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Silas Daniel respondeu à minha avaliação de seu texto “Em defesa do arminianismo” (publicado na revista Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68) em três longos textos, publicados no site da CPAD. Tratarei de todos eles nesta postagem.
INTRODUÇÃO
Palavras têm significado. Portanto, há que se fazer uma diferença entre semipelagianismo e semiagostinianismo: o primeiro ensina que a graça de Deus e a vontade do homem trabalham juntas na salvação, e o homem deve tomar a iniciativa; a fé e o arrependimento são obras humanas, sendo consideradas pré-requisitos para se receber o Espírito. O segundo ensina que a graça de Deus se estende a todos, capacitando uma pessoa a escolher e a fazer o necessário para a salvação; a fé e o arrependimento são dons do Espírito. Esta diferença não pode ser subestimada. Ainda que o termo “semipelagianismo” tenha sido cunhado pelos luteranos no século XVI, e usado na Epítome da Fórmula de Concórdia, para, retrospectivamente, rotular a teologia associada à João Cassiano (conhecida como massilianismo, mas que também tem sido chamada pelos católicos de semipelagiana).
Já “molinismo” é a noção ensinada pelo jesuíta Luis de Molina, no século XVI. Esta posição foi uma ruptura não só com os ensinos de Agostinho e Aquino sobre a predestinação, mas também com os de Armínio (na medida em que o molinismo defende que Deus sabe que, se certa pessoa for colocada em uma situação particular, ela não irá resistir à graça). O autor busca respaldo no molinista, ainda que se identifique como arminiano. Para tentar responder à questão “quem criou o que Deus previu?”, ele apela à ideia do “conhecimento divino do futuro contingente condicional” (a scientia media, ideia elaborada por de Molina), que supostamente teria respaldo bíblico (ele cita apenas um texto-prova em apoio a esta ideia). O molinismo tem sido popularizado atualmente por William Lane Craig e Alvin Plantinga. No site Bereianos há farto material refutando o molinismo (escritos por Joseph Nally, James Anderson, John Frame, Herman Bavinck, Matthew McMahon, Paul Helm e François Turretini). E na Teologia Sistemática que escrevi com Alan Myatt há seções tratando criticamente esta posição.
De toda forma, a teologia católica tem rejeitado o ensino associado com o semipelaginismo (ou massilianismo) como herético, desde o Sínodo de Orange, de 529 (Denzinger-Hünermann (ed.), Compêndio, 374):
Silas reconhece que errou em seu estudo da soteriologia dos teólogos medievais. Ele havia, confiantemente, escrito em seu artigo publicado na revista Obreiro Aprovado que “o que prevaleceu na Igreja, desde o século 6 em diante, foi uma soteriologia que aceitava a Depravação Total, mas negava o conceito de predestinação”. Agora, nas postagens mais recentes, escreve, corrigindo-se, que “houve um excesso (...) [de sua] parte ao desprezar 100% de todo e qualquer vestígio da compreensão agostiniana em relação à mecânica da Salvação durante a Idade Média”. Tratarei do uso da história por parte de Silas neste texto, mas me causa desconforto o uso recorrente da expressão “mecânica da salvação”, o que, me parece, remete o debate à posição católica popular (como conectada ao recebimento mecânico da graça pelos sacramentos, numa distorção daquilo que o catolicismo denomina de ex opere operato) ou evangélica popular (como relacionada à “aceitação” de Cristo diante do apelo, que assegura aquele que “se decidiu” a salvação, conforme sistema popularizado pelo pelagiano Charles Finney), o que empobrece a linguagem do debate.
1. SOTERIOLOGIA AGOSTINIANA NA IDADE MÉDIA
Parece óbvio escrever isso, mas nenhum especialista em história do pensamento cristão afirmou que há plena concordância entre os teólogos medievais que citei e as formulações de Agostinho, o “Doutor da Graça”, como parece ter entendido o autor. Mas não há como notar que há sim algum tipo de continuidade entre as formulações de Agostinho e dos teólogos medievais que citei anteriormente: Próspero, Gottschalk, Anselmo, Bernardo, Bradwardine, Tomás de Kémpis e Tomás de Aquino, além de Jan Hus e John Wycliffe. Mesmo quanto ao conceito do livre-arbítrio há diferenças de definição entre estes autores (e não só entre eles, mas entre Martinho Lutero, João Calvino e Jonathan Edwards. cf. R. C. Sproul, Sola Gratia). No afã de provar que os autores antigos não eram “calvinistas” (ou, pelo menos, eram mais próximos do “arminianismo”), o autor perdeu de vista o que afirmei em meu primeiro texto, quando lembrei que há diferenças significativas entre os teólogos cristãos, uma constatação que deveria ser óbvia para qualquer um familiarizado com fontes primárias. “Um bom ponto de partida para tratar de temas teológicos controversos é começar com o que afirmam as confissões de fé que resumem as posições das tradições professadas, e não com as posições de teólogos, por mais importantes que estes sejam”. Em outras palavras, o que determina o que tal tradição crê (no caso, a tradição católica, reformada, luterana, batista, etc.) são seus documentos confessionais, não a posição de seus teólogos, mesmo dos mais representativos – pois este recurso, via de regra, se vale da falácia do argumento da autoridade (ad verecundiam) e também suscita a pergunta: por que recorrer a teólogo tal, quando se pode citar outro teólogo?
Usando a data da queda do Império Romano do Ocidente, que a historiografia tradicional emprega para marcar o fim da Antiguidade clássica, o autor rejeita Próspero de Aquitânia como um escritor medieval, desconsiderando o fato de que, intelectualmente, pode-se citar as origens do pensamento medieval cristão em Agostinho de Hipona, o “mestre do ocidente” (Philotheus Boehner e Etienne Gilson, História da filosofia cristã) – por exemplo, Jacques LeGoff situa Agostinho num primeiro período do medievo, que “balança da Antiguidade Tardia e a alta Idade Média” (cf. Homens e mulheres da Idade Média; cf. também A. S. McGrade (org.), Filosofia medieval; Josep-Ignasi Saranyana, La filosofía medieval: desde sus orígenes patrísticos hasta la escolástica barroca; Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média; D. W. Hamlyn, História da filosofia ocidental, etc.). Ao tratar da rejeição da heresia pelagiana no Sínodo de Cartago, em 418, M. Pohlenz afirmou: “O fato de a Igreja ter-se pronunciado por tal doutrina [da necessidade da graça] assinalou o fim da ética pagã e de toda a filosofia helênica – e assim começou a Idade Média” (cf. Giovanni Reale & Dario Antiseri, História da filosofia. v. 2).
