a justiça, e como se deve buscá-la. Isso é mais óbvio em sua discussão sobre os aspectos econômicos da justiça social (às vezes chamada de “justiça econômica”).

O Direito e o cristão ou o Direito versus o cristão?

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A crise de fundamentação

Desde o Iluminismo, a configuração jurídica sofreu profunda mudança. A influência da filosofia kantiana, “o homem como fim”, levou a uma leitura moderna da realidade jurídica que considera a autonomia humana como a medida de todo o bem legal.

Entretanto, diante das crises perpetradas pelas Guerras Mundiais do século XX, fez-se uma reflexão humanística da realidade social que encontrou no Judiciário, como interprete da lei, uma âncora de apoio para a defesa de minorias e de direitos individuais em detrimento da rígida e formal leitura da lei.

Tal iniciativa, porém, somada às profundas mudanças da compreensão da filosofia da linguagem moderna, levou a um empoderamento do Poder Judiciário que, nos dias de hoje, tende a uma ditadura de sua interpretação legal. Isto é, diante da crise de conteúdo das normas legais, as Cortes Supremas dos países ocidentais passaram a desempenhar um papel proeminente na interpretação que, nos dias de hoje, parece sem controle legal e reduzida ao jogo político.

Ora, essa percepção não é tão recente assim. O autor Francis Schaeffer, em seu livro “Manifesto Cristão”, que data do início da década de 80, referindo-se a crise jurídica desencadeada nos Estados Unidos da América, já apontava que o principal motivo de tamanha mudança foi filosófica: um abandono da cosmovisão judaico-cristã para uma abordagem humanística. Nesta última, o homem, à parte de influências externas e baseado nos postulados da imparcialidade e objetividade, seria autônomo para decidir seu próprio destino comunitário. Isto é, o homem passa a ser a base pela qual a lei é criada e medida.

Essa virada humanística tem um alto custo: tanto a Constituição como as normativas legais passam a ser profundamente relativizadas e usadas como uma linguagem para se tomar decisões políticas nos tribunais, especialmente nas Cortes Supremas.

Com efeito, Ratzinger (2007, p. 170) chama esse esfacelamento linguístico de “virada linguística” em que se renuncia a verdade, a partir da noção de que não se pode atingir o que está por trás da linguagem e das suas imagens, já que a razão está linguisticamente condicionada e perpetrada de vícios políticos.

Desse modo, o quadro pode ser resumido no seguinte sentido: a modernidade, com seu postulado de autonomia, abandonou uma crença no sentido da linguagem, a relativizando, e se dispôs a atribuir mais força legal ao Poder Judiciário, especificamente, às Cortes Supremas, como sendo o guardião da interpretação constitucional e das garantias individuais. Entretanto, isso tem feito com que essas Cortes Superiores, sem controle legal, já que se encontram no topo da “pirâmide normativa”, usem da linguagem jurídica como um instrumento político para impor uma espécie de “ditadura jurídica moderna”.

Ditadura jurídica moderna

Diante do quadro apresentado, as crises institucionais e, principalmente, de base moral e filosófica, que abrange o abandono da influência judaico-cristã, levam a uma imposição jurídica de ideologias e de crenças dos julgadores que solapam o frágil regime democrático.

Schaeffer (1985, p. 44) diz que “esta mudança da base judaico-cristã para a lei e para o desvio das restrições da Constituição, automaticamente milita contra a liberdade religiosa”. Nesse sentido, a lei se torna um meio de forçar um modo político-ideológico de pensar sobre a população.

É a tentativa de que uma minoria se imponha legitimamente sobre a maioria, o que, em última instância, se constitui no que C. S. Lewis (2012, p. 56-57) dizia: “o poder do Homem para fazer de si mesmo o que bem quiser significa (...) o poder de alguns homens para fazer dos outros o que bem quiserem”.

Consequentemente, como já alertava Schaeffer (1985, p. 102) a mais de trinta anos, os tribunais são utilizados, ao invés do legislativo, porque eles não se sujeitam ao crivo da opinião pública para serem reeleitos e porque podem aumentar a criação de leis sem passar por um árduo processo de debates legislativos.

