Por John Frame
O bom ensino procede do conhecido para o desconhecido. Assim, um bom apologista quererá ter alguma ideia do que um inquiridor já sabe sobre Deus. Os não-cristãos têm algum conhecimento do verdadeiro Deus? Se sim, o que eles conhecem? De que formas esse conhecimento se manifesta?
A Escritura diz que os incrédulos conhecem a Deus (Romanos 1:21), mas também diz que eles não O conhecem (1 Coríntios 2:14, 15:34; 1 Tessalonicenses 4:5; 2 Tessalonicenses 1:8; compare com 2 Timóteo 3:7, Tito 1:16, 1 João 4:8). Evidentemente, então, devemos fazer algumas distinções, pois em algum sentido ou sentidos, o conhecimento de Deus é universal, e de outras formas não.
Romanos 1:18-32 é o texto clássico sobre esta questão. Aqui Paulo enfatiza a clareza da revelação de Deus para os injustos. Deus revela Sua ira para eles (versículo 18), e faz a verdade sobre Ele mesmo ‘manifesta para eles’ (versículo 19), ‘claramente percebida’ (versículo 20). Esta verdade revelada inclui o Seu ‘eterno poder e a Sua natureza divina’ (versículo 20). Ela contém também conteúdo moral, o conhecimento ‘do decreto de Deus de que aqueles que praticam [coisas ímpias] merecem morrer’ (versículo 32). De forma significativa, o texto não declara que esta revelação na natureza comunica o caminho da salvação. Paulo evidentemente crê que este conteúdo adicional deve vir através da pregação do evangelho (Romanos 10:13-17). Assim, ele garante a distinção teológica tradicional entre revelação geral (a revelação de Deus de Si mesmo através do mundo criado) e revelação especial (Sua revelação através da profecia, da pregação e da Escritura).
O conhecimento dado pela revelação geral não é somente um conhecimento sobre Deus, um conhecimento de proposições. É um conhecimento do próprio Deus, um conhecimento pessoal. Porque Paulo diz, não somente que o ímpio tem conhecimento sobre Deus, mas que “eles conhecem a Deus” (versículo 21).
Todavia, segundo Paulo, o ímpio não faz um uso apropriado deste conhecimento revelado. Antes, eles ‘pela sua injustiça suprimem a verdade’ (versículo 18). Ele continua, ‘embora tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos…’ (versículos 21-22). Paulo descreve a loucura deles como idolatria (versículos 22-23). Em sua concepção, a idolatria não é uma busca inocente pelo divino ou o resultado de ignorância honesta. A idolatria é, antes, um afastar-se deliberado e culpado da clara revelação do verdadeiro Deus. Assim, ela está ‘trocando a glória do Deus imortal por imagens...’ (versículo 23), trocando ‘a verdade de Deus pela mentira’ (versículo 25).
Porque eles se voltaram deliberadamente da clara revelação de Deus, Deus ‘os entregou’ (versículos 24,26,28) a sérios pecados, particularmente sexuais. Mesmo então, contudo, a clara revelação original continua a funcionar, pois ela serve como um padrão de julgamento. Como Paulo diz, ela os deixa ‘sem escusa’ (versículo 20).
A partir desta passagem, podemos entender os sentidos nos quais os não-regenerados conhecem e não conhecem a Deus. Eles conhecem a Deus à medida que eles são confrontados por Sua revelação. Outras passagens da Escritura nos dizem que esta revelação é encontrada não somente no mundo natural, mas em suas próprias pessoas, pois todos fomos feitos à imagem de Deus (Gênesis 1:27). Assim, a revelação de Deus é inescapável. Mas aparte da revelação especial e salvadora da graça de Deus, as pessoas trocam esta verdade pela mentira e se engajam em tamanhas perversidades que eles se tornam inimigos de Deus, e não amigos.