De qualquer forma, há algumas afirmações questionáveis por parte do autor sobre os teólogos citados. Sobre Próspero, supondo haver ocorrido uma mudança em sua posição (várias citações deste autor podem ser encontradas em Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 1) – Próspero, após abandonar a Gália, onde contendia com os discípulos de Cassiano, se tornou secretário de Leão I, sendo influente na composição do Tomo a Flaviano, fundamental na preparação da Definição de Calcedônia (cf. Philip Jenkins, Guerras santas). E os cânones do Sínodo de Orange foram baseados em uma coletânea de textos de Agostinho (chamadas Sententiae) “recolhidas em Roma pela metade do século V por Próspero de Aquitânia” (cf. Denzinger-Hünermann (ed.), Compêndio, p. 139). Pode-se citar neste contexto, outro importante agostiniano, Isidoro de Sevilha, considerado o último grande Pai latino, que defendeu as posições agostinianas sobre predestinação e graça em sua obra Etymologie (livro VII) – e foi ele, mais do que Agostinho (que tratou mais da predestinação para a vida eterna, do que à condenação eterna), que formulou a doutrina da predestinação dupla (Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 3).
Sobre Anselmo e Bernardo, o autor reconhece que ambos seguiram a Agostinho, ainda que “foram menos consistentes que Gottschalk em sua fidelidade à visão agostiniana”, como ele mesmo escreve. Mas este não é o ponto em questão. O fato é que ambos eram monergistas, como aqueles que forem às suas obras poderão comprovar. Sobre Bradwardine, o autor afirma, categoricamente, sem apresentar fontes, que ele “não cria na depravação total, dizendo que o pecado original não teria causado consequências mais graves sobre a natureza humana”. Na verdade, este teólogo medieval não enfatizou tal doutrina por uma razão metodológica: “Bradwardine apoia sua teologia anti-pelagiana com uma doutrina metafísica da onipotência divina consideravelmente distinta das ideias de Agostinho, resultando em que a dependência soteriológica total da humanidade em Deus é considerada uma consequência do caráter do ser humano como criatura e não de sua pecaminosidade. A Queda não é, portanto, tida como um divisor de águas na economia da salvação”. Outro teólogo medieval pode ser citado como um firme agostiniano, Gregório de Rimini: “Enquanto o predestinarismo de Bradwardine é resultante de sua doutrina metafísica da onipotência divina, o de Gregório surge de seu conceito cristologicamente centrado na história da salvação” (cf. Alister McGrath, Origens intelectuais da Reforma). De qualquer forma, recomendo a obra de McGrath, que oferece uma boa discussão do impacto de Bradwardine e de Rimini na teologia posterior, e as diferenças entre as escolas filosóficas de ambos.
Acerca de Tomás de Kémpis, há uma carta que Susanna Wesley escreveu ao seu filho John, reclamando por aquele crer na predestinação (datada de 8 de junho de 1725; cf. Susanna Wesley: The Complete Writings). E a respeito de Tomás de Aquino, ele também reconhece que ele “cria na predestinação agostiniana só para os eleitos”. Portanto, a afirmação de seu primeiro artigo, de que não havia ninguém que ensinasse a doutrina da predestinação entre Agostinho e a Reforma Protestante, é falaciosa – ainda que ele reconheça, corretamente, em seu primeiro artigo, que, “do século 16 ao 18 a principal corrente no meio protestante mundial era o que se convencionou chamar de calvinismo”. Portanto, para deixar claro, o que era comum a todos os teólogos medievais citados acima era a crença na predestinação dos eleitos, ou aqueles que são salvos; mas eles (com a possível exceção de Isidoro e Gottschalk) negavam que Deus predestinaria ativamente pecadores ao inferno, desde a eternidade, sem levar em conta suas próprias escolhas. Tal posição está em harmonia com o que havia sido definido no Sínodo de Quierzy, em 850 (cf. Denzinger-Hünermann [ed.], Compêndio, 621-621):
2. A RESSURGÊNCIA DA SOTERIOLOGIA AGOSTINIANA
Silas se equivoca ao supor que dei “a entender que a posição agostiniana referente à (...) Salvação era, se não majoritária, pelo menos de grande influência na Idade Média, quando, na verdade, ela não foi nem majoritária, nem de grande influência na época de nenhum desses nomes, mas muito ao contrário”. Nenhum especialista em história do pensamento cristão fez tal afirmação. Também é evidente para qualquer estudioso do período medieval que o pelagianismo e o massilianismo (ou “semipelagianismo”) eram a posição dominante no catolicismo popular medieval, ainda que os principais teólogos do período seguissem em maior ou menor grau a soteriologia de Agostinho. E é justamente a prevalência do “semipelagianismo” na igreja medieval que fornece o contexto para que a Reforma Protestante seja chamada de “renascença agostiniana” (cf. Timothy George, Teologia dos reformadores) e o movimento puritano inglês e escocês dos séculos XVI e XVII seja chamado de “agostinianismo reformado” (cf. J. I. Packer, “Os puritanos”, Robin Keeley (org.), Fundamentos da teologia cristã).
Assim sendo, é necessário dizer que ainda que quase todos os teólogos reformados e luteranos no continente, assim como os teólogos puritanos na Inglaterra, fossem firmemente monergistas, há diferenças de método e ênfase entre eles, como qualquer leitor dos mesmos sabe (pode-se citar, somente a título de ilustração, Martinho Lutero, Martin Bucer, Ulrich Zwinglio, João Calvino, Teodoro de Beza, William Perkins e William Ames). Aliás, não deixa de ser irônica a tentativa do autor de usar o pensamento de João Calvino como uma espécie de gabarito para analisar os autores mais antigos – quando a obra de Ames, The Marrow of Theology foi imensamente mais influente no calvinismo na Inglaterra e nas treze colônias na América (que se tornariam os Estados Unidos) nos séculos XVII e XVIII que as Institutas da Religião Cristã.
Portanto, mais uma vez: o que define uma tradição não são os escritos dos teólogos que pertencem à certa tradição, mas sim as confissões de fé que resumem esta tradição. Se o leitor, portanto, quer saber o que a tradição reformada ensina sobre predestinação, deve ir diretamente à Confissão de Fé de Westminster (III.1-8), à Confissão Belga (Artigo 16), à Segunda Confissão Helvética (X.1-9) e aos Cânones de Dort (I.6-18, II.8-9, e rejeições de erros).