Nos tempos mais recentes, coaduna Scruton (2015, p. 256) ao dizer que

É notório o abuso da Suprema Corte, com juristas astutos e perspicazes, ao criar argumentos que decidem questões de matérias rejeitadas pelo Congresso eleito, ao mesmo tempo que reivindicam a autoridade de uma Constituição, à qual todos têm o dever de fidelidade.

Tal atuação, chamada por alguns do Direito de “ativismo judicial”, leva ao escanteamento da religião do debate público. Os religiosos são ridicularizados como fundamentalistas, retrógrados, fascistas, reacionários, entre outros.

Com o tempo, esse esvaziamento da moral judaico-cristã é preenchido por falsos ídolos ideológicos que prometem demais, mas que produzem mais instabilidades e crises. Não se cria com isso um vácuo que será preenchido por valores objetivos em que o homem, supostamente, analisando a realidade social, cria de sua mente e democraticamente leis que são melhores para todos. Na verdade, o vácuo é preenchido por valores que são antagônicos a tudo aquilo que taxam de conservador. Como coloca Razzo (2016, p. 232), “o homem totalitário impõe ao Estado e à sociedade um ordenamento jurídico revelado de sua própria imaginação, apelando para a ‘mudança muito mais radical’ como a verdadeira e única fonte do direito”.

Desse modo, o resultado é que, como prenunciava Schaeffer (1985, p. 77), a Suprema Corte: a) impõe leis sociológicas arbitrárias; b) cria novas leis e formula os pareceres que vinculam todas as interpretações legais; c) domina os dois outros poderes governamentais, solapando o princípio da tripartição dos poderes.

Resistência cristã

Em um dos documentos mais antigos do federalismo, em que se postulou a limitação estatal, Althusius (2003, p. 217) dizia que não é lícito aos administradores estatais ultrapassar os limites da lei. Quando esses assim o fazem deixam de ser ministros de Deus e se tornam pessoas privadas, “às quais não mais é devida a obediência naquilo que excederam os limites de seu poder".

Nesse sentido, é preciso que os cristãos resistam a esses avanços ideológicos que levam a uma crise estatal e a uma ditadura jurídica por parte dos tribunais. Consideram-se, assim, três pontos fundamentais apresentados:

Primeiramente, é preciso que se afirme que a linguagem humana tem algum grau de sentido objetivo que deve ser respeitado quando a lei é aprovada legislativamente. A hermenêutica não pode ser usada para relativizar e aprisionar o homem em uma espécie de “gabinete de espelhos das interpretações” (RATZINGER, 2007, p. 172).

Além disso, é essencial que os valores fundamentais, de influência judaico-cristã, que são base da sociedade moderna, sejam devidamente respeitados como previstos na Constituição porque garantem o mínimo de segurança jurídica, previsibilidade legal e imparcialidade que limitam os agentes estatais, e, também, porque são “propriedade de outros que ainda estão por nascer” (SCRUTON, 2015, p. 272).

Por fim, absolutizar as decisões judiciais que impõem uma agenda ideológica é, como ensinou Dooyeweerd (2015), considerar autossuficiente o que não é autossuficiente. Por isso, o Judiciário, que serve para controlar os outros poderes, deve também ser controlado para que não se permita a perpetuação de uma “ditadura jurídica moderna”.

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Referências bibliográficas:
ALTHUSIUS, Johannes. Política. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2003.
DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
LEWIS, C. S. A abolição do homem. – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
RATZINGER, Joseph. Fé, verdade, tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência, 2007.
RAZZO, Francisco. A imaginação totalitária: os perigos da política como esperança. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2016.
SCHAEFFER, Francis A. Manifesto Cristão. Refúgio Editora: Brasília, DF. 1ª ed, 1985.
SCRUTON, Roger. Como ser um conservador. 2 ed. – Rio de Janeiro: Record, 2015.