É a graça de Deus que torna esta inimizade em amizade, de forma que as pessoas chegam a conhecer a Deus num sentido mais alto do que o conhecimento de Romanos 1:21. Este é o conhecimento de Deus que Jesus iguala com a vida eterna em João 17:3. Muitas outras passagens também descrevem vários tipos de conhecimento que pressupõe a graça salvadora, tais como Romanos 15:14, 1 Coríntios 1:5, 2:12, 2 Coríntios 2:14, 4:6, 6:6, 8:7, Efésios 1:17, Filipenses 1:9, 3:8, 3:10, Colossenses 1:10, 1 Timóteo 2:4, 2 Timóteo 1:12, Hebreus 8:11, 2 Pedro 3:18, 1 João 2:3-5, 2:13, 2:20-21, 3:14, 19, 24, 4:2, 4, 6, 7, 13, 16, 5:2, 13, 19-20, 2 João 1:1. O não-regenerado não tem este tipo de conhecimento. Devemos entender neste sentido as passagens que falam sobre eles não conhecerem a Deus.
Tem havido duas diferentes descrições de conhecimento não-regenerado de Deus nas tradições teológicas. Uma, advogada por Tomás de Aquino, diz que este conhecimento vem através da razão natural do homem. Na visão de Aquino, a razão natural é suficiente para realizar a nossa felicidade terrena, mas um conhecimento mais alto e sobrenatural é requerido para a vida eterna. A razão natural opera aparte da revelação divina, mas o conhecimento sobrenatural é baseado na revelação, a qual funciona como um suplemento para o que conhecemos naturalmente.
Teólogos reformados têm objetado a esta visão, afirmando que Deus nunca pretendeu que a nossa razão natural funcionasse de forma autônoma, ou aparte desta revelação. Em primeiro lugar, todo conhecimento humano vem através da revelação, seja da geral ou da especial, ou de ambas. Além do mais, mesmo antes da queda, Deus suplementou o conhecimento natural de Adão com revelação verbal. E após a queda, o nosso conhecimento natural requer tanto revelação geral como especial para o seu funcionamento apropriado. Deixados aos nossos próprios artifícios, como Romanos 1 ensina, suprimimos e distorcemos a verdade da revelação geral. Somente a graça de Deus, operando através do evangelho dado na revelação especial, pode nos capacitar a ver a revelação geral corretamente. Assim, Calvino falou da revelação especial como os “óculos” pelos quais entendemos a revelação geral.
Calvinistas, portanto, têm sido mais pessimistas do que Aquino sobre o conhecimento do incrédulo sobre Deus. Aquino considerou o pagão Aristóteles como o paradigma da razão natural, e seguiu Aristóteles estreitamente em suas provas sobre Deus e em outras questões filosóficas e teológicas. Os seguidores de Calvino, contudo, têm geralmente pensado que não podemos aprender muito sobre Deus à partir dos não-cristãos. E, visto que o conhecimento de Deus pertence a todo o conhecimento humano, alguns calvinistas como Abraham Kuyper e Cornelius Van Til têm argumentado que o pensamento não-cristão é radicalmente distorcido, mesmo em assuntos relativamente não-teológicos. Todavia, a tradição Reformada (com exceções significativas) tem geralmente aceitado também a doutrina da ‘graça comum’, na qual Deus restringe os não-cristãos de todas as implicações de sua rebelião contra Ele e assim preserva neles alguma inclinação para a virtude civil e para algumas crenças verdadeiras.
Na visão Reformada, o conhecimento não-regenerado de Deus precisa mais do que uma suplementação. Ele precisa de uma reorientação radical. A obra do apologista não é meramente adicionar informação ao que o incrédulo já sabe. É, antes, “levar cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo” (2 Coríntios 10:5). Isto envolverá questionar a cosmovisão básica do incrédulo, as pressuposições mais básicas do seu pensamento. Assim, os apologistas reformados pressuposicionalistas têm falado de uma ‘antítese’ entre o pensamento de um crente e de um incrédulo, correspondendo à distinção bíblica entre a sabedoria de Deus e a loucura do mundo. Mas tem sido difícil para eles reconciliar e balancear a sua doutrina da antítese com a doutrina da graça comum. Se há tal antítese, de forma que o não-cristão se opõe à verdade de Deus em cada ponto, como podemos atribuir ao não-cristão algum conhecimento?
