por Lucas G. Freire
Um dos graves problemas da nossa sociedade é a ausência de espaço para associações voluntárias. Isso torna o Brasil bastante “monocromático“. Por que precisamos de mais “cor”? Sabendo que não pode viver só, o ser humano tem formado grupos e associações desde os primórdios, criando ambientes para facilitar o intercâmbio daquilo que julga ser necessário a uma vida de qualidade. Contudo, devido a vários problemas ligados ao caráter estatista e paternalista do nosso desenvolvimento histórico, temos hoje pouca diversidade de associações, e uma sociedade organizada em “grandes blocos”.
Um exemplo claro é o efeito de diversas leis trabalhistas modernas nas nossas associações profissionais e de classe. O resultado hoje é o favorecimento, por essas regulações, aos grupos sindicais bem articulados na barganha coletiva e, em vários casos, bem sucedidos na monopolização de representação trabalhista. Essa concentração que favorece esses “grandes blocos” não reflete um mercado de trabalho livre e desregulado, e sim um ambiente pesadamente regulado, que “expulsa” ou “desencoraja” arranjos alternativos.
A diversidade de associações voluntárias de caráter profissional ou trabalhista é desencorajada. O status quo em favor dos “grandes blocos” é, com isso, protegido. Como resultado, o pressuposto na nossa cultura e prática de greve e de manifestação por melhorias nas condições de trabalho reflete a cultura e a prática dos “grandes blocos” envolvidos em greves e manifestações. É praticamente impensável uma reflexão crítica sobre a validade da greve tal como ela acontece em nossa sociedade hoje em dia sem sofrer acusações de “peleguismo”.
Correndo o risco de sofrer a crítica que se acomoda aos hábitos de pensamento predominantes na nossa cultura e prática de “grandes blocos”, é preciso refletir sobre a greve e a ética cristã. É preciso pensar a greve em termos dessa realidade universal humana da formação de associações voluntárias. A cultura e prática de “grandes blocos” defende, por vezes, certas práticas coercitivas que são ilegítimas do ponto de vista da ética cristã. Por outro lado, ao menos em abstrato, uma greve não é necessariamente uma prática anticristã. Porém, a conclusão permanece: greves como vistas na cultura e prática de “grandes blocos” têm via de regra violado a ética cristã, especialmente à luz dos Dez Mandamentos.
Em primeiro lugar, vejamos o problema da concentração social em “grandes blocos”. Nesse tipo de ambiente, as associações humanas que sobrevivem à mão pesada do estatismo regulador são distorcidas e concentradas: isso tanto do lado das empresas como do lado das associações profissionais e trabalhistas. Por consequência, há também uma falta de espaço para a emergência de novas associações voluntárias que tenham um caráter radicalmente distinto do favorecido pelo sistema. Num ambiente rígido e mais controlado, a “lógica interna” e a maneira de agir dessas associações tende à semelhança em vez da diversidade. Tende a ser “monocromática”.
Por causa disso, em segundo lugar, onde todos os sindicatos funcionam de forma mais ou menos igual, por causa das exigências impostas pelo governo, a criatividade e diversidade de práticas é tolhida e prejudicada. Isso, contudo, apresenta um problema moral para o cristão. Quando se fala em “greve” no Brasil, a conotação é de um processo de barganha coletiva que legitima a quebra de contrato (e, portanto, do mandamento “não furtarás”, além de implicar perjúrio) e que várias vezes almeja se transformar numa espécie de chantagem. Espera-se cooperação incondicional dos membros de uma organização trabalhista ou sindicato, muitas vezes em detrimento à escolha individual. Alguém pode discordar do objetivo ou dos meios numa greve específica, mas acaba coagido a participar. Isso pode acontecer via coerção pessoal, mas em geral é uma mistura das regras do sindicato com a coerção governamental. Sem uma diversidade maior de opções, o cristão se vê encurralado nessa situação.
Não se trata aqui simplesmente de uma dicotomia entre o direito a trabalhar sem quebrar contrato e o direito à associação voluntária. Essa é uma falsa dicotomia, pois o “direito à associação voluntária” é no nosso contexto algo completamente diferente: em vez de “direito” e “voluntário”, é praticamente de uma obrigação (dependendo da profissão) de se associar e de participar numa ação coletiva. Defender o direito a furar greve, portanto, não é questionar a liberdade de associação.
Porém, ao menos em tese, não se trata também de uma crítica absoluta à greve, e sim à greve tal como a conhecemos no nosso sistema. O exemplo da guerra é uma boa ilustração. Eu posso manter, por um lado, o direito à autodefesa e, do outro, criticar e questionar a legitimidade de várias guerras em particular – até mesmo da grande maioria das guerras na história. Só que isso não implica ou pressupõe uma dicotomia entre pacifismo absoluto e agressividade absoluta, e sim uma defesa da noção de “guerra justa”. No caso da greve, é preciso pensar em termos de quais seriam os elementos e as implicações éticas de uma “greve justa”.
Assim, para início de conversa, uma greve não violenta, que não violasse a ética cristã (incluindo a ofensa aos direitos de propriedade e de contrato), poderia ser um ponto de partida abstrato para se pensar a “greve justa”. Como dever geral, o cristão deveria cumprir o que prometeu em contrato de trabalho, da mesma forma que deveria respeitar a vida alheia. Porém, se aceitamos o princípio de legítima defesa no caso de agressão sofrida, também devemos considerar o caso da agressão sofrida por parte do empregador. Mas como, especificamente? É claro que existem mecanismos legais e governamentais para lidar com isso, mas será que haveria também espaço para uma “greve justa” tratar da questão? Essa é uma pergunta que uma teoria da “greve justa” deveria responder.
Na prática, porém, é difícil pensar em como isso deve ser aplicado, uma vez que há pouco espaço em nossa sociedade “monocromática” para organizações trabalhistas, cooperativas ou sindicatos que se pautem por princípios da ética cristã. Quando esse tipo de coisa existir (se ainda não existe), ela deverá levar em consideração a possibilidade de uma maneira mais criativa e moralmente aceitável de ação coletiva. No momento, é mais simples incentivar a reflexão normativa em cada ramo profissional, além da defesa aos fracos quando há injustiça na relação de trabalho.
Procure saber quais organizações servem de apoio aos cristãos na sua área de atuação. Quem sabe você poderá ajudar de alguma forma, ou receber algum fruto da atuação dessas organizações. Procure saber se existe algum grupo cristão que se dispõe a auxiliar, sem cometer mais injustiça e coerção, aqueles que foram injustamente prejudicados na sua atividade profissional. De novo: talvez você possa apoiar os seus esforços, ou recorrer aos seus serviços. Finalmente, procure se informar a respeito de como um ambiente de regulação trabalhista pesada tem prejudicado a criação e desenvolvimento de organizações cristãs de trabalho que promoveriam uma prática mais consistente com a ética bíblica. Uma sociedade menos “monocromática” requer alguma medida de esforço ativo ao construir “novos blocos” e criticar os “grandes blocos” mantidos pela distorção do sistema.
Fonte: Política Reformada
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