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Autor: Anderson Barbosa Paz é seminarista do Seminário Teológico Betel Brasileiro. Bacharelando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Congrega na Igreja Presbiteriana do Bairro dos Estados em João Pessoa-PB. Atua na área de Apologética Cristã, debatendo e ensinando.
Divulgação: Bereianos
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Pena de Morte

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Introdução

Este é um daqueles assuntos que sempre levantam controvérsias. Ainda me lembro do dia em que eu dava aula na Escola Bíblica Dominical na Igreja Presbiteriana de Russas – Ce, onde o assunto abordado era justiça na sociedade. O assunto da pena capital foi ventilado, então eu fiz a seguinte pergunta: “Quem aqui concorda com a pena de morte?” Isso foi suficiente para vermos os ânimos se acirrarem e opiniões das mais diversas serem colocadas.

Desfazendo Alguns Discursos Progressistas (Parte 2)

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Uma resposta ao artigo: Dez Coisas Que Você Jamais Poderia Votar a Favor Enquanto Segue a Jesusparte 8 – “Pena de Morte”.

O autor trabalha esse ponto com um grande problema teórico: Busca desenvolver argumentos contra a pena de morte, a partir de uma ética cristã, mas não apresenta nenhum baseado na mesma. Ora, a ética cristã, diferente da secular[1], não é apenas baseada na conduta humana, mas "harmoniza-se com um padrão absoluto, divino[2]". Se a ética cristã é baseada em um padrão divino, a consequência lógica é encontrar esse padrão onde ele foi revelado: As Sagradas Escrituras[3]. Com isso, é claro que, para uma ética cristã coerente, a revelação divina deve ser usada como base e padrão.

Para entender o que a Bíblia diz sobre o tema, analisemos três textos chaves, dois do Antigo Testamento e um do Novo Testamento[4]:

"Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem" - Gênesis 9.6

O versículo diz respeito ao pacto planejado, estabelecido e confirmado por Deus com Noé, que não exigia nenhum ato do mesmo para permanecer firme, pois foi imposto soberanamente pelo Senhor. Esse pacto tem duração eterna[5] e universal, pelo fato de ter sido feito com Noé e seus descendentes[6]. O arco-íris é a maior prova dessas qualidades citadas.

Não levantarás falso testemunho

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A famosa pergunta “O que é a verdade?” feita por Pilatos refletia um ceticismo exausto em relação a própria ideia de verdade ao invés de ser uma investigação filosófica séria, como muitos propõem. Quão trágico é que um homem confiado a resolver questões de vida e morte pudesse expressar uma atitude tão cínica. E quão diferente deveria ser a atitude dos cristãos, afinal Jesus os descreve como aqueles que “são da verdade” (João 18:37).

O valor supremo da verdade é evidenciado pelo nono mandamento: “Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo” (Ex. 20:16). O mandamento tem uma preocupação imediata com a verdade num contexto judicial. Deuteronômio 19:15-21 dá instruções sobre testemunhos num caso criminal. Uma testemunha apenas é insuficiente para estabelecer uma acusação, deve haver duas ou três (Deut. 17:6, Mat. 18:16, 2 Cor. 13:1, 1 Tim 5:19). Se há alguma dúvida em relação a integridade da testemunha, os juízes devem “investigar de forma diligente”, e se descobrem que ela é uma “falsa testemunha” (Em hebraico, eid-sheker, mesmo termo usado em Ex. 20:16), ela deve receber a mesma sentença que seria aplicada aquele que estava sendo acusado. Portanto, o perjúrio trazia consigo a possibilidade de pena de morte dentro da Lei Mosaica.

Uma das bases lógicas para a proibição do falto testemunho é que a justiça requer a verdade. Se esperamos que a justiça seja feita no Tribunal, todos os fatos relevantes ao caso devem ser feitos conhecidos, o que requer que todas as testemunhas falem “a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade”. Justiça significa que o acusado é devido a verdade, independentemente de ele ser inocente ou culpado. O oitavo e o nono mandamento estão intimamente conectados: levantar falso testemunho é uma forma de rouba, é reter de alguém algo que é seu por direito. Um princípio similar se aplica a difamação: manchar o nome de alguém inocente é como roubar algo precioso (Prov. 22:1; Ecl. 7:1).