Eu tenho tentado tratar desta questão em meu livro Cornelius Van Til, listado abaixo. Para sumarizar, as concordâncias entre os crentes e os incrédulos nunca são concordâncias perfeitas; elas sempre serão concordâncias com uma diferença. Um crente e um incrédulo podem concordar que o céu é azul, mas o incrédulo tenta ver este fato como um produto de matéria, energia e acaso. Cristãos e fariseus podem concordar que Deus requer a observância do Dia de Descanso; mas os fariseus falharão em ver a misericórdia de Deus no mandamento e, portanto, a adequabilidade da cura. Os não-cristãos, em outras palavras, podem concordar com os cristãos em várias questões, mas vendo como um todo, o entendimento deles de Deus é seriamente distorcido, e os apologistas devem tratar com esta distorção.
O restante deste artigo considerará três questões sobre o conhecimento não-regenerado de Deus: (1) Como ele é obtido? (2) Como ele é suprimido? (3) De que forma ele continua a funcionar, a despeito de sua supressão?
(1) Romanos 1 nos diz que este conhecimento é adquirido à partir da revelação de Deus ‘nas coisas que foram criadas’, isto é, todo o mundo criado, incluindo os próprios seres humanos. Mas como as pessoas obtém este conhecimento à partir da criação? Alguns apologistas têm pensado que este conhecimento vem através da atividade racional, particularmente através de provas e evidências teístas. Mas este entendimento limitaria o conhecimento de Romanos 1 somente àqueles que tiverem competência para entender e para serem persuadidos por aqueles argumentos e evidências. Paulo, contudo, vê este conhecimento como universal. Romanos 1 começa o argumento que leva, em Romanos 3:10-20,23, à conclusão de que todos pecaram e permanecem carentes da graça de Deus. Assim, o conhecimento de Romanos 1 deixa todos os seres humanos inescusáveis (versículo 20).
Se este conhecimento fosse menos do que universal, a conclusão de Romanos 3 não seria alcançada à partir dele.
Assim, o conhecimento de Deus pela criação evidentemente alcança a todos, mesmo aqueles que não são competentes para formular ou avaliar as provas e evidências. Evidentemente discernimos a revelação geral de Deus por alguma forma de intuição, uma intuição que alguns são capazes de articular e defender por provas e evidências, mas que não dependem delas. Alvin Plantinga diz que chegamos a crer em Deus quando nossas faculdades racionais estão operando como Deus pretendeu, e quando somos postos num ambiente que conduza naturalmente à formulação da crença teísta. Até hoje, nenhuma explicação melhor do processo tem sido oferecida.
(2) Como as pessoas suprimem a verdade desta revelação? É tentador pensar sobre “supressão” em termos psicológicos, como quando alguém relega uma verdade não bem-vinda ao seu subconsciente ou inconsciente. Mas esta não é a descrição bíblica. Os inimigos de Deus na Bíblia, desde os egípcios (Êxodo 14:4) até aos fariseus, e o próprio Satanás, freqüentemente reconhecem conscientemente a existência de Deus. Em Romanos 1, a supressão é vista na adoração idólatra e no comportamento sexual ilícito. O não-regenerado nega o seu conhecimento de Deus por sua rebelião ética.
Quando a Escritura descreve o conhecimento de Deus que vem pela graça, este conhecimento sempre é acompanhado por obediência e santidade. João diz: ‘E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos os seus mandamentos’ (1 João 2:3). Assim, a Escritura relaciona a epistemologia intimamente com a ética.
Assim, a diferença entre o conhecimento não-regenerado e regenerado de Deus pode ser descrito como ético. O não-regenerado reprime seu conhecimento de Deus por desobedecer a Deus. Esta desobediência pode levar, em alguns casos, à repressão psicológica, ou ao ateísmo explícito, mas nem sempre. O apologista deve reconhecer, portanto, que o problema do incrédulo é primariamente ético, não intelectual. Ele rejeita a verdade porque ele desobedece aos padrões éticos de Deus, não o contrário.
Esta rebelião ética, contudo, sempre injeta um elemento de irracionalidade no pensamento do não-regenerado. Conhecer a Deus e os Seus mandamentos, e mesmo o Seu ‘eterno poder’, e todavia se rebelar contra Ele, é supremamente fútil. Neste sentido, a incredulidade é loucura (Salmos 14:1). Considere Satanás, que conhece a Deus melhor do que nós em alguns aspectos, mas que, todavia, procura tirar Deus do trono. De certas maneiras, Satanás é altamente inteligente e entendido. Mas no sentido mais importante, ele é supremamente irracional. É importante para o apologista entender que na análise final, a posição do não-cristão é como esta: muitas vezes impressionante intelectualmente, mas ridícula no nível mais profundo.
