Recentemente o empresário Felipe Neto e o Pastor/Deputado Marco Feliciano debateram sobre algumas questões de extrema relevância para a atualidade. O primeiro assunto debatido foi sobre o homossexualismo, que nas palavras de Felipe Neto, “é o assunto em pauta do século”.
Felipe Neto corretamente aponta a falta de uniformidade teológica no meio evangélico brasileiro, bem como a seletividade na aplicação de textos bíblicos por parte dos cristãos, demonstrando de forma eficaz contradições internas na teologia do Pr. Feliciano (p. ex. a questão das mulheres como pastoras).
No debate, foi aludido a 1Co. 6.9 como um texto que demonstra que relações do mesmo sexo são tratadas como pecado na Bíblia, ao que Felipe Neto, citando a palavra grega (e não hebraica!) “malakoí” (traduzida em algumas versões como “efeminados”) diz que o termo significa “devasso”, não se referindo explicitamente ao homossexualismo.
O propósito deste texto não é defender nenhum dos dois debatedores em questão, mas sim demonstrar que “malakoí” (em 1Co. 6.9) claramente se refere a prática homossexual.
“Malakoi” em 1Coríntios 6.9-10
No capítulo 6 dessa carta, Paulo critica o litígio no meio da igreja de Corinto. Nos versos em questão (9-10) Paulo fala sobre aqueles que não herdarão o reino de Deus (dentro da escatologia inaugurada de Paulo, reino de Deus nesse texto em específico se refere ao futuro e consumado reino vindouro de Deus). Paulo já havia feito um “catálogo” negativo com 6 elementos em 1Co. 5.9-11 (impuro, avarento, idólatra, maldizente, beberrão, roubador) adicionando agora mais 4, totalizando 10 (adúlteros, homossexuais passivos e ativos e ladrões).
Os termos devassos (impuros), idólatras, adúlteros, avarentos, bêbados, maldizentes e roubadores são claros e não precisam de um comentário aqui. O problema está nas duas palavras traduzidas tradicionalmente como “efeminados” (μαλακοὶ) e “sodomitas” (ἀρσενοκοῖται).
Μαλακός fora de um contexto sexual significa “leve” e é traduzido como “brando” (γλῶσσα δὲ μαλακὴ συντρίβει ὀστᾶ, Prov. 25.15 LXX), e também como “fino” (roupas finas em Mt. 11.8).
Na literatura helenística do período romano pode significar efeminado quando se referindo a homem (Dio Chrysostom, 49 [66]; Diogenes Laertius, 7: 173).
Em 1Co. 6.9, sua relação sintagmática com ἀρσενοκοῖται influencia sua extensão semântica. Este último é a forma mais antiga desse adjetivo composto, não tendo uma pré-história lexicográfica. Entretanto, os estudiosos estão em acordo que seus componentes significam “dormir com” ou “ter relações sexuais com” (κοῖτης) “homens” (ἄρσην – macho [substantivo]; ἀρσενικός – macho [adjetivo]). Ambos os termos receberam um intenso escrutínio lexicográfico, mas infelizmente nosso espaço aqui não nos permite tal mapeamento.
Em geral, há um amplo consenso que μαλακοί em 1Co. 6.9 significa “um parceiro passivo em uma relação homossexual entre homens”. Devemos considerar esses dois termos em relação um com o outro para não entrarmos num ambiente especulativo. Esses dois termos se referem ao relacionamento homossexual entre um parceiro mais passivo (μαλακοί) e um mais ativo (ἀρσενοκοῖται), sem fazer referência específica à pederastia (conforme Scroggs) nem a prostituição (conforme Boswell). Mesmo esses dois estudiosos acima que defendem traduções diferentes, concordam que ἀρσενοκοῖται significa “deitar na cama com outro homem”, expressão que ocorre em Levítico 18.22:
Scroggs afirma que “o hebraico é traduzido fielmente”, e que também “partes desse composto grego aparecem na versão Septuaginta das leis em Levíticos” e na discussão legal rabínica “deitar com um homem (mishkav zakur) é o termo mais usado para descrever a homossexualidade entre homens” (Scroggs, The New Testament and Homosexuality, 107, n. 10.).