É claro, o nono mandamento não está restringido aos tribunais. Como todo o resto das Escrituras deixa abundantemente claro, falar a verdade é um dever moral fundamental e a honestidade é uma virtude moral básica. Os justos são caracterizados pela veracidade (de fato, eles “amam a verdade” conforme Zac. 8:16,19), enquanto que os ímpios tem “lábios mentirosos” (Sl. 31:18, 120:2, Prov. 10:18, 12:22, Sl. 101:7, Prov. 12:17, Jer. 9:5, Ose. 4:1-2). Uma das maneiras pela qual amamos nosso próximo é falando a verdade (Ef. 4:15,25).

Porque falar a verdade é tão importante? Como sempre, na ética cristã, a resposta é fundamentalmente teológica. Deus é “o Deus da verdade” (Isa. 65:16). A veracidade é um atributo essencial de Deus e de Sua Palavra (Jo. 4:23-24, 14:17, 15:26, 16:13, 17:17; 2 Tim. 2:15; Tito 1:2; 1 Jo. 4:6, 5:6). Por outro lado, falar mentiras reflete o caráter de Satanás e aqueles que o seguem (Jo. 8:44; 1 Tim. 1:10; 1 Jo. 2:22; Apo. 21:8). Como fomos criados a imagem de Deus, designados a refletir sua semelhança, devemos falar a verdade da mesma forma que Deus o faz. O nono mandamento, não menos que o sexto mandamento, depende da doutrina imago Dei.

Apesar de a maioria dos Dez Mandamentos terem uma forma negativa (“Não…”), cada um deles tem uma aplicação tanto positiva quanto negativa. Guardar o nono mandamento não se trata simplesmente de uma questão de evitar declarações falsas. Como o Catecismo Menor de WestminsterPerguntas e Respostas 77 reconhece, o mandamento também requer que busquemos e promovamos ativamente a verdade em nossas relações com os outros.

Promover a verdade envolve muito mais do que apenas fazer afirmações verdadeiras, pois é possível induzir ao erro sem proferir uma única declaração falsa. Se eu fosse escrever um relatório sobre alguém, enfatizando suas falhas ao mesmo tempo que ignoro toda virtude e valor desse alguém, todas as afirmações do meu relatório seriam verdadeiras, mas tomando-o como um todo não seria algo que se encaixaria em “promover a verdade”. Promover a verdade significa dar uma representação justa e exata das coisas como elas são, mesmo quando isso vai contra os nossos próprios interesses. Da mesma forma, devemos falar a verdade com um grau adequado de precisão, não sendo vagos ou ambíguos, de tal forma que obscureceríamos a verdade por motivos de interesse próprio ou para evitar a responsabilidade de nossas palavras. Em suma, promover a verdade significa amar a verdade, não para o seu próprio bem, mas partindo de um amor sincero a Deus e ao próximo.

Em dias que a confiança em figuras públicas está cada vez mais baixa, em que os meios de comunicação não fazem diferença entre notícias e propagandas, e em que o pós-modernismo enterra o próprio conceito de verdade, é imperativo que os cristãos se separem da cultura que os envolve e que sejam distinguidos por sua honestidade, integridade e fidelidade. Devemos ser homens de palavra porque, precisamente, somos homens da Palavra de Deus.

“O que é a verdade?” é uma pergunta filosófica importante, apesar do cinismo de Pilatos. Mas uma pergunta ainda mais importante pode ser feita: “Quem é a verdade?”. O homem que permanecia diante de Pilatos já havia dado Sua resposta (Jo. 14:6). Se afirmamos conexão com Cristo, nossas relações com crentes e descrentes devem corroborar nossa confissão de fé. Só podemos testemunhar a Verdade de forma fiel se formos conhecidos por testemunhar a verdade.