(3) A supressão da verdade pelo não-cristão nunca é completa. Ele nunca poderá erradicar a verdade completamente da sua consciência. Se ele pudesse, ele não mais poderia viver, pois este é o mundo de Deus, e toda a estrutura, ordem e significado do mundo é obra de Deus. Além do mais, como temos visto, a graça comum de Deus restringe as distorções não-cristãs da verdade. Assim, até mesmo Satanás usa a verdade para o seu próprio propósito, e há alguns seres humanos não-regenerados, como os fariseus, que são relativamente ortodoxos.
Portanto, nós podemos esperar que o conhecimento dos incrédulos sobre Deus borbulhe algumas vezes em sua consciência, a despeito de suas tentativas de reprimir esse conhecimento. Como isto acontece? De diversas formas: (a) Os incrédulos podem algumas vezes mostrar explicitamente uma grande quantidade de conhecimento do verdadeiro Deus, como o fizeram os fariseus. (b) O não-cristão deve assumir que o mundo não é um caos, mas que é ordenamente e relativamente previsível, embora esta suposição pressuponha conseqüentemente a existência de Deus. (c) Na ética, os não-cristãos freqüentemente revelam um conhecimento da lei de Deus. Apologistas como C. S. Lewis e J. Budziszewski têm apontados princípios como “Seja honesto no jogo!”, “Não mate!”, “Seja fiel à sua esposa!” e “Cuide da sua família!”, que são universalmente reconhecidos. Embora muitas pessoas violem estes princípios, elas mostram que os conhecem ao fazer escusas ou racionalizações, e por acusar outras de violarem os mesmos princípios.
Em outras palavras, eles tratam a lei moral como lei. Embora alguns teorizem que os princípios morais são meros sentimentos, convenções ou instintos, ninguém realmente crê nisso, especialmente quando é feita injustiça para com eles. Quando alguém nos trata injustamente, consideramos esta injustiça como um erro objetivo. Mas erros objetivos não podem ser derivados de meros instintos, sentimentos, convenções ou mecanismos de defesa evolucionários, etc. Acertos e erros morais são baseados em relacionamentos pessoais, especialmente relacionamentos de fidelidade e amor. E isto significa que padrões morais absolutos devem ser derivados de uma pessoa absoluta. Assim se desenvolve o “argumento moral para a existência de Deus”. Mas este argumento é baseado na consciência, um senso de certo e errado objetivo que é universal, que existe mesmo naqueles que não o formulam como um argumento. Budziszewski também aponta as terríveis conseqüências que resulta de se violar a consciência de alguém. Os apologistas deveriam recorrer aos dados da consciência do incrédulo para levá-lo àquele maior conhecimento de Deus, que é a vida eterna em Cristo.
Bibliografia:
- Budziszewski, J., The Revenge of Conscience (Dallas, TX: 1999).
- What We Can’t Not Know (Dallas, TX: 2003).
- Frame, J., Apologetics to the Glory of God (Phillipsburg, NJ: 1994). Desenvolve o argumento moral para a existência de Deus.
- Cornelius Van Til (Phillipsburg, NJ: 1995). Veja os capítulos 15 e 16 sobre a antítese entre o conhecimento do crente e do incrédulo sobre Deus.
- Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg, NJ: 1987). Procura mostrar que a epistemologia pode ser considerada como um ramo da ética, mostrando porque as duas são tão intiamente relacionadas na Escritura.
- Lewis, C. S., Mere Christianity (London: 1952).
- Plantinga, Alvin, Warranted Christian Belief (New York and London: 2000).
- Sproul, R. C., If There’s a God, Why Are There Atheists? (Wheaton, IL: 1988). Um belo tratamento da psicologia do ateísmo de acordo com Romanos 1.
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Traduzido por: Felipe Sabino de Araújo Neto
Cuiabá-MT, 29 de Junho de 2005.
Fonte: Monergismo
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