Entretanto, como corretamente pontua Anthony Thiselton em seu magistral comentário de 1Coríntios, a questão não é se podemos traçar um link entre Lv. 18.22 e 1Co. 6.9, mas se a visão de Paulo sobre o Antigo Testamento se origina totalmente através de lentes de recontextualização judaico-helenística em termos de uma sociedade greco-romana, ou se ele interpreta o AT como Escritura cristã oferecendo paradigmas diretos para o estilo de vida e para a ética do povo de Deus como uma identidade corporativa (Thiselton, 2000; p.450; esta última opção é a mais coerente).
Outro ponto que ajuda a lançar luz sobre o texto, é a cuidadosa análise estrutural de 1Co. 6.9-20 feita por Kenneth Bailey. Ele argumenta que 6.9-20 constitui uma cuidadosa construção de 5 parágrafos em que (a) os 5 pecados sexuais listados se referem aos caps. 5 e 6.12-20 e (b) os outros 5 se referem a questões como comida e bebida (cf. 1Co. 11.17-34). A condenação de um tipo de pecado não tem prioridade sobre os outros. Todos dizem respeito ao corpo. Ainda sim, cada subcategoria dentro desses dois grupos possui sua importância (Bailey, “Paul’s Theological Foundation,” 27-29). Bailey argumenta que todas as falhas sexuais estão relacionadas à idolatria. Nas quatro que são expressas com ações, duas são direcionadas aos heterossexuais (adultério (para os casados) e relacionamentos ilícitos (para os solteiros?)), e duas para os homossexuais (um aplicando à função passiva e outro à ativa). Não podemos ter certeza da precisão dos argumentos de Bailey, mas certamente eles acrescentam um impressionante peso cumulativo aos demais argumentos que demonstram que o homossexualismo é visto explicitamente como pecado em 1Co. 6.9.
Algumas conclusões reflexivas sobre 1Co. 6 e o homossexualismo
1. Em um catálogo com dez disposições que alcançam ações habituais no domínio público, apenas duas se referem a relacionamentos do mesmo sexo, e esses não recebem nenhuma ênfase adicional em relação aos outros oito (Thiselton). Considerações são feitas sobre desejos ilícitos heterossexuais e de aumento de poder e posses da mesma forma que são feitas sobre os relacionamentos do mesmo sexo (não estou defendo uma visão igualitária do pecado, apenas demonstrando algo específico desse texto).
2. As declarações que dizem que as questões homossexuais não são questões tratadas pela Bíblia são no mínimo confusas. Ao contrário do que Felipe Neto disse, Romanos 1.18-32 se refere claramente a relacionamentos do mesmo sexo, bem como o texto brevemente analisado aqui. Jesus apela para Gênesis 1.27 (‘homem e mulher os criou’) e 2.24 (‘o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne’), em suas observações sobre divórcio e recasamento em Marcos 10.6-9 e Mateus 19.4-6, mostrando a importância do pré-requisito de homem e mulher para o casamento, implicando assim, que não só a poligamia é algo ilícito, mas também o homossexualismo.
3. Devido à distância entre os séculos I e XXI, alguém pode questionar se a questão Bíblica é comparável com a questão nos nossos dias. Quanto mais os estudiosos examinam a sociedade greco-romana e o pluralismo de suas tradições éticas, mais a situação em Corinto parece ressoar a nossa. Portanto são duas situações comparáveis, ainda mais para um cristão que crê que a Bíblia é a palavra de Deus e se aplica a todas as gerações.
Paulo parece retornar ao AT como fonte de uma ética distinta para um povo distinto (os cristãos), interpretando à luz do evento-Cristo. A conexão entre 1Co. 6.9-10 e Rm. 1.26-29 e seu background veterotestamentário endossam que a idolatria, isto é, a pretensa autonomia humana construindo o valor de alguém acima de um compromisso pactual com Deus, leva a um colapso de valores morais em um tipo de efeito dominó (Thiselton).