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Autor: James Anderson
Fonte: Analogical Thoughts
Tradução: Erving Ximendes
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Ética e a pena de morte



Embora o texto [Gênesis 9.6] proíba terminantemente tirar a vida humana e ordene também terminantemente que se tire a vida de qualquer um que derrame sangue, podemos supor que a expressão é uma hipérbole e que o texto fala de tirar a vida de pessoas inocentes. Isso ocorre porque a Lei determina que se tire a vida de alguém em alguns casos, como homicídio doloso (Êx 21.12-16), mas não no caso de homicídio culposo, isto é, sem a intenção de matar (Nm 35.6-34).

O princípio da lei do talião (i.e., vida por vida) fica esclarecido nos mandamentos que Eu Sou dá ao povo da aliança acerca do homicida (Nm 35.16-21) e no ensino paulino sobre o cristão e o Estado. No caso de homicídio culposo, o condenado é banido para uma cidade de refúgio, não para uma penitenciaria, até a morte do sacerdote (Nm 35.22-28). No entanto, no caso de homicídio doloso, aquele cometido com intenção de matar, exige-se a pena de morte. No NT, os cristãos não devem se vingar por nenhum mal que venham a sofrer, mas deixar que a ira de Deus vingue esse mal (Rm 12.19). Por sua vez, Deus estabelece o governo como seu ministro, um vingador que executa a ira sobre aquele que pratica o mal (Rm 13.4). O Senhor e Rei supremo municia as autoridades públicas com a espada, o instrumento de morte, para o castigo do malfeitores. A lei que diz: "Quem derramar sangue de homem, terá seu sangue derramado pelo homem" (Gn 9.6) é prova de que, como ministros de Deus, as autoridades públicas têm a responsabilidade de executar a pena de morte no caso de crime de morte. Essa é uma obrigação, não uma opção. Deus diz três vezes: "Cobrarei" (Gn 9.5).

O sangue inocente derramado no caso de assassinato tem de ser compensador: Deus exige prestação de contas por esse sangue, porque ele é vingador (2Rs 9.26; Sl 9.12; Hb 12.24), mas os textos não especificam como. O sangue inocente contamina o culpado e é expiado pela morte do assassino (1Rs 2.32) ou mediante propiciação (Dt 21.7-9). Mesmo no caso de homicídio culposo, o homicida não pode ser posto em liberdade antes da morte do sumo sacerdote. Se o sangue inocente não for expiado, Deus trará condenação à terra (Dt 19.13; 2Sm 21; 1Rs 2.5, 6, 31-33). Se a pessoa que derramar sangue inocente não for castigada, a comunidade que se recusa a estabelecer a justiça será castigada por esse sangue derramado. Por causa do valor que tem a vida humana, por levar a imagem de Deus, e por causa da justiça exigida por derramar sangue inocente, Deus outorga à humanidade a autoridade judicial de impor a pena de morte. Isso demonstra mais uma vez que ele designou a raça humana para governar essa terra em seu nome. Essa autoridade é a base do governo organizado (Rm 13.1-7). Deus institui o lar antes da Queda, para criar uma sociedade em que o amor pode prosperar. Após o diluvio, ele institui o Estado para evitar o crime. Nahum M. Sarna diz: "A destruição do antigo mundo requer o repovoamento da terra e a correção dos males que trouxeram o Dilúvio. Dai por diante, a sociedade tem de estar firmada em bases morais mais seguras".

A lei tinha o cuidado de proteger quem era acusado falsamente. Eram necessárias pelo menos duas ou três testemunhas para se condenar alguém por um crime (Dt 19.15). Se uma testemunha cometesse perjúrio, o juiz responsável pelo processo deveria impor ao perjuro o mesmo que este pretendia fazer com o acusado, até mesmo a vida pela vida (Dt 19.16-21). Por fim, as próprias testemunhas tinham de participar da execução (Dt 17.2-7).

Entretanto, o assassino  que se arrepende de verdade de seu crime, deve ser tratado com misericórdia (Pv 28.13). Embora tenha tirado a castidade de Bate-Seba e assassinado o marido dela, Davi experimentou perdão com base nos atributos divinos e sublimes da graça, do amor inesgotável e da misericórdia (2Sm 12.13-14; Sl 51). O sangue de Cristo fez a propiciação definitiva por todos os pecados de todos os seus eleitos (Hb 7.23-28).