3. A PROGRESSÃO DO DOGMA
Em nenhum de meus escritos afirmo algo como uma “forte linhagem histórica calvinista”, como o autor sugere. Nem mesmo fiz isso em minha avaliação do artigo dele. Na verdade, a meu ver, o maior erro presente na análise histórica de Silas Daniel é o anacronismo, que “consiste em utilizar os conceitos e ideias de uma época para analisar os fatos de outro tempo” – segundo Lucien Febvre, o pecado mortal do historiador. Com isso, as nuances e diferenças na soteriologia dos pais latinos e gregos que viveram antes de Agostinho, assim como dos teólogos medievais, são perdidas, justamente por, no caso, o autor não permitir aos Pais da Igreja e Medievais falarem, mas tentar impor a estes autores categorias interpretativas estranhas ao pensamento deles, tais como “cinco pontos do calvinismo” ou do “arminianismo”. Ele constantemente usa estas categorias de avaliação (ou lentes interpretativas), tentando achar “textos-prova”, a favor ou contra estes, nos diversos escritores citados. Portanto, o uso destes eixos interpretativos, de forma anacrônica, torna sua pesquisa histórica comprometida.
Os eixos interpretativos devem ser: monergismo e sinergismo, ou agostinianismo e pelagianismo (e suas gradações, semiagostinianismo e “semipelagianismo”). Neste sentido, todos os autores que citei afirmaram uma soteriologia monergística (ainda que com diferenças entre si e inconsistências), e todos os que citei, em maior ou menor grau, seguiram as formulações de Agostinho sobre a predestinação (cf. a tabela em Reginald Garrigou-Lagrange, Grace: Commentary on the Summa Theologica of St. Thomas, ch. 1). Deve-se ter em mente que o autor-chave que mitigou e reinterpretou os ensinos de Agostinho sobre a graça foi Gregório I, o Grande – e que, junto com Agostinho, é considerado um dos “fundadores da Idade Média” latina (cf. J. LeGoff, Homens e mulheres da Idade Média).
O autor cita Jack Cottrell em seu apoio, para afirmar o que deveria ser claro: que nenhum Pai da Igreja antes de Agostinho cria na predestinação graciosa e soberana, ainda que usem tal fraseologia ocasionalmente (cf. 1 Clemente, 1.1; 6.1; 29.1; 46.4; 50.6-7). Mas, ao mesmo tempo em que critica Michael Horton, Cottrell (e, parece, Silas) cai no mesmo erro que ele visa corrigir; ele, aparentemente, não faz o serviço completo, ou seja, demonstrar qual seja a doutrina da salvação dos Pais da Igreja antes de Agostinho.
Por exemplo, a noção de livre-arbítrio em vários dos Pais (Justino, Irene e Tertuliano) estava, na maioria das vezes, conectada à teodicéia, não à soteriologia. E isso se deu porque a apologética destes Pais era dirigida contra o determinismo cego presente na cultura greco-romana. Sobre a salvação, em linhas gerais, os Pais diziam que a antiga lei tinha sido abolida, e o evangelho seria a nova lei. Deste modo, os Pais ressaltaram a obediência à esta nova lei, bem como a imitação de Cristo, como sendo o caminho da salvação, e o conteúdo essencial da vida cristã. Mesmo em Agostinho não havia uma noção da imputação da justiça de Cristo aos pecadores, recebida pela fé somente (um tema-chave da Reforma protestante do século XVI). Também se enfatizava que o Espírito Santo era recebido por meio do sacramento do batismo. Em outras ocasiões, a salvação era apresentada em termos de imortalidade e indestrutibilidade, em vez de perdão dos pecados. E vários dos Pais orientais, inclusive João Cassiano, no ocidente, afirmaram a doutrina sinergística da theosis, ensinando que a salvação seria adquirida por meio da divinização do homem. Em linhas gerais, estas várias formulações confundiram os ensinos bíblicos sobre a justificação e a santificação. Por outro lado, a noção da eleição por meio da presciência divina estava conectada, muitas vezes, com a previsão de algum tipo de mérito. Justino, por exemplo, afirmou que Deus “prevê que alguns se salvarão pela penitência” (cf. 1 Apologia, 28.2). Ainda assim, a morte e a ressurreição de Cristo eram enfatizadas como constituindo o fundamento da salvação dos homens – mas Cottrell e Silas parecem ignorar estas nuanças, que tornam a teologia dos Pais bem diferente da posição arminiana clássica (para a soteriologia dos Pais da Igreja, cf. J. N. D. Kelly, Patrística, caps. 13-14; Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 1, cap. 6).
De qualquer forma, duvido que um arminiano genuíno endosse tais posições – e Silas cai na própria armadilha que visa refutar. Por causa da interpretação anacrônica que arminianos contemporâneos (e mesmo calvinistas, como Steven J. Lawson, no irregular Pilares da graça, v. 2) fazem dos escritores cristãos da Antiguidade e do Medievo, variações e diferenças entre os escritores antigos na soteriologia são ignoradas, justamente por não permitir que estes escritores falem, mas tentar impor categorias interpretativas estranhas ao pensamento deles. Mesmo a interpretação que Silas oferece de aspectos da soteriologia de Agostinho incorre no anacronismo, pois ele tenta interpretá-la pela lente dos “cinco pontos” do calvinismo. Uma interpretação da posição de Agostinho, sucinta, sóbria e muito mais perto da verdade, é sugerida por Colin Brown (cf. Filosofia e fé cristã):
O que é preciso ter em mente é que os escritos dos Pais da Igreja, especialmente no que se refere ao ensino da graça antes da controvérsia pelagiana, não pretendiam ser apresentações doutrinárias sobre salvação no sentido estrito do termo. Como resultado, não podemos esperar deles um quadro completo destes artigos de fé. Até porque a soteriologia não foi um problema com o qual eles precisaram se defrontar, já que os principais debates estavam relacionados com a Trindade e a divindade de Cristo – e resulta daí as tensões e mesmo contradições presentes em seus escritos, quando tratam da soteriologia.