***Felipe Neto corretamente aponta a falta de uniformidade teológica no meio evangélico brasileiro, bem como a seletividade na aplicação de textos bíblicos por parte dos cristãos, demonstrando de forma eficaz contradições internas na teologia do Pr. Feliciano (p. ex. a questão das mulheres como pastoras).
No debate, foi aludido a 1Co. 6.9 como um texto que demonstra que relações do mesmo sexo são tratadas como pecado na Bíblia, ao que Felipe Neto, citando a palavra grega (e não hebraica!) “malakoí” (traduzida em algumas versões como “efeminados”) diz que o termo significa “devasso”, não se referindo explicitamente ao homossexualismo.
O propósito deste texto não é defender nenhum dos dois debatedores em questão, mas sim demonstrar que “malakoí” (em 1Co. 6.9) claramente se refere a prática homossexual.
“Malakoi” em 1Coríntios 6.9-10
“Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus”
No capítulo 6 dessa carta, Paulo critica o litígio no meio da igreja de Corinto. Nos versos em questão (9-10) Paulo fala sobre aqueles que não herdarão o reino de Deus (dentro da escatologia inaugurada de Paulo, reino de Deus nesse texto em específico se refere ao futuro e consumado reino vindouro de Deus). Paulo já havia feito um “catálogo” negativo com 6 elementos em 1Co. 5.9-11 (impuro, avarento, idólatra, maldizente, beberrão, roubador) adicionando agora mais 4, totalizando 10 (adúlteros, homossexuais passivos e ativos e ladrões).
Os termos devassos (impuros), idólatras, adúlteros, avarentos, bêbados, maldizentes e roubadores são claros e não precisam de um comentário aqui. O problema está nas duas palavras traduzidas tradicionalmente como “efeminados” (μαλακοὶ) e “sodomitas” (ἀρσενοκοῖται).
Μαλακός fora de um contexto sexual significa “leve” e é traduzido como “brando” (γλῶσσα δὲ μαλακὴ συντρίβει ὀστᾶ, Prov. 25.15 LXX), e também como “fino” (roupas finas em Mt. 11.8).
Na literatura helenística do período romano pode significar efeminado quando se referindo a homem (Dio Chrysostom, 49 [66]; Diogenes Laertius, 7: 173).
Em 1Co. 6.9, sua relação sintagmática com ἀρσενοκοῖται influencia sua extensão semântica. Este último é a forma mais antiga desse adjetivo composto, não tendo uma pré-história lexicográfica. Entretanto, os estudiosos estão em acordo que seus componentes significam “dormir com” ou “ter relações sexuais com” (κοῖτης) “homens” (ἄρσην – macho [substantivo]; ἀρσενικός – macho [adjetivo]). Ambos os termos receberam um intenso escrutínio lexicográfico, mas infelizmente nosso espaço aqui não nos permite tal mapeamento.
Em geral, há um amplo consenso que μαλακοί em 1Co. 6.9 significa “um parceiro passivo em uma relação homossexual entre homens”. Devemos considerar esses dois termos em relação um com o outro para não entrarmos num ambiente especulativo. Esses dois termos se referem ao relacionamento homossexual entre um parceiro mais passivo (μαλακοί) e um mais ativo (ἀρσενοκοῖται), sem fazer referência específica à pederastia (conforme Scroggs) nem a prostituição (conforme Boswell). Mesmo esses dois estudiosos acima que defendem traduções diferentes, concordam que ἀρσενοκοῖται significa “deitar na cama com outro homem”, expressão que ocorre em Levítico 18.22:
“Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação”.
Scroggs afirma que “o hebraico é traduzido fielmente”, e que também “partes desse composto grego aparecem na versão Septuaginta das leis em Levíticos” e na discussão legal rabínica “deitar com um homem (mishkav zakur) é o termo mais usado para descrever a homossexualidade entre homens” (Scroggs, The New Testament and Homosexuality, 107, n. 10.).