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Autor: Bruce K. Waltke
Fonte: WALTKE, K. Bruce. Teologia do Antigo Testamento: uma abordagem exegética, canônica e temática. São Paulo: Vida Nova, 2015, p.343-4. Adquira aqui!
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Litígio - Disputa entre irmãos na Fé

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Por Rev. Fernando de Almeida


O caso de Corinto - 1Coríntios 6.1-8


A cultura de nosso país tem mudado bastante de algumas décadas para cá no que tange a reivindicação dos direitos. Por pequenas coisas ações são movidas e existe uma infinidade de siglas que traduzem a amplitude do direito do cidadão. Por causa disso, as próprias empresas prestadoras de serviços criaram órgãos internos para atenderem seus clientes, as ouvidorias ou então o trabalho de um ombudsman.

De tanta ênfase que se tem dado ao direito individual não será possível que preceitos ainda mais importantes que esse sejam colocados de lado? Vamos estudar hoje como a busca pelo direito pode atrapalhar a comunhão da igreja.

Ganância disfarçada de justiça

É bastante comum ouvirmos de crentes que tem disputas contra outros a seguinte declaração: “Só desejo que a justiça seja feita”. Existe, porém, muitas afirmações bíblicas que nos fazem desconfiar das verdadeiras intenções humanas. Segundo a Palavra de Deus, o coração humano é desesperadamente corrupto (Jr 17.9); os nossos projetos e até pensamentos estão distantes do que Deus planeja em sua santidade (Pv 16.1; Is 55.8-9); e que há pecados praticados que passam desapercebidos de nossas consciências viciadas (Sl 19.12).

Por causa dessa tramoia que nossa carne prega é que foi tão importante para a Igreja de Corinto ser confrontada com as intenções reais de se contestar alguém na justiça comum. O que geralmente se busca com essa atitude senão uma compensação financeira por um suposto dano sofrido? Vê-se, então, que a “sede de justiça” nada mais é do que uma máscara para disfarçar um profundo amor ao dinheiro e desejo de vingança.

Há, portanto, no direito inato de todo cidadão (de usar a justiça comum quando se sentir prejudicado de alguma forma) uma série de quebras dos mandamentos de Deus e dentre esses, a constante busca pelo bem do próximo; um princípio muito mais importante que a procura pelo dinheiro ou o desejo de vingança.

Jesus disse que deveríamos fazer o bem até mesmo aos nossos inimigos bem como amá-los, bendizê-los e orar por eles (Lc 6.27-28). Tiago rumina essa ideia lembrando que devemos amar o próximo como a nós mesmos sem qualquer acepção de pessoas (Tg 2.8-9), ou seja, sem mesmo levar em consideração se o próximo é um crente ou um ímpio. Talvez por isso Paulo tenha apresentado um caso tão abrangente em nosso texto básico: “Atreve-se algum de vós, tendo negócio contra outro…” (1Co 6.1) Ele não especifica se esse “outro” é crente ou não[1] porque não vem ao caso; a regra é a mesma.

Seria possível aos coríntios acionar a justiça dos ímpios sem quebrar o mandamento acima? Será que algum dia encontraremos alguém que diga: “Meu irmão eu amo você em Jesus por isso já perdoei sua ofensa em meu coração mas mesmo assim vou entrar na justiça para requerer uma compensação em dinheiro”. Seria isso coerente?

Paulo começa o versículo com o verbo “atrever”. De fato, esse falso desejo por justiça é uma tremenda arrogância, atrevimento e audácia. É como se Paulo dissesse: “Como alguém que se diz crente pôde ter coragem de fazer algo assim?”

A suficiência da Igreja

O final do primeiro verso de 1 Coríntios 6, apresenta uma indignação da parte do apóstolo Paulo pelo fato de o caso controverso ter sido apresentado “aos injustos e não perante os santos” (1Co 6.1). Essa mesma repulsa é confirmada no verso 6: “Mas irá um irmão a juízo contra outro irmão, e isto perante incrédulos!” (1 Co 6.6).

