À luz dos estudos anteriores, ficamos com uma pergunta difícil para responder: Como é possível conceber esse caráter historicamente condicionado das Escrituras? A seguinte pergunta de Guthrie parece sincera e importante, embora o referido autor, às vezes, pareça interessado demais em uma flexibilidade exagerada do conceito de revelação bíblica:
Como podemos nós discernir a palavra e a obra de Deus no nosso tempo, em um livro escrito pelas e para as pessoas do antigo Oriente Próximo, as quais tinham uma concepção predominantemente hierárquica e patriarcal a respeito de Deus e da sociedade humana, testemunhavam sua fé com uma visão de mundo pré-científica, e nem mesmo sonhavam com todos os complexos problemas que temos de encarar em nossa sociedade tecnológica moderna? (2000, pág. 59).
Na verdade, podemos ir além e perguntar como será possível fazer uma distinção entre os aspectos da Palavra de Deus que são normativos para todas as épocas e aqueles aspectos que foram exclusivos para as pessoas daquela época? Não há a pretensão de responder plenamente a essa pergunta neste trabalho. Entretanto, essa pergunta precisa ser respondida e a resposta a ela pode ser o caminho para sustentar a Bíblia como Revelação de Deus para o mundo que pretende ser pós-moderno. É isso o que se chama de reconstruir os fundamentos. Na verdade, os teólogos têm feito isso o tempo todo, principalmente quando interpretam que questões relativas a usos e costumes não devem mais ser observadas hoje, porque faziam parte de uma cultura que não existe mais. Haveria mais coisas na Bíblia a se encaixar nessa categoria?
Algo que parece certo é que a verdade precisa necessariamente sobreviver ao mundo pós-moderno. O desconstrucionismo levado às últimas consequências não pode realmente ser levado a sério. A verdade tem de aparecer de algum modo, ou então, os estudos, em quaisquer níveis, serão infundados. Por isso, há base para continuar sustentando uma revelação divina para o mundo pós-moderno. Porém, é preciso eliminar a tendência de considerar a Bíblia apenas como uma fonte de doutrinas cristãs, algo como uma mina onde a Teologia Sistemática vai buscar seus recursos. Algo que precisa ser redescoberto é o caráter narrativo da Escritura. Assim, as narrativas, muitas vezes estranhas do Antigo Testamento, que descrevem o povo de Deus invadindo cidades e matando todo mundo, não precisam ser tomadas ao pé da letra como uma fonte de revelação proposicional da vontade de Deus, mas “podem ser vistas somadas umas às outras para resultar numa narração cumulativa da natureza e caráter de Deus” (McGrath, 2007, pág. 146), demonstrando assim o modo como Deus se relacionou com os seres humanos nas mais diversas épocas respeitando, até certo ponto, o nível e a capacidade de entendimento das pessoas nos momentos específicos e estágios de sua revelação. Ou seja, sempre levando em conta o caráter de “adaptação”. Como McGrath conclui, “em vez de forçar a Escritura a um molde ditado pelas preocupações do iluminismo, o evangelicalismo pode dedicar-se a permitir que a Escritura seja Escritura” (2007, pág. 146). Na prática todo mundo faz isso, pois nenhuma igreja sai por aí invadindo bairros e exterminando todos os que não são fiéis.
Um caminho que parece estar em estrita conformidade com a posição de Calvino e que faz amplo sentido para o mundo pós-moderno é apresentar a Escritura com base naquilo que ela é. Ela é uma obra do Espírito Santo. Somente o Espírito Santo pode comprová-la no coração do homem. Calvino não estava dizendo que a revelação bíblica é irracional ou errada, apenas lembrando que a realidade fundamental de Deus transcende a racionalidade humana, por isso, para se comunicar, Deus teve de se posicionar no nível daqueles que o ouviam. Assim, convém lembrar que “ao entender e expressar a fé cristã, temos de dar espaço para o conceito de ‘mistério’” (Grenz, 1997, pág. 245). Ou seja, não é possível correlacionar tudo aquilo que a Bíblia fala sobre Deus com aquilo que a ciência descobre. Então, a apologética deveria desprender-se da insistência de comprovar a Bíblia com a estrita metodologia iluminista e também deixá-la “falar ao coração” do homem pós-moderno.
É um erro insistir no apelo puramente racional por dois motivos: primeiro, porque não há, no mundo pós-moderno, um conjunto de pressupostos universais aceitos por todos (nem mesmo no “moderno” havia). E segundo, porque o apelo da Bíblia definitivamente não é um apelo puramente racional. A Bíblia se apresenta como a Verdade, não no sentido de que é um conjunto de proposições que podem ser comprovadas ao estilo iluminista, mas porque é aquilo em que se pode confiar. McGrath lembra que a raiz da palavra verdade, principalmente na língua hebraica, não se refere à noção iluminista da correspondência conceitual ou proposicional, mas como algo confiável (2007, ver pag. 149). A confiabilidade da Bíblia não se comprova por meio de lógicas cartesianas ou deduções empiricistas. Ela se comprova principalmente por sua solidez e significância histórica, pois, ao longo de milênios, tem feito sentido para um número incontável de pessoas que têm descoberto nela a verdade que satisfaz a mente e o coração.
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Sobre o autor: Leandro Antonio de Lima é Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano José Manoel da Conceição, Mestre em Teologia e História pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Mackenzie, e doutorando em Letras (Literatura), pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É pastor efetivo da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro em São Paulo e professor de Teologia Sistemática no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição. É também professor de teologia na FITref. Escreveu Razão da Esperança - Teologia para hoje (2006) e Brilhe a sua luz: o cristão e os dilemas da sociedade atual (2009), ambos da Editora Cultura Cristã.
Fonte: [ Novo Calvinismo ]
Extraído do site: [ Eleitos de Deus ]
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