por John Frame
Algumas pessoas têm sugerido que “inerrante” não é uma boa palavra para usar quando se descreve a Escritura. Este artigo procura responder a essa objeção. Antes de nós passarmos ao termo específico “inerrante”, entretanto, será bom lembrarmos, em termos mais gerais, o que a fé reformada e a própria Bíblia ensinam-nos sobre a Escritura.
Primeiro, a Escritura é a constituição pactual do povo de Deus.[1] A primeira Palavra escrita de Deus, a primeira Bíblia, foram os Dez Mandamentos, escritos pelo próprio dedo de Deus em tábuas de pedra (Ex 24.12, 31.18, 32.15s, 34.1). Lá, Deus fala como o autor do documento: “Eu sou o Senhor teu Deus”. Aquela Palavra escrita foi posta no lugar mais santo de Israel, ao lado da Arca da Aliança, onde estaria firmada como testemunha de Deus contra Israel (Dt 31.26).[2] Assim, a Palavra escrita deveria governar todos os aspectos da vida do povo de Deus (Dt 4.1-14, 5.32-6.25).[3] Quase todo capítulo de Deuteronômio exorta o povo a obedecer todas as leis, testemunhos, estatutos, mandamentos e palavras (que redundância eloquente!) da Palavra escrita de Deus. Quase todo verso do Salmo 119 chama o povo de Deus de volta a esses estatutos; reavivamento em Israel é sempre um reavivamento da obediência à (e algumas vezes a redescoberta da) Lei.
Além do Decálogo, Deus deu outras Palavras a seu povo. O cântico de Moisés em Dt 32 (veja 31.19) é uma Palavra destas. Palavras de Josué foram mais tarde adicionadas (Js 24.25s). E Deus enviou profetas; a própria definição de um profeta era aquele proclamava a Palavra de Deus, não as palavras de sua própria vontade (Dt 18.18-20). Muitas dessas profecias foram escritas. Jesus considerou o Antigo Testamento inteiro como a Palavra escrita de Deus (Mt 5.17-19, Jo 5.45, 10.33-36), como também fizeram os apóstolos (Rm 15.4, 2Tm 3.16, 2Pe 1.21, Tg 4.5,11).
O Novo Testamento é uma Nova Aliança e, portanto, envolve a entrega de Palavras divinas (Mt 7.24-27, Mc 8.38, Jo 6.68s, 12.47ss, 14.15, 21, 23s, 15.7, 10, 14, 17.6, 17, 1J 2.3-5, 3.22, 5.2f, 2Jo 6, 1Tm 6.3, Ap 12.17, 14.12). Pelo testemunho do Espírito Santo e conteúdo dos próprios livros, os cristãos reconhecem o Novo Testamento, como eles fazem com o Antigo, como o Livro de Deus.
Portanto, a igreja tem confessado historicamente que a Escritura é a Palavra de Deus. É Deus falando a nós. Existem também autores humanos na Escritura, e o conteúdo da Escritura reflete suas personalidades, estilos e experiências. Mas a humanidade da Escritura não significa que ela tenha menos autoridade que, digamos, a voz divina no Monte Sinai. A autoridade da Escritura é nada menos que a autoridade do próprio Deus, como as passagens citadas acima claramente demonstram.
Não temos, assim, nenhum direito de levantar críticas negativas contra a Bíblia. Como a Confissão Belga afirma, os livros canônicos “não podem ser contraditos de forma alguma” (Artigo 4), “acreditamos, sem dúvida nenhuma, em tudo que eles contêm” (Artigo 5), e “sua doutrina é perfeitíssima e, em todos os sentidos, completa” (Artigo 7). Quando Deus fala conosco, nós não ousamos criticar o que ele diz. Nosso único recurso é crer e obedecer.
E então, o que dizer sobre inerrância? Bem, a inerrância da Escritura está certamente implícita no que já dissemos, se pudermos usar “inerrância” em seu sentido normal, do dicionário. “Inerrante” significa simplesmente “sem erros” ou “verdadeiro”, no sentido que nós normalmente falamos de frases verdadeiras, doutrinas verdadeiras, relatos verdadeiros e princípios verdadeiros. Se Deus estivesse falando conosco em pessoa, “diretamente”, nenhum de nós ousaria acusá-lo de erro. Erros surgem de ignorância ou engano; e nosso Deus não é nem ignorante, nem enganador. De maneira semelhante, nós não ousamos acusar sua Palavra escrita de erro.