Também é importante destacar que o Sínodo de Orange rejeitou o pelagianismo e o “semipelagianismo” (massilianismo), e a noção de que Deus predestinaria pecadores à perdição. Mas não rejeitou a predestinação para a vida eterna, e afirmou que a fé seria resultado da ação prévia do Espírito Santo (Denzinger-Hünermann (ed.), Compêndio, 397):
O que se rejeitou no Sínodo de Orange, portanto, foi a ideia de que predestinação e reprovação seriam noções simétricas. A posição estabelecida neste sínodo foi reafirmada no Sínodo de Quierzy, em 853, que rejeitou o ensino da predestinação à perdição (atribuído a Gottschalk), reafirmando que Deus predestina pela graça e salva pela misericórdia, e a reprovação é um ato de perfeita justiça, que pronuncia a pena unicamente para punir a falta, e após a previsão dessa: “Cap. 3. (...) Que alguns sejam salvos é dom daquele que salva; que alguns ao contrário se percam é culpa dos que se perdem” (Denzinger-Hünermann [eds.], Compêndio, 623). O Sínodo de Valença, realizado em 855, afirmou: “Cân. 3. (...) Assim professamos com fé a predestinação dos eleitos à vida e a predestinação dos ímpios à morte; na eleição dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito, mas na condenação dos que perecerão, o desmérito precede o juízo de Deus” (Denzinger-Hünermann [eds.], Compêndio, 628).
CONCLUSÕES
Três observações finais: parece que Silas ficou espantado com a repercussão de seu texto, mesmo em círculos fora das Assembleias de Deus. Isso se deu, me parece, por ser um texto bem escrito e por, finalmente, haver uma boa defesa do arminianismo – não do velho pelaginismo, ainda tão presente em nosso meio, mesmo em denominações históricas. E deve-se ter em mente que o debate soteriológico não está circunscrito a uma denominação. Ao escrever sua defesa do arminianismo, o autor está dialogando com toda a igreja evangélica.
Não indiquei ao Silas comentários bíblicos para suplementar a falta de exegese em seu texto. Isso seria indelicadeza de minha parte. Os indiquei aos leitores de meu texto, como qualquer um pode conferir, indo à primeira postagem. De qualquer forma, o desafio feito ao fim daquele texto permanece – por mais valioso que seja o diálogo com a tradição cristã, no fim, o que decidirá todo debate entre irmãos será a “exegese, exegese e mais exegese”. Pois, como diz a Confissão Belga (Artigo 2), “Deus se fez conhecer, ainda mais clara e plenamente, por sua sagrada e divina Palavra, isto é, tanto quanto nos é necessário nesta vida, para sua glória e para a salvação dos que lhe pertencem”.
Por fim, muitos leitores elogiaram o tom cordial de parte a parte. Isso se dá porque Silas, diferente de escritores pelagianos, não trata o calvinismo como uma heresia. E, é necessário deixar claro, mesmo calvinistas não tratam o arminianismo como herético. Ou, pelo menos, não deveriam. Por exemplo: Agostinho, refutou os erros dos massilianos (“semipelagianos”) em duas obras (A predestinação dos santos e O dom da esperança), mas tratou-os como irmãos ou amigos errados, não como hereges. William Ames (que foi conselheiro do presidente do Sínodo de Dort, Johannes Bogerman), escreveu que o arminianismo “não é corretamente uma heresia, mas um erro perigoso na fé”.
John Wesley reconheceu, em 1745, que sua teologia estava “a um fio de cabelo” do pensamento de João Calvino: “Ao atribuir todo o bem à livre graça de Deus. Ao negar o livre-arbítrio natural e o poder antecedente à graça. E, ao excluir o mérito humano; mesmo para o que ele realizou ou pratica pela graça de Deus”. Isso é exemplificado numa conversa que Charles Simeon teve com Wesley, em 1784:
O grande desejo de John Wesley, ao qual ele devotou sua vida, foi pregar “as três grandes doutrinas bíblicas: o pecado original, a justificação pela fé e a consequente santidade”. Que Deus nos dê de seu Espírito Santo para não apenas confessar tais doutrinas, mas pregá-las com zelo e paixão nesta época em que a igreja cristã é desafiada e confrontada com um ambiente cultural e político cada vez mais hostil à fé evangélica.
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Por Franklin Ferreira
Silas Daniel respondeu à minha avaliação de seu texto “Em defesa do arminianismo” (publicado na revista Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68) em três longos textos, publicados no site da CPAD. Tratarei de todos eles nesta postagem.
INTRODUÇÃO
Palavras têm significado. Portanto, há que se fazer uma diferença entre semipelagianismo e semiagostinianismo: o primeiro ensina que a graça de Deus e a vontade do homem trabalham juntas na salvação, e o homem deve tomar a iniciativa; a fé e o arrependimento são obras humanas, sendo consideradas pré-requisitos para se receber o Espírito. O segundo ensina que a graça de Deus se estende a todos, capacitando uma pessoa a escolher e a fazer o necessário para a salvação; a fé e o arrependimento são dons do Espírito. Esta diferença não pode ser subestimada. Ainda que o termo “semipelagianismo” tenha sido cunhado pelos luteranos no século XVI, e usado na Epítome da Fórmula de Concórdia, para, retrospectivamente, rotular a teologia associada à João Cassiano (conhecida como massilianismo, mas que também tem sido chamada pelos católicos de semipelagiana).
Já “molinismo” é a noção ensinada pelo jesuíta Luis de Molina, no século XVI. Esta posição foi uma ruptura não só com os ensinos de Agostinho e Aquino sobre a predestinação, mas também com os de Armínio (na medida em que o molinismo defende que Deus sabe que, se certa pessoa for colocada em uma situação particular, ela não irá resistir à graça). O autor busca respaldo no molinista, ainda que se identifique como arminiano. Para tentar responder à questão “quem criou o que Deus previu?”, ele apela à ideia do “conhecimento divino do futuro contingente condicional” (a scientia media, ideia elaborada por de Molina), que supostamente teria respaldo bíblico (ele cita apenas um texto-prova em apoio a esta ideia). O molinismo tem sido popularizado atualmente por William Lane Craig e Alvin Plantinga. No site Bereianos há farto material refutando o molinismo (escritos por Joseph Nally, James Anderson, John Frame, Herman Bavinck, Matthew McMahon, Paul Helm e François Turretini). E na Teologia Sistemática que escrevi com Alan Myatt há seções tratando criticamente esta posição.
De toda forma, a teologia católica tem rejeitado o ensino associado com o semipelaginismo (ou massilianismo) como herético, desde o Sínodo de Orange, de 529 (Denzinger-Hünermann (ed.), Compêndio, 374):
“Cân. 4. Se alguém professa que, para sermos purificados do pecado, Deus aguardou a nossa vontade, não porém que também o querer ser purificados se dá em nós mediante a inspiração e a obra do Espírito Santo, este tal se opõe ao mesmo Espírito Santo, que diz por meio de Salomão: ‘A vontade é preparada pelo Senhor [Pv 8.35 septg.], e ao Apóstolo, que salutarmente anuncia: ‘É Deus que opera em vós tanto o querer como o realizar segundo seu beneplácito’ [cf. Fp 2.13]”.