Um cristão deveria ter a consciência (“ou não sabeis… [v.2]) que a atitude mais sensata diante de uma controvérsia na igreja era procurar irmãos na fé e não os ímpios.

Para vergonha vo-lo digo. Não há, porventura, nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da irmandade?” (1 Co 6.5). Essa declaração indica que até mesmo um único cristão, com uma mente cristão madura, já seria suficiente para intermediar qualquer disputa. Aliás, embora apareça muitas vezes a palavra “julgar” nesse texto, o espírito do significado está muito mais ligado a “mediação” do que “julgamento”. Nas questões terrenas podemos ser mediadores uns dos outros e assim cumprirmos a bem-aventurança que nos manda ser pacificadores (Mt 5.9).

Em uma certa igreja, dois irmãos na fé eram sócios em um negócio. Depois de um certo tempo de sociedade acharam por bem dissolvê-la mas não conseguiram acordar em que termos isso se daria. Imbuídos de sabedoria, levaram o caso ao conselho da igreja e após exporem cada um a sua versão pediram que aqueles líderes se pronunciassem (mediassem) a respeito e a opinião dada seria acatada por ambos. Assim foi feito. Um ou o outro talvez não tenha recebido o tanto que gostaria mas com certeza ambos puderam sentir paz com a decisão tomada.

A união que existe na igreja de Cristo deveria torná-la em um fórum suficiente para os irmãos resolvem seus problemas. As instâncias da justiça comum “não têm nenhuma aceitação na igreja” (1Co 6.4b), ou seja, de nada valem para a igreja. A “justiça dos homens” recentemente nos deu um exemplo claro disso ao proibir pais de imporem castigos físicos aos seus filhos. Essa mesma justiça tem autorizado o aborto, desconsiderado o adultério como crime e está em vias de não só aceitar a união civil homossexual mas também capacitá-los a adoção. De fato, a justiça humana nada tem a ver com a justiça de Deus e por causa dessa diferença abismal que os apóstolos disseram: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens.” (At 5.29b).

Os coríntios são lembrados por Paulo a respeito do papel que os crentes ocuparão na vida eterna. “O absurdo da situação em Corinto torna-se mais claro quando a pessoa reconhece que, na consumação da história (mas não antes; 5.12,13), os crentes participarão, juntamente com Cristo, no julgamento não somente dos incrédulos, mas também dos anjos. Até o menos qualificado entre os crentes de Corinto estava em melhor posição do que um incrédulo para arbitrar disputas na igreja local.” [2]

O Testemunho diante do mundo

Levando as questões internas a justiça comum, os coríntios estavam literalmente lavando suas roupas sujas em público. Segundo Paulo, esse comportamento da comunidade cristã se traduzia em uma “completa derrota” (1Co 6.7). Primeiro por causa da evidente falta de amor cristão recíproco e segundo, por causa do testemunho cristão: em vez de a igreja julgar os valores do mundo o inverso é que se dá. O mundo tem que interferir na convivência da igreja para que esta tenha paz. De fato, a igreja tem que se sentir derrotada com isso.

Simon Kistemaker escreveu com bastante propriedade: “Para Paulo, o propósito do Cristianismo é permear o mundo todo, influenciá-lo e mudá-lo de acordo com as normas do evangelho. Mas Paulo nota que em Corinto está acontecendo o contrário. O mundo está penetrando na comunidade cristã para amoldá-la aos padrões do mundo. Prova disso é a questão das disputas que não são resolvidas dentro dos limites da comunidade cristã, mas levadas diante de juízes mundanos. Os irmãos cristãos que levam suas causas para não-cristãos estão tornando a igreja um motivo de galhofa no mundo gentio.” [3] Na ânsia de derrotar um outro irmão a fim de obter vantagem, essa pessoa derrotava a si mesma como parte do corpo de Cristo.

Aquilo que é mais valioso

A prova maior de que os coríntios litigiosos estavam negligenciando o amor se evidenciava no fato de não perceberem que “pessoas” é melhor do que “coisas” e “o bem do Corpo" (igreja) é melhor do que “satisfação pessoal”.