Esta não é uma posição meramente “moderna”. Como vimos, é a posição da própria Escritura. Agostinho no século V declarou: “Nenhum desses autores (da Escritura) errou, em algum aspecto, ao escrever”. A infalibilidade[4] é afirmada na Confissão de Fé de Westminster, capítulo 1, e na Confissão Belga, artigo 7.
Devemos falar hoje de “inerrância” bíblica? O termo com certeza gera confusão em alguns círculos. Alguns teólogos têm ido bem além do significado normal de “inerrante”. James Orr, por exemplo, define “inerrante” como “uma literalidade estrita em assuntos mínimos nos detalhes históricos, geográficos e científicos".[5] Bem, se “inerrância” demanda literalidade, então devemos renunciar à inerrância; porque a Bíblia nem sempre deve ser interpretada literalmente. Certamente existem questões importantes na interpretação bíblica que alguém perde se ele aceita a inerrância bíblica neste sentido.
Mas devemos nos lembrar que o uso do termo por Orr, e os usos semelhantes de teólogos contemporâneos, são distorções de seu significado. Talvez essas distorções tenham se tornado tão frequentes hoje que diminuem a utilidade do termo. Por enquanto, porém, eu gostaria de manter o termo, e explicar às pessoas que me questionam que não estou usando ele no sentido de Orr, mas de maneira semelhante ao confessado pela fé histórica da igreja.
Nós temos um problema aqui: se fosse possível, eu preferiria abandonar os termos extrabíblicos, incluindo “infalível” e “inerrante”, e simplesmente falar, como a Escritura faz, da Palavra de Deus como verdadeira. Isto é o que todos nós queremos dizer, afinal, quando falamos que a Escritura é inerrante. Mas os teólogos modernos não me deixam fazer isso. Eles redefinem “verdade” como se referisse a uma grande ideia teológica[6], e não permitem que use com o sentido de “precisão”, “confiabilidade” ou “veracidade”. Então, tento usar a palavra “infalível”, uma expressão histórica que, como indiquei em uma nota de rodapé abaixo, é realmente um termo mais forte que “inerrância”. Mas, novamente, os teólogos modernos[7] insistem em redefinir a palavra também, de forma que realmente diz menos que “inerrância”.
Então, qual é nossa alternativa? Mesmo “precisão” ou “veracidade” foram distorcidas por princípios teológicos. “Confiabilidade” parece muito trivial para expressar o que queremos dizer. Então, embora seja um termo que é altamente técnico, e sujeito a mal-entendidos, pretendo manter a palavra “inerrante” como uma descrição da Palavra de Deus, e espero que meus leitores façam o mesmo. A ideia, claro, é mais importante que a palavra. Se conseguir encontrar uma palavra melhor que expresse a doutrina bíblica aos leitores modernos, estarei feliz de usá-la, e abandonarei “inerrância”. Mas, atualmente, “inerrância”, não tem um substituto adequado. Abandonar o termo na situação atual, então, pode comprometer a doutrina, e isto não ousamos fazer. Deus não aceitará ou tolerará juízos humanos e negativos sobre sua santa Palavra. Então, eu concluo: sim, a Bíblia é inerrante.
__________
Notas:
[1] Alguns ficarão felizes em ver que não estou argumentando como um “fundamentalista” estilo movimento fundamentalista do início do século XX, mas de maneira semelhante à tradição reformada, expondo as implicações da Aliança de Deus conosco. Outros não ficarão.
[2] Não é o testemunho dos homens a Deus, como os teólogos frequentemente sugerem, mas a testemunha de Deus contra os homens.
[3] Para mais sobre o conceito da Escritura como constituição da Aliança, veja M. G. Kline, The Structure of Biblical Authority (Grand Rapids: Eerdmans, 1972). Esse é um estudo muito importante, embora muito negligenciado.
[4] Se for possível, usemos o dicionário – e por que os teólogos não usam o dicionário?! – “infalível” é um termo mais forte que “inerrante”. “Inerrante” significa que não há erros; “infalível” significa que não pode haver erros.
[5] Orr, “Revelation and Inspiration,” em: Millard Erickson, ed., The Living God (Grand Rapids: Baker, 1973), p. 245.
[6] Emil Brunner,”Truth as Encounter.”