Silas reconhece que errou em seu estudo da soteriologia dos teólogos medievais. Ele havia, confiantemente, escrito em seu artigo publicado na revista Obreiro Aprovado que “o que prevaleceu na Igreja, desde o século 6 em diante, foi uma soteriologia que aceitava a Depravação Total, mas negava o conceito de predestinação”. Agora, nas postagens mais recentes, escreve, corrigindo-se, que “houve um excesso (...) [de sua] parte ao desprezar 100% de todo e qualquer vestígio da compreensão agostiniana em relação à mecânica da Salvação durante a Idade Média”. Tratarei do uso da história por parte de Silas neste texto, mas me causa desconforto o uso recorrente da expressão “mecânica da salvação”, o que, me parece, remete o debate à posição católica popular (como conectada ao recebimento mecânico da graça pelos sacramentos, numa distorção daquilo que o catolicismo denomina de ex opere operato) ou evangélica popular (como relacionada à “aceitação” de Cristo diante do apelo, que assegura aquele que “se decidiu” a salvação, conforme sistema popularizado pelo pelagiano Charles Finney), o que empobrece a linguagem do debate.
1. SOTERIOLOGIA AGOSTINIANA NA IDADE MÉDIA
Parece óbvio escrever isso, mas nenhum especialista em história do pensamento cristão afirmou que há plena concordância entre os teólogos medievais que citei e as formulações de Agostinho, o “Doutor da Graça”, como parece ter entendido o autor. Mas não há como notar que há sim algum tipo de continuidade entre as formulações de Agostinho e dos teólogos medievais que citei anteriormente: Próspero, Gottschalk, Anselmo, Bernardo, Bradwardine, Tomás de Kémpis e Tomás de Aquino, além de Jan Hus e John Wycliffe. Mesmo quanto ao conceito do livre-arbítrio há diferenças de definição entre estes autores (e não só entre eles, mas entre Martinho Lutero, João Calvino e Jonathan Edwards. cf. R. C. Sproul, Sola Gratia). No afã de provar que os autores antigos não eram “calvinistas” (ou, pelo menos, eram mais próximos do “arminianismo”), o autor perdeu de vista o que afirmei em meu primeiro texto, quando lembrei que há diferenças significativas entre os teólogos cristãos, uma constatação que deveria ser óbvia para qualquer um familiarizado com fontes primárias. “Um bom ponto de partida para tratar de temas teológicos controversos é começar com o que afirmam as confissões de fé que resumem as posições das tradições professadas, e não com as posições de teólogos, por mais importantes que estes sejam”. Em outras palavras, o que determina o que tal tradição crê (no caso, a tradição católica, reformada, luterana, batista, etc.) são seus documentos confessionais, não a posição de seus teólogos, mesmo dos mais representativos – pois este recurso, via de regra, se vale da falácia do argumento da autoridade (ad verecundiam) e também suscita a pergunta: por que recorrer a teólogo tal, quando se pode citar outro teólogo?
Usando a data da queda do Império Romano do Ocidente, que a historiografia tradicional emprega para marcar o fim da Antiguidade clássica, o autor rejeita Próspero de Aquitânia como um escritor medieval, desconsiderando o fato de que, intelectualmente, pode-se citar as origens do pensamento medieval cristão em Agostinho de Hipona, o “mestre do ocidente” (Philotheus Boehner e Etienne Gilson, História da filosofia cristã) – por exemplo, Jacques LeGoff situa Agostinho num primeiro período do medievo, que “balança da Antiguidade Tardia e a alta Idade Média” (cf. Homens e mulheres da Idade Média; cf. também A. S. McGrade (org.), Filosofia medieval; Josep-Ignasi Saranyana, La filosofía medieval: desde sus orígenes patrísticos hasta la escolástica barroca; Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média; D. W. Hamlyn, História da filosofia ocidental, etc.). Ao tratar da rejeição da heresia pelagiana no Sínodo de Cartago, em 418, M. Pohlenz afirmou: “O fato de a Igreja ter-se pronunciado por tal doutrina [da necessidade da graça] assinalou o fim da ética pagã e de toda a filosofia helênica – e assim começou a Idade Média” (cf. Giovanni Reale & Dario Antiseri, História da filosofia. v. 2).
De qualquer forma, há algumas afirmações questionáveis por parte do autor sobre os teólogos citados. Sobre Próspero, supondo haver ocorrido uma mudança em sua posição (várias citações deste autor podem ser encontradas em Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 1) – Próspero, após abandonar a Gália, onde contendia com os discípulos de Cassiano, se tornou secretário de Leão I, sendo influente na composição do Tomo a Flaviano, fundamental na preparação da Definição de Calcedônia (cf. Philip Jenkins, Guerras santas). E os cânones do Sínodo de Orange foram baseados em uma coletânea de textos de Agostinho (chamadas Sententiae) “recolhidas em Roma pela metade do século V por Próspero de Aquitânia” (cf. Denzinger-Hünermann (ed.), Compêndio, p. 139). Pode-se citar neste contexto, outro importante agostiniano, Isidoro de Sevilha, considerado o último grande Pai latino, que defendeu as posições agostinianas sobre predestinação e graça em sua obra Etymologie (livro VII) – e foi ele, mais do que Agostinho (que tratou mais da predestinação para a vida eterna, do que à condenação eterna), que formulou a doutrina da predestinação dupla (Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 3).
Sobre Anselmo e Bernardo, o autor reconhece que ambos seguiram a Agostinho, ainda que “foram menos consistentes que Gottschalk em sua fidelidade à visão agostiniana”, como ele mesmo escreve. Mas este não é o ponto em questão. O fato é que ambos eram monergistas, como aqueles que forem às suas obras poderão comprovar. Sobre Bradwardine, o autor afirma, categoricamente, sem apresentar fontes, que ele “não cria na depravação total, dizendo que o pecado original não teria causado consequências mais graves sobre a natureza humana”. Na verdade, este teólogo medieval não enfatizou tal doutrina por uma razão metodológica: “Bradwardine apoia sua teologia anti-pelagiana com uma doutrina metafísica da onipotência divina consideravelmente distinta das ideias de Agostinho, resultando em que a dependência soteriológica total da humanidade em Deus é considerada uma consequência do caráter do ser humano como criatura e não de sua pecaminosidade. A Queda não é, portanto, tida como um divisor de águas na economia da salvação”. Outro teólogo medieval pode ser citado como um firme agostiniano, Gregório de Rimini: “Enquanto o predestinarismo de Bradwardine é resultante de sua doutrina metafísica da onipotência divina, o de Gregório surge de seu conceito cristologicamente centrado na história da salvação” (cf. Alister McGrath, Origens intelectuais da Reforma). De qualquer forma, recomendo a obra de McGrath, que oferece uma boa discussão do impacto de Bradwardine e de Rimini na teologia posterior, e as diferenças entre as escolas filosóficas de ambos.
