O autor trabalha esse ponto com um grande problema teórico: Busca desenvolver argumentos contra a pena de morte, a partir de uma ética cristã, mas não apresenta nenhum baseado na mesma. Ora, a ética cristã, diferente da secular[1], não é apenas baseada na conduta humana, mas "harmoniza-se com um padrão absoluto, divino[2]". Se a ética cristã é baseada em um padrão divino, a consequência lógica é encontrar esse padrão onde ele foi revelado: As Sagradas Escrituras[3]. Com isso, é claro que, para uma ética cristã coerente, a revelação divina deve ser usada como base e padrão.
Para entender o que a Bíblia diz sobre o tema, analisemos três textos chaves, dois do Antigo Testamento e um do Novo Testamento[4]:
"Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem" - Gênesis 9.6
O versículo diz respeito ao pacto planejado, estabelecido e confirmado por Deus com Noé, que não exigia nenhum ato do mesmo para permanecer firme, pois foi imposto soberanamente pelo Senhor. Esse pacto tem duração eterna[5] e universal, pelo fato de ter sido feito com Noé e seus descendentes[6]. O arco-íris é a maior prova dessas qualidades citadas.
O pacto também é claro: Se o homem tirar a vida de outro homem, ele deverá pagar com sua própria vida, e a justificativa para isso é a de que o homem foi criado à imagem de Deus. A passagem, então, justifica claramente o motivo pelo qual a pena capital é bíblica e legítima: O homem foi criado à imagem de Deus, e isso o torna tão valioso que matar outro ser humano é destruir alguém que porta a imagem de Deus, o criador e doador da vida, e que, portanto, tal ato deve ser pago com a morte.
Tal versículo também nos dá um ensinamento prático: Quando dizemos que a pena de morte não é válida e nem bíblica, negamos a importância da imagem de Deus no homem, e isso só pode demonstrar nossa falta de entendimento em relação à santidade e dignidade de Deus[7], o doador da imagem.
"Não matarás" - Êxodo 20.13
Muitos cristãos sinceros usam esse versículo para ir contra a pena de morte. Ele é um dos dez mandamentos dados por Deus e, como o artigo buscará mostrar, tem duração eterna, então é extremamente necessária uma interpretação correta do mesmo. Antes de entrarmos na interpretação do versículo em si, devemos compreender alguns princípios para se interpretar o decálogo[8].
O primeiro princípio é entender que não devemos apenas interpretar o que está explícito no texto bíblico, mas que as implicitações do mesmo também foram reveladas por Deus e era parte da vontade Dele que as interpretássemos. Muitas doutrinas da teologia ortodoxa cristã não estão totalmente explícitas nas Escrituras, mas são inferidas implicitamente dos textos bíblicos, como a Trindade. O segundo princípio é entender que todo mandamento tem um aspecto positivo e um aspecto negativo: ao mesmo tempo em que proíbe uma ação, incentiva a fazer outra (por exemplo, o oitavo mandamento, "Não roubarás": ao mesmo tempo que proíbe o roubo, incentiva a proteção da propriedade. Esse método hermenêutico, aplicado ao sexto mandamento, proíbe, como veremos, o assassinato, mas, ao mesmo tempo, incentiva a proteção da vida).
O terceiro princípio diz respeito à aplicabilidade universal dos mandamentos. O princípio representado por eles não deve ser efetivado apenas em uma esfera individual, mas é nosso dever buscar com que os outros também o sigam. Por último, Greg Bahnsen[9] nos apresenta um princípio interpretativo com relação ao Novo Testamento: A menos que o Novo Testamento altere ou ab-rogue com clareza[10] uma lei do Antigo Testamento, essa lei continua vigente.
Entendendo esses princípios, nosso dever agora é entender o significado da palavra "matar" no versículo. A palavra hebraica usada neste mandamento não é a palavra usual para "matar" (harag). A palavra usada é o termo específico para "assassinar" (rasah). Uma tradução mais correta seria "não assassinarás". John Frame[11] comenta que essa palavra pode se referir também a:
"matar de forma ilegal ou proibida. Não é empregado com referência à morte de animais nem a causar a morte na guerra. Este fato sugere que a melhor tradução aqui é 'assassinar', não 'matar', que tem uso mais geral. Contudo, o verbo difere do inglês 'assassinar' ('murder') no sentido de que rasah se aplica ao homicídio casual e premeditado".