[7] Por exemplo, J. Rogers and D. McKim, em The Authority and Interpretation of the Bible (San Francisco: Harper and Row, 1979).
***
Fonte: Frame & Poythress
Traduzido por: Josaías Jr
Via: Reforma 21
Primeiro, a Escritura é a constituição pactual do povo de Deus.[1] A primeira Palavra escrita de Deus, a primeira Bíblia, foram os Dez Mandamentos, escritos pelo próprio dedo de Deus em tábuas de pedra (Ex 24.12, 31.18, 32.15s, 34.1). Lá, Deus fala como o autor do documento: “Eu sou o Senhor teu Deus”. Aquela Palavra escrita foi posta no lugar mais santo de Israel, ao lado da Arca da Aliança, onde estaria firmada como testemunha de Deus contra Israel (Dt 31.26).[2] Assim, a Palavra escrita deveria governar todos os aspectos da vida do povo de Deus (Dt 4.1-14, 5.32-6.25).[3] Quase todo capítulo de Deuteronômio exorta o povo a obedecer todas as leis, testemunhos, estatutos, mandamentos e palavras (que redundância eloquente!) da Palavra escrita de Deus. Quase todo verso do Salmo 119 chama o povo de Deus de volta a esses estatutos; reavivamento em Israel é sempre um reavivamento da obediência à (e algumas vezes a redescoberta da) Lei.
Além do Decálogo, Deus deu outras Palavras a seu povo. O cântico de Moisés em Dt 32 (veja 31.19) é uma Palavra destas. Palavras de Josué foram mais tarde adicionadas (Js 24.25s). E Deus enviou profetas; a própria definição de um profeta era aquele proclamava a Palavra de Deus, não as palavras de sua própria vontade (Dt 18.18-20). Muitas dessas profecias foram escritas. Jesus considerou o Antigo Testamento inteiro como a Palavra escrita de Deus (Mt 5.17-19, Jo 5.45, 10.33-36), como também fizeram os apóstolos (Rm 15.4, 2Tm 3.16, 2Pe 1.21, Tg 4.5,11).
O Novo Testamento é uma Nova Aliança e, portanto, envolve a entrega de Palavras divinas (Mt 7.24-27, Mc 8.38, Jo 6.68s, 12.47ss, 14.15, 21, 23s, 15.7, 10, 14, 17.6, 17, 1J 2.3-5, 3.22, 5.2f, 2Jo 6, 1Tm 6.3, Ap 12.17, 14.12). Pelo testemunho do Espírito Santo e conteúdo dos próprios livros, os cristãos reconhecem o Novo Testamento, como eles fazem com o Antigo, como o Livro de Deus.
Portanto, a igreja tem confessado historicamente que a Escritura é a Palavra de Deus. É Deus falando a nós. Existem também autores humanos na Escritura, e o conteúdo da Escritura reflete suas personalidades, estilos e experiências. Mas a humanidade da Escritura não significa que ela tenha menos autoridade que, digamos, a voz divina no Monte Sinai. A autoridade da Escritura é nada menos que a autoridade do próprio Deus, como as passagens citadas acima claramente demonstram.
Não temos, assim, nenhum direito de levantar críticas negativas contra a Bíblia. Como a Confissão Belga afirma, os livros canônicos “não podem ser contraditos de forma alguma” (Artigo 4), “acreditamos, sem dúvida nenhuma, em tudo que eles contêm” (Artigo 5), e “sua doutrina é perfeitíssima e, em todos os sentidos, completa” (Artigo 7). Quando Deus fala conosco, nós não ousamos criticar o que ele diz. Nosso único recurso é crer e obedecer.
E então, o que dizer sobre inerrância? Bem, a inerrância da Escritura está certamente implícita no que já dissemos, se pudermos usar “inerrância” em seu sentido normal, do dicionário. “Inerrante” significa simplesmente “sem erros” ou “verdadeiro”, no sentido que nós normalmente falamos de frases verdadeiras, doutrinas verdadeiras, relatos verdadeiros e princípios verdadeiros. Se Deus estivesse falando conosco em pessoa, “diretamente”, nenhum de nós ousaria acusá-lo de erro. Erros surgem de ignorância ou engano; e nosso Deus não é nem ignorante, nem enganador. De maneira semelhante, nós não ousamos acusar sua Palavra escrita de erro.