Acerca de Tomás de Kémpis, há uma carta que Susanna Wesley escreveu ao seu filho John, reclamando por aquele crer na predestinação (datada de 8 de junho de 1725; cf. Susanna Wesley: The Complete Writings). E a respeito de Tomás de Aquino, ele também reconhece que ele “cria na predestinação agostiniana só para os eleitos”. Portanto, a afirmação de seu primeiro artigo, de que não havia ninguém que ensinasse a doutrina da predestinação entre Agostinho e a Reforma Protestante, é falaciosa – ainda que ele reconheça, corretamente, em seu primeiro artigo, que, “do século 16 ao 18 a principal corrente no meio protestante mundial era o que se convencionou chamar de calvinismo”. Portanto, para deixar claro, o que era comum a todos os teólogos medievais citados acima era a crença na predestinação dos eleitos, ou aqueles que são salvos; mas eles (com a possível exceção de Isidoro e Gottschalk) negavam que Deus predestinaria ativamente pecadores ao inferno, desde a eternidade, sem levar em conta suas próprias escolhas. Tal posição está em harmonia com o que havia sido definido no Sínodo de Quierzy, em 850 (cf. Denzinger-Hünermann [ed.], Compêndio, 621-621):
“Cap. 1. Deus onipotente criou o homem sem pecado, reto e com livre-arbítrio e, querendo que permanecesse na santidade da justiça, colocou-o no paraíso. O homem, porém, usando mal o livre-arbítrio, pecou e caiu, e se tornou a ‘massa da perdição’ de todo o gênero humano. Deus bom e justo escolheu, porém, dessa massa de perdição, segundo sua presciência, os que por graça predestinou [Rm 8.29s; Ef 1.11] à vida, e predestinou-lhes a vida eterna; dos outros, porém, que segundo o juízo da justiça deixou na massa da perdição, ele sabia com antecedência que se perderiam, não porque os tivesse predestinado a se perderem, mas porque, sendo justo, lhes predestinou uma pena eterna. E por isso falamos, simplesmente, de uma só predestinação de Deus, que se refere quer ao dom da graça, quer à retribuição da justiça.
Cap. 2. No primeiro homem perdemos o livre-arbítrio, e o recebemos mediante Cristo nosso Senhor; de uma parte, temos o livre-arbítrio para o bem, prevenido e ajudado pela graça, de outra temos o livre-arbítrio para o mal, abandonado pela graça. Temos, pois, o livre-arbítrio, porque foi libertado pela graça e pela graça foi sanado do arbítrio corrompido.”
2. A RESSURGÊNCIA DA SOTERIOLOGIA AGOSTINIANA
Silas se equivoca ao supor que dei “a entender que a posição agostiniana referente à (...) Salvação era, se não majoritária, pelo menos de grande influência na Idade Média, quando, na verdade, ela não foi nem majoritária, nem de grande influência na época de nenhum desses nomes, mas muito ao contrário”. Nenhum especialista em história do pensamento cristão fez tal afirmação. Também é evidente para qualquer estudioso do período medieval que o pelagianismo e o massilianismo (ou “semipelagianismo”) eram a posição dominante no catolicismo popular medieval, ainda que os principais teólogos do período seguissem em maior ou menor grau a soteriologia de Agostinho. E é justamente a prevalência do “semipelagianismo” na igreja medieval que fornece o contexto para que a Reforma Protestante seja chamada de “renascença agostiniana” (cf. Timothy George, Teologia dos reformadores) e o movimento puritano inglês e escocês dos séculos XVI e XVII seja chamado de “agostinianismo reformado” (cf. J. I. Packer, “Os puritanos”, Robin Keeley (org.), Fundamentos da teologia cristã).
Assim sendo, é necessário dizer que ainda que quase todos os teólogos reformados e luteranos no continente, assim como os teólogos puritanos na Inglaterra, fossem firmemente monergistas, há diferenças de método e ênfase entre eles, como qualquer leitor dos mesmos sabe (pode-se citar, somente a título de ilustração, Martinho Lutero, Martin Bucer, Ulrich Zwinglio, João Calvino, Teodoro de Beza, William Perkins e William Ames). Aliás, não deixa de ser irônica a tentativa do autor de usar o pensamento de João Calvino como uma espécie de gabarito para analisar os autores mais antigos – quando a obra de Ames, The Marrow of Theology foi imensamente mais influente no calvinismo na Inglaterra e nas treze colônias na América (que se tornariam os Estados Unidos) nos séculos XVII e XVIII que as Institutas da Religião Cristã.
Portanto, mais uma vez: o que define uma tradição não são os escritos dos teólogos que pertencem à certa tradição, mas sim as confissões de fé que resumem esta tradição. Se o leitor, portanto, quer saber o que a tradição reformada ensina sobre predestinação, deve ir diretamente à Confissão de Fé de Westminster (III.1-8), à Confissão Belga (Artigo 16), à Segunda Confissão Helvética (X.1-9) e aos Cânones de Dort (I.6-18, II.8-9, e rejeições de erros).
3. A PROGRESSÃO DO DOGMA
Em nenhum de meus escritos afirmo algo como uma “forte linhagem histórica calvinista”, como o autor sugere. Nem mesmo fiz isso em minha avaliação do artigo dele. Na verdade, a meu ver, o maior erro presente na análise histórica de Silas Daniel é o anacronismo, que “consiste em utilizar os conceitos e ideias de uma época para analisar os fatos de outro tempo” – segundo Lucien Febvre, o pecado mortal do historiador. Com isso, as nuances e diferenças na soteriologia dos pais latinos e gregos que viveram antes de Agostinho, assim como dos teólogos medievais, são perdidas, justamente por, no caso, o autor não permitir aos Pais da Igreja e Medievais falarem, mas tentar impor a estes autores categorias interpretativas estranhas ao pensamento deles, tais como “cinco pontos do calvinismo” ou do “arminianismo”. Ele constantemente usa estas categorias de avaliação (ou lentes interpretativas), tentando achar “textos-prova”, a favor ou contra estes, nos diversos escritores citados. Portanto, o uso destes eixos interpretativos, de forma anacrônica, torna sua pesquisa histórica comprometida.