Com isso, é claro que o mandamento não vai contra a autodefesa e, principalmente, a pena de morte. Muitos podem afirmar que o princípio do versículo não é mais válido hoje, pelo fato dele ter sido escrito enquanto Israel era uma teocracia, e que isso foi ab-rogado na Aliança estabelecida por Cristo, porém essa visão demonstra uma falta de entendimento a respeito da natureza da lei de Deus no Antigo Testamento.
A lei de Deus pode ser distinguida em três formas principais: Cerimoniais ou religiosas, civis e morais. As leis religiosas ou cerimoniais são ordenanças levíticas que buscavam diferenciar o povo de Israel, que servia o verdadeiro Deus, das outras nações pagãs e também apontavam para o Messias prometido, sendo ab-rogadas no Novo Testamento, não havendo mais motivo para a permanência das mesmas, pois eram sombras da obra Messiânica[12]. As leis civis eram as ordenanças judiciais dadas ao povo de Israel e que, por isso, não são mais válidas hoje[13] A lei moral "tem a finalidade de deixar bem claro ao homem os seus deveres, revelando os seus pecados e auxiliando-o a discernir entre o bem e o mal"[14], tendo validade eterna, pois veio de Deus, o Senhor, que não muda[15].
Entretanto, como afirma John Jefferson Davis, "A ab-rogação dos elementos específicos da aliança mosaica (e. g., a circuncisão, as leis alimentícias, o sacrifício de animais), quanto à Igreja do Novo Testamento, não afetam necessariamente os princípios morais e legais dados por meio de Noé"[16]. Isso porque o próprio Jesus disse que não veio para abolir a lei, mas para cumpri-la[17]. Ron Gleason afirma que:
"Claramente - porque Jesus o disse duas vezes - ele não veio abolir a lei de Deus, mas cumpri-la. Qualquer nuança que você coloque na palavra "cumprir", não pode significar "abolir", visto que Jesus reiterou sua afirmação, dizendo duas vezes que não veio abolir a Lei."[18]
O mesmo, ao comentar o mandamento em questão, afirma:
"Os cristãos que asseveram proibir o sexto mandamento todo homicídio ou, ainda de modo mais específico, que de algum modo esse mandamento proíbe a pena de morte, lamentavelmente perderam de vista a tese bíblica. O sexto mandamento de fato proíbe que indivíduos tomem a lei em suas mãos e matem por ódio, lucro, vingança ou por querer ajustar as contas com as próprias mãos por males acaso sofridos. Todavia, o sexto mandamento não proíbe, de modo nenhum, o Estado de levar à justiça os assassinos por meio da pena capital"[19].
Portanto, é claro que o mandamento não proíbe todo e qualquer tipo de morte – e sim o assassinato – e interpretá-lo de outra forma demonstra falta de conhecimento bíblico e ingenuidade interpretativa.
"Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência" - Romanos 13.1-5
A execução da pena, por conseguinte, não deve ser deixada aos juízos pessoais dos seres humanos, ou a sentimentos baseados em vingança, mas Deus cuidou em dar poder a autoridades para aplicá-lo. O texto indica com clareza que o Estado porta a "espada", e que não é sem motivo: sua autoridade foi dada pelo Senhor, dono da autoridade suprema. No Novo Testamento, o termo "espada" é associado, muitas vezes, a execução e morte[20], e fica claro no texto, portanto, que o termo está se referindo também à pena capital. O próprio Apóstolo Paulo, em Atos 25.11, indica que haviam delitos para os quais a pena de morte era aprovada, e o próprio não oferecia resistência para recebê-la de forma justa.
Muitos cristão na época atual parecem pensar que a separação entre Igreja e Estado quer dizer, ao mesmo tempo, separação entre Deus e Estado. A Bíblia rejeita veementemente essa afirmação, pois Deus é Senhor e governa sobre tudo e todos e, como vimos, é do poder dele que deriva o poder dos magistrados. Como bem fala Ron Gleason, "Deus é soberano sobre todos os Estados, mesmo quando estes tentam se separar dele e de sua autoridade"[21].
Negar a pena de morte, portanto, é ir contra os mandamentos de Deus, diminuir a importância da imagem de Deus no homem e, consequentemente, a dignidade do próprio Deus e invalidar tudo o que o Senhor falou a respeito do poder dos magistrados em sua revelação. Deus abençoe a pena capital! Amém!