A Unidade da Igreja é mais importante do que o sofrimento pela injustiça.

Paulo questiona os coríntios: “Por que não sofreis, antes, a injustiça?” (1Co 6.7b). Diante da vergonha que é para a igreja a desunião de seus membros ao ponto de um acionar o outro na justiça comum, Paulo pergunta: “Por que não é preferível ser tratado injustamente? Jesus salientou bem que quando alguém impingisse injustiça ao crente este deveria conformar-se e alegrar-se: “Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra; e, ao que tirar a tua capa, deixa-o levar também a túnica; dá a todo o que te pede; e, se alguém levar o que é teu, não entres em demanda.” (Lc 6.29-30). A Palavra de Deus nos autoriza protegermos nosso patrimônio (afinal somos mordomos de Deus) mas não ao ponto de amarmos mais as posses do que nossa própria vida, a do próximo ou o próprio Deus. Se o crente não tem coragem de dispor do que tem então é porque nisso está seu coração. A história do encontro de Jesus com o jovem rico ilustra bem isso (Mc 10.17-22). 

A Unidade da Igreja é mais importante do que o sofrimento pelo prejuízo.

A segunda pergunta de Paulo foi: “Por que não sofreis, antes, o dano?” (1Co 6.7b); ou seja: “Não seria melhor ficar com o prejuízo?” (NTLH). A injustiça agora revela-se em prejuízo.

Ninguém melhor do que Paulo para falar de abnegação. Se você pudesse fazer uma meça da vida financeira de Paulo antes e depois de sua conversão, você saberia dizer se Paulo se tornou mais rico ou mais pobre? A Bíblia não trata desse assunto mas em mais de uma oportunidade ele confessa que já teve experiência de fome e escassez (Fp 4.12) bem como prisões, perigos, naufrágios, trabalhos, fadigas, sede, frio e nudez (2Co 11.24-27).

A igreja é o Reino de Deus visível nesse mundo caído. O Reino de Deus não tem preço, por isso, ele é comparado a uma pérola de grande valor ou a um campo com um tesouro. Os coríntios deveriam por tudo de lado em favor da preservação da igreja de Deus da mesma forma que um colecionador de pérolas vende todas que tem para comprar a mais valiosa (Mt 13.45,46) ou alguém que achando um tesouro vende tudo o que tem para comprar o campo no qual esse tesouro se encontra (Mt 13.44).

Conclusão

De acordo com a exortação de Paulo a comunhão do Corpo de Cristo é mais importante que qualquer coisa. Para esse fim devemos suportar, então, injustiças pessoais e até mesmo sermos roubados.

Nisso se manifesta o testemunho do cristão pois é bastante incomum um ímpio abrir mãos de bens materiais em detrimento de outras pessoas; somente com Cristo na direção de nossa vida isso pode ser possível.

Por outro lado, se preferirmos contender a abrir mão é porque ainda não entendemos o espírito do Evangelho e do próprio ministério de nosso Redentor Jesus Cristo.

Nem sempre as contendas entre os membros da igreja chegam aos tribunais mas nem por isso elas são menos prejudiciais à união da igreja. Tendo isso em conta, procure em seu coração as desavenças pendentes e tome a decisão de consertá-las sempre com o espírito de abrir mão do que por direito deveria ser seu. Se preciso chame o pastor ou qualquer outro líder sábio (1Co 6.5) para ser o mediador.

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Notas:
[1] A maioria dos estudiosos entende que a contenda que Paulo tinha em mente se deu entre dois crentes membros da igreja de Corinto.
[2] Bíblia de Genebra, comentário a 1Coríntios 6.2-5
[3] Simon  J. Kistemaker,  1 Coríntios,  São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p.251.

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Sobre o autor: Rev. Fernando de Almeida é Ministro Presbiteriano e capelão da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano "Rev. José Manoel da Conceição"; Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília; Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando em Letras. Escritor de revistas para Escola Dominical pela Editora Cultura Cristã.

Fonte: Reflexões Bíblicas
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