Os eixos interpretativos devem ser: monergismo e sinergismo, ou agostinianismo e pelagianismo (e suas gradações, semiagostinianismo e “semipelagianismo”). Neste sentido, todos os autores que citei afirmaram uma soteriologia monergística (ainda que com diferenças entre si e inconsistências), e todos os que citei, em maior ou menor grau, seguiram as formulações de Agostinho sobre a predestinação (cf. a tabela em Reginald Garrigou-Lagrange, Grace: Commentary on the Summa Theologica of St. Thomas, ch. 1). Deve-se ter em mente que o autor-chave que mitigou e reinterpretou os ensinos de Agostinho sobre a graça foi Gregório I, o Grande – e que, junto com Agostinho, é considerado um dos “fundadores da Idade Média” latina (cf. J. LeGoff, Homens e mulheres da Idade Média).
O autor cita Jack Cottrell em seu apoio, para afirmar o que deveria ser claro: que nenhum Pai da Igreja antes de Agostinho cria na predestinação graciosa e soberana, ainda que usem tal fraseologia ocasionalmente (cf. 1 Clemente, 1.1; 6.1; 29.1; 46.4; 50.6-7). Mas, ao mesmo tempo em que critica Michael Horton, Cottrell (e, parece, Silas) cai no mesmo erro que ele visa corrigir; ele, aparentemente, não faz o serviço completo, ou seja, demonstrar qual seja a doutrina da salvação dos Pais da Igreja antes de Agostinho.
Por exemplo, a noção de livre-arbítrio em vários dos Pais (Justino, Irene e Tertuliano) estava, na maioria das vezes, conectada à teodicéia, não à soteriologia. E isso se deu porque a apologética destes Pais era dirigida contra o determinismo cego presente na cultura greco-romana. Sobre a salvação, em linhas gerais, os Pais diziam que a antiga lei tinha sido abolida, e o evangelho seria a nova lei. Deste modo, os Pais ressaltaram a obediência à esta nova lei, bem como a imitação de Cristo, como sendo o caminho da salvação, e o conteúdo essencial da vida cristã. Mesmo em Agostinho não havia uma noção da imputação da justiça de Cristo aos pecadores, recebida pela fé somente (um tema-chave da Reforma protestante do século XVI). Também se enfatizava que o Espírito Santo era recebido por meio do sacramento do batismo. Em outras ocasiões, a salvação era apresentada em termos de imortalidade e indestrutibilidade, em vez de perdão dos pecados. E vários dos Pais orientais, inclusive João Cassiano, no ocidente, afirmaram a doutrina sinergística da theosis, ensinando que a salvação seria adquirida por meio da divinização do homem. Em linhas gerais, estas várias formulações confundiram os ensinos bíblicos sobre a justificação e a santificação. Por outro lado, a noção da eleição por meio da presciência divina estava conectada, muitas vezes, com a previsão de algum tipo de mérito. Justino, por exemplo, afirmou que Deus “prevê que alguns se salvarão pela penitência” (cf. 1 Apologia, 28.2). Ainda assim, a morte e a ressurreição de Cristo eram enfatizadas como constituindo o fundamento da salvação dos homens – mas Cottrell e Silas parecem ignorar estas nuanças, que tornam a teologia dos Pais bem diferente da posição arminiana clássica (para a soteriologia dos Pais da Igreja, cf. J. N. D. Kelly, Patrística, caps. 13-14; Jaroslav Pelikan, A tradição cristã, v. 1, cap. 6).
De qualquer forma, duvido que um arminiano genuíno endosse tais posições – e Silas cai na própria armadilha que visa refutar. Por causa da interpretação anacrônica que arminianos contemporâneos (e mesmo calvinistas, como Steven J. Lawson, no irregular Pilares da graça, v. 2) fazem dos escritores cristãos da Antiguidade e do Medievo, variações e diferenças entre os escritores antigos na soteriologia são ignoradas, justamente por não permitir que estes escritores falem, mas tentar impor categorias interpretativas estranhas ao pensamento deles. Mesmo a interpretação que Silas oferece de aspectos da soteriologia de Agostinho incorre no anacronismo, pois ele tenta interpretá-la pela lente dos “cinco pontos” do calvinismo. Uma interpretação da posição de Agostinho, sucinta, sóbria e muito mais perto da verdade, é sugerida por Colin Brown (cf. Filosofia e fé cristã):
“Frequentemente tem sido dito que tanto o catolicismo quanto o protestantismo têm sua origem em Agostinho. O primeiro obtém dele (mas não exclusivamente dele) seu alto conceito da igreja e dos sacramentos. O último segue Agostinho na sua visão da soberania de Deus, da perdição do homem no pecado e da graça de Deus que é o meio exclusivo para trazer a salvação ao homem. Assim como ocorre a todos os ditados fáceis, esta declaração acerca de Agostinho simplifica demais. Há, certamente, católicos hoje que compartilham do ponto de vista de Agostinho acerca da salvação e protestantes que não compartilham dele. Seja como for, porém, foi de Agostinho mais do que qualquer outro teólogo individualmente que o pensamento medieval recebeu seu arcabouço teológico de ideias. Mesmo quando pensadores posteriores alteraram a pintura dentro do quadro, o arcabouço com que começaram foi a teologia da igreja primitiva em geral e a de Agostinho em particular”.
O que é preciso ter em mente é que os escritos dos Pais da Igreja, especialmente no que se refere ao ensino da graça antes da controvérsia pelagiana, não pretendiam ser apresentações doutrinárias sobre salvação no sentido estrito do termo. Como resultado, não podemos esperar deles um quadro completo destes artigos de fé. Até porque a soteriologia não foi um problema com o qual eles precisaram se defrontar, já que os principais debates estavam relacionados com a Trindade e a divindade de Cristo – e resulta daí as tensões e mesmo contradições presentes em seus escritos, quando tratam da soteriologia.
Também é importante destacar que o Sínodo de Orange rejeitou o pelagianismo e o “semipelagianismo” (massilianismo), e a noção de que Deus predestinaria pecadores à perdição. Mas não rejeitou a predestinação para a vida eterna, e afirmou que a fé seria resultado da ação prévia do Espírito Santo (Denzinger-Hünermann (ed.), Compêndio, 397):
“[Conclusão redigida pelo bispo Cesário de Arles] Segundo a fé católica cremos também que, depois de ter recebido a graça pelo batismo, todos os batizados, com o auxílio e a cooperação de Cristo, podem e devem cumprir quanto diz respeito à salvação da alma, se quiserem empenhar-se fielmente. Ao contrário, não só não acreditamos que pelo divino poder alguns tenham sido predestinados ao mal, mas, se há alguns que querem crer em tamanho mal, com toda a reprovação lhes dizemos: anátema!