Esta não é uma posição meramente “moderna”. Como vimos, é a posição da própria Escritura. Agostinho no século V declarou: “Nenhum desses autores (da Escritura) errou, em algum aspecto, ao escrever”. A infalibilidade[4] é afirmada na Confissão de Fé de Westminster, capítulo 1, e na Confissão Belga, artigo 7.
Devemos falar hoje de “inerrância” bíblica? O termo com certeza gera confusão em alguns círculos. Alguns teólogos têm ido bem além do significado normal de “inerrante”. James Orr, por exemplo, define “inerrante” como “uma literalidade estrita em assuntos mínimos nos detalhes históricos, geográficos e científicos".[5] Bem, se “inerrância” demanda literalidade, então devemos renunciar à inerrância; porque a Bíblia nem sempre deve ser interpretada literalmente. Certamente existem questões importantes na interpretação bíblica que alguém perde se ele aceita a inerrância bíblica neste sentido.
Mas devemos nos lembrar que o uso do termo por Orr, e os usos semelhantes de teólogos contemporâneos, são distorções de seu significado. Talvez essas distorções tenham se tornado tão frequentes hoje que diminuem a utilidade do termo. Por enquanto, porém, eu gostaria de manter o termo, e explicar às pessoas que me questionam que não estou usando ele no sentido de Orr, mas de maneira semelhante ao confessado pela fé histórica da igreja.
Nós temos um problema aqui: se fosse possível, eu preferiria abandonar os termos extrabíblicos, incluindo “infalível” e “inerrante”, e simplesmente falar, como a Escritura faz, da Palavra de Deus como verdadeira. Isto é o que todos nós queremos dizer, afinal, quando falamos que a Escritura é inerrante. Mas os teólogos modernos não me deixam fazer isso. Eles redefinem “verdade” como se referisse a uma grande ideia teológica[6], e não permitem que use com o sentido de “precisão”, “confiabilidade” ou “veracidade”. Então, tento usar a palavra “infalível”, uma expressão histórica que, como indiquei em uma nota de rodapé abaixo, é realmente um termo mais forte que “inerrância”. Mas, novamente, os teólogos modernos[7] insistem em redefinir a palavra também, de forma que realmente diz menos que “inerrância”.
Então, qual é nossa alternativa? Mesmo “precisão” ou “veracidade” foram distorcidas por princípios teológicos. “Confiabilidade” parece muito trivial para expressar o que queremos dizer. Então, embora seja um termo que é altamente técnico, e sujeito a mal-entendidos, pretendo manter a palavra “inerrante” como uma descrição da Palavra de Deus, e espero que meus leitores façam o mesmo. A ideia, claro, é mais importante que a palavra. Se conseguir encontrar uma palavra melhor que expresse a doutrina bíblica aos leitores modernos, estarei feliz de usá-la, e abandonarei “inerrância”. Mas, atualmente, “inerrância”, não tem um substituto adequado. Abandonar o termo na situação atual, então, pode comprometer a doutrina, e isto não ousamos fazer. Deus não aceitará ou tolerará juízos humanos e negativos sobre sua santa Palavra. Então, eu concluo: sim, a Bíblia é inerrante.
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Notas:
[1] Alguns ficarão felizes em ver que não estou argumentando como um “fundamentalista” estilo movimento fundamentalista do início do século XX, mas de maneira semelhante à tradição reformada, expondo as implicações da Aliança de Deus conosco. Outros não ficarão.
[2] Não é o testemunho dos homens a Deus, como os teólogos frequentemente sugerem, mas a testemunha de Deus contra os homens.
[3] Para mais sobre o conceito da Escritura como constituição da Aliança, veja M. G. Kline, The Structure of Biblical Authority (Grand Rapids: Eerdmans, 1972). Esse é um estudo muito importante, embora muito negligenciado.
[4] Se for possível, usemos o dicionário – e por que os teólogos não usam o dicionário?! – “infalível” é um termo mais forte que “inerrante”. “Inerrante” significa que não há erros; “infalível” significa que não pode haver erros.
[5] Orr, “Revelation and Inspiration,” em: Millard Erickson, ed., The Living God (Grand Rapids: Baker, 1973), p. 245.
[6] Emil Brunner,”Truth as Encounter.”
[7] Por exemplo, J. Rogers and D. McKim, em The Authority and Interpretation of the Bible (San Francisco: Harper and Row, 1979).
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Fonte: Frame & Poythress
Traduzido por: Josaías Jr
Via: Reforma 21
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