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Notas:
[1] Por “ética secular”, pretendo me referir a toda ética que seja distinta da ética cristã.
[2] GLEASON, Ron. Vida por vida: a pena de morte no banco dos réus. Brasília, DF: Editora Monergismo. 2014, p. 20
[3] A definição de "Escrituras", no Novo Testamento, é, na maioria das vezes, o conjunto de escritos judaicos dotados de autoridade divina (cf. Mateus 21.42, Mateus 22.29, Atos 17.2) que, na tradição cristã, compõem o Antigo Testamento. Se aos judeus foram confiados os "oráculos de Deus" (Romanos 3.1-2 na versão Almeida Revista e Atualizada) ou "as palavras de Deus" (Romanos 3.1-2 na versão Almeida Corrigida e Fiel), devemos dar crédito ao cânon antigo feito por eles. Em suas cartas, entretanto, o Apóstolo Paulo dá, também, autoridade divina a escritos do Novo Testamento (cf. 1 Timóteo 5.18 com Lucas 10.7) e o Apóstolo Pedro classifica as cartas de Paulo como divinas, ao lado dos escritos do Antigo Testamento (2 Pedro 3.16). Para mais informações a respeito desse tema, conferir “Introdução Bíblica: Como a Bíblia chegou até nós”, de Norman Geisler e William Nix.
[4] É importante partirmos do pressuposto de que há uma linha de continuidade entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, porém esse é um assunto que não é destinado a esse artigo. Para uma introdução, cf. João Calvino, "A Instituição da Religião Cristã", Tomo I, Livro Segundo, caps. X e Xi, p. 406-440.
[5] Gênesis 9.12, 16
[6] Gênesis 9.9-11
[7] João Calvino trabalhará conceitos semelhantes a respeito do conhecimento de Deus e de nós mesmos em sua Institutas da Religião Cristã, Livro 1, Cap. 1.
[8] Tais princípios podem ser encontrados, de forma resumida, em OLIVEIRA, Lucio Antônio de. Práticas essenciais da Piedade. Uberlândia: Não publicado.
[9] BAHNSEN, Greg. By This Standard. Tyler, TX.: I.C.E., 1985 in GLEASON, Ron. Vida por vida: a pena de morte no banco dos réus. Brasília, DF: Editora Monergismo. 2014, p. 40.
[10] Este, entretanto, é um princípio discutível. Há teólogos bíblicos que dizem ser preciso apenas que se cesse a necessidade de uma lei antiga ou que ela seja substituída tacitamente por outro padrão de conduta, porém esse não é um assunto que o artigo pretende discutir.
[11] FRAME, John. The Doctrine of Christian Life. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 2008 in GLEASON, Ron. Vida por vida: a pena de morte no banco dos réus. Brasília, DF: Editora Monergismo. 2014, p. 56.
[12] Hebreus 10.1-7
[13] É relevante citar a visão teonômica, dividida, principalmente, entre Reconstrucionistas e Covenanters, que defende a validade da lei civil para os dias de hoje. Como a discussão a respeito desse ponto fugiria ao tema principal, para uma boa introdução, cf. Kenneth L. Gentry Jr., "A lei de Deus no mundo moderno".
[14] FERREIRA, Franklin e MYATT, Alan. Teologia Sistemática. São Paulo: Edições Vida Nova, 2007, p. 462.
[15] Malaquias 3.6
[16] DAVIS, John Jefferson. Evangelical Ethics. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 2003 in GLEASON, Ron. Vida por vida: a pena de morte no banco dos réus. Brasília, DF: Editora Monergismo. 2014, p. 45.
[17] Mateus 5.17-20.
[18] GLEASON, Ron. Vida por vida: a pena de morte no banco dos réus. Brasília, DF: Editora Monergismo. 2014, p. 43.
[19] GLEASON, Ron. Vida por vida: a pena de morte no banco dos réus. Brasília, DF: Editora Monergismo. 2014, p. 57.
[20] Conferir, a título de exemplo, Atos 12.2 e Hebreus 11.34.
[21] GLEASON, Ron. Vida por vida: a pena de morte no banco dos réus. Brasília, DF: Editora Monergismo. 2014, p. 38.
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Autor: Nathan Falcucci
Divulgação: Bereianos
Leia também: Desfazendo Alguns Discursos Progressistas (Parte 1)
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