Professamos e cremos também, para nossa salvação, que cada boa obra não somos nós a iniciar, sendo depois ajudados pela misericórdia de Deus, mas que ele, sem que preceda algum mérito bom, nos inspira antes de tudo a fé e o amor a ele, para que, de uma parte, procuremos com fé o sacramento do batismo e, de outra, depois do batismo, com seu auxílio possamos cumprir o que lhe agrada. Por isso, evidentissimamente, é preciso crer que tão admirável fé – seja a do ladrão que o Senhor chamou para a pátria do paraíso [Lc 23.43], seja a do centurião Cornélio [At 10.3], seja a de Zaqueu, que mereceu acolher o próprio Senhor [Lc 19.6] – não vem da natureza, mas foi doada pela generosidade da graça divina”.
O que se rejeitou no Sínodo de Orange, portanto, foi a ideia de que predestinação e reprovação seriam noções simétricas. A posição estabelecida neste sínodo foi reafirmada no Sínodo de Quierzy, em 853, que rejeitou o ensino da predestinação à perdição (atribuído a Gottschalk), reafirmando que Deus predestina pela graça e salva pela misericórdia, e a reprovação é um ato de perfeita justiça, que pronuncia a pena unicamente para punir a falta, e após a previsão dessa: “Cap. 3. (...) Que alguns sejam salvos é dom daquele que salva; que alguns ao contrário se percam é culpa dos que se perdem” (Denzinger-Hünermann [eds.], Compêndio, 623). O Sínodo de Valença, realizado em 855, afirmou: “Cân. 3. (...) Assim professamos com fé a predestinação dos eleitos à vida e a predestinação dos ímpios à morte; na eleição dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito, mas na condenação dos que perecerão, o desmérito precede o juízo de Deus” (Denzinger-Hünermann [eds.], Compêndio, 628).
CONCLUSÕES
Três observações finais: parece que Silas ficou espantado com a repercussão de seu texto, mesmo em círculos fora das Assembleias de Deus. Isso se deu, me parece, por ser um texto bem escrito e por, finalmente, haver uma boa defesa do arminianismo – não do velho pelaginismo, ainda tão presente em nosso meio, mesmo em denominações históricas. E deve-se ter em mente que o debate soteriológico não está circunscrito a uma denominação. Ao escrever sua defesa do arminianismo, o autor está dialogando com toda a igreja evangélica.
Não indiquei ao Silas comentários bíblicos para suplementar a falta de exegese em seu texto. Isso seria indelicadeza de minha parte. Os indiquei aos leitores de meu texto, como qualquer um pode conferir, indo à primeira postagem. De qualquer forma, o desafio feito ao fim daquele texto permanece – por mais valioso que seja o diálogo com a tradição cristã, no fim, o que decidirá todo debate entre irmãos será a “exegese, exegese e mais exegese”. Pois, como diz a Confissão Belga (Artigo 2), “Deus se fez conhecer, ainda mais clara e plenamente, por sua sagrada e divina Palavra, isto é, tanto quanto nos é necessário nesta vida, para sua glória e para a salvação dos que lhe pertencem”.
Por fim, muitos leitores elogiaram o tom cordial de parte a parte. Isso se dá porque Silas, diferente de escritores pelagianos, não trata o calvinismo como uma heresia. E, é necessário deixar claro, mesmo calvinistas não tratam o arminianismo como herético. Ou, pelo menos, não deveriam. Por exemplo: Agostinho, refutou os erros dos massilianos (“semipelagianos”) em duas obras (A predestinação dos santos e O dom da esperança), mas tratou-os como irmãos ou amigos errados, não como hereges. William Ames (que foi conselheiro do presidente do Sínodo de Dort, Johannes Bogerman), escreveu que o arminianismo “não é corretamente uma heresia, mas um erro perigoso na fé”.
John Wesley reconheceu, em 1745, que sua teologia estava “a um fio de cabelo” do pensamento de João Calvino: “Ao atribuir todo o bem à livre graça de Deus. Ao negar o livre-arbítrio natural e o poder antecedente à graça. E, ao excluir o mérito humano; mesmo para o que ele realizou ou pratica pela graça de Deus”. Isso é exemplificado numa conversa que Charles Simeon teve com Wesley, em 1784:
“Senhor, sei que o chamam de arminiano; e algumas vezes sou chamado de calvinista; portanto, deveríamos desembainhar as espadas. Porém, antes de consentir em iniciar o combate, permita-me fazer-lhe algumas perguntas (...). Diga-me: o senhor se sente uma criatura depravada, tão depravada que nunca teria pensado em voltar-se para Deus, se ele não tivesse colocado isso em seu coração?
Sim [replicou o veterano], sinto-o realmente.
E não tem esperança alguma de tornar-se aceitável perante Deus por qualquer coisa que possa fazer por si; e espera na salvação exclusivamente através do sangue e da justiça de Cristo?
Sim, unicamente por meio de Cristo.
Mas, senhor, supondo-se que foi inicialmente salvo por Cristo, não poderia de alguma outra forma salvar-se depois, através de suas próprias obras?
Não, mas terei de ser salvo por Cristo do princípio ao fim.
Admitindo, portanto, que foi inicialmente convertido pela graça de Deus, o senhor, de um modo ou de outro não tem que se manter por suas próprias forças?
Não.
Nesse caso, então, o senhor tem que ser mantido, cada hora e momento, por Deus, tal como uma criança nos braços de sua mãe?
Sim, inteiramente.
E toda sua esperança está firmada na graça e misericórdia de Deus, para ser preservado até o seu reino celeste?
Sim, não tenho esperanças senão nele.
Então, senhor, com sua permissão embainharei novamente a minha espada; pois este é todo o meu calvinismo; esta é a minha eleição, minha justificação pela fé, minha perseverança final; em suma, é tudo quanto sustento, e como o sustento; portanto, se lhe parecer bem, em lugar de buscarmos termos e frases que serviriam de base para luta entre nós, unamo-nos cordialmente naquelas coisas sobre as quais concordamos.”
O grande desejo de John Wesley, ao qual ele devotou sua vida, foi pregar “as três grandes doutrinas bíblicas: o pecado original, a justificação pela fé e a consequente santidade”. Que Deus nos dê de seu Espírito Santo para não apenas confessar tais doutrinas, mas pregá-las com zelo e paixão nesta época em que a igreja cristã é desafiada e confrontada com um ambiente cultural e político cada vez mais hostil à fé evangélica.
Divulgação: Bereianos
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