Entretanto, como corretamente pontua Anthony Thiselton em seu magistral comentário de 1Coríntios, a questão não é se podemos traçar um link entre Lv. 18.22 e 1Co. 6.9, mas se a visão de Paulo sobre o Antigo Testamento se origina totalmente através de lentes de recontextualização judaico-helenística em termos de uma sociedade greco-romana, ou se ele interpreta o AT como Escritura cristã oferecendo paradigmas diretos para o estilo de vida e para a ética do povo de Deus como uma identidade corporativa (Thiselton, 2000; p.450; esta última opção é a mais coerente).
Outro ponto que ajuda a lançar luz sobre o texto, é a cuidadosa análise estrutural de 1Co. 6.9-20 feita por Kenneth Bailey. Ele argumenta que 6.9-20 constitui uma cuidadosa construção de 5 parágrafos em que (a) os 5 pecados sexuais listados se referem aos caps. 5 e 6.12-20 e (b) os outros 5 se referem a questões como comida e bebida (cf. 1Co. 11.17-34). A condenação de um tipo de pecado não tem prioridade sobre os outros. Todos dizem respeito ao corpo. Ainda sim, cada subcategoria dentro desses dois grupos possui sua importância (Bailey, “Paul’s Theological Foundation,” 27-29). Bailey argumenta que todas as falhas sexuais estão relacionadas à idolatria. Nas quatro que são expressas com ações, duas são direcionadas aos heterossexuais (adultério (para os casados) e relacionamentos ilícitos (para os solteiros?)), e duas para os homossexuais (um aplicando à função passiva e outro à ativa). Não podemos ter certeza da precisão dos argumentos de Bailey, mas certamente eles acrescentam um impressionante peso cumulativo aos demais argumentos que demonstram que o homossexualismo é visto explicitamente como pecado em 1Co. 6.9.
Algumas conclusões reflexivas sobre 1Co. 6 e o homossexualismo
1. Em um catálogo com dez disposições que alcançam ações habituais no domínio público, apenas duas se referem a relacionamentos do mesmo sexo, e esses não recebem nenhuma ênfase adicional em relação aos outros oito (Thiselton). Considerações são feitas sobre desejos ilícitos heterossexuais e de aumento de poder e posses da mesma forma que são feitas sobre os relacionamentos do mesmo sexo (não estou defendo uma visão igualitária do pecado, apenas demonstrando algo específico desse texto).
2. As declarações que dizem que as questões homossexuais não são questões tratadas pela Bíblia são no mínimo confusas. Ao contrário do que Felipe Neto disse, Romanos 1.18-32 se refere claramente a relacionamentos do mesmo sexo, bem como o texto brevemente analisado aqui. Jesus apela para Gênesis 1.27 (‘homem e mulher os criou’) e 2.24 (‘o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne’), em suas observações sobre divórcio e recasamento em Marcos 10.6-9 e Mateus 19.4-6, mostrando a importância do pré-requisito de homem e mulher para o casamento, implicando assim, que não só a poligamia é algo ilícito, mas também o homossexualismo.
3. Devido à distância entre os séculos I e XXI, alguém pode questionar se a questão Bíblica é comparável com a questão nos nossos dias. Quanto mais os estudiosos examinam a sociedade greco-romana e o pluralismo de suas tradições éticas, mais a situação em Corinto parece ressoar a nossa. Portanto são duas situações comparáveis, ainda mais para um cristão que crê que a Bíblia é a palavra de Deus e se aplica a todas as gerações.
Paulo parece retornar ao AT como fonte de uma ética distinta para um povo distinto (os cristãos), interpretando à luz do evento-Cristo. A conexão entre 1Co. 6.9-10 e Rm. 1.26-29 e seu background veterotestamentário endossam que a idolatria, isto é, a pretensa autonomia humana construindo o valor de alguém acima de um compromisso pactual com Deus, leva a um colapso de valores morais em um tipo de efeito dominó (Thiselton).
Autor: Willian Orlandi
Divulgação: Bereianos
1 comentários:
ótimo
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