.
Começaremos o nosso estudo dos princípios do calvinismo quanto à esfera política fazendo uma breve introdução histórica. Afirmam, às vezes, que o calvinismo pode ser bom como sistema teológico, mas que aparte de certas verdades gerais sobre a soberania de Deus em todas as esferas da vida e ao que se acrescente a obediência os cidadãos a seu governo, o calvinismo não tem um programa político a oferecer. Mantém-se que o calvinismo nunca chegou a desenvolver um sistema político próprio. E, em casos em que se chega a admitir tal possibilidade, então, afirma-se que este sistema consiste em teorias meramente abstratas que nunca foram provadas no plano político, de maneira que, não se pode saber se realmente são funcionais.
RESUMO HISTÓRICO DA POSIÇÃO CALVINISTA EM RELAÇÃO À POLÍTICA
Àqueles que sustentam tais opiniões, o estudo da história política do calvinismo lhe reservará grandes surpresas. Assim, não somente o calvinismo desenvolveu princípios políticos próprios, senão que diversas foram as teorias políticas que se estruturaram sobre estes princípios, e igualmente aplicadas em diferentes países da história moderna. Quem se der ao trabalho de examinar, por exemplo, o índice do livro de história das teorias políticas do Dr W.A. Dunning, professor de história e filosofia política na Universidade de Columbia, e que leva o título: Uma História das Teorias Políticas, não tardará em perceber tão importante lugar que estas teorias políticas ocupam e que, em parte ou na sua totalidade, deve a sua origem ao calvinismo. Uma das causas pelas quais hoje em dia não se sabe muito dos pontos de vista calvinista sobre a política, há que busca-la no fato de que ultimamente o mundo inglês mostra pouca simpatia pelas perspectivas políticas que se baseiam na soberania de Deus e nos princípios da Escritura. Consequentemente, se estas perspectivas ocupassem de novo um primeiro plano, pesa sobre os calvinistas a missão de fazê-las conhecidas.
O Dr A.M. Fairbain, em linhas gerais, resume assim o importante papel que Calvino teve na história política: “O lugar que Calvino merece na História é resultado de seu êxito e talento como legislador. Como teólogo seguiu os passos de outros; como legislador, foi um pioneiro. O seu sistema doutrinário era derivado, enquanto que sua concepção política foi um novo despontar que fundamentava o edifício social sobre novos princípios. Certamente merece que seja reconhecido o estabelecimento de um sistema político e legal próprio, que – direta ou indiretamente – influenciou profundamente todas as instituições democráticas subsequentes.”² O famoso Jean-Jacques Rousseau se refere a Calvino nestes termos tão elogiosos: “Os que falam de Calvino como se este fora tão somente um teólogo, estão longe de apreciar a amplitude de sua genialidade. A sua importante contribuição na estruturação de nossas leis mais sábias lhe honra tanto como as suas Institutas da Religião Cristã. Nestes tempos instáveis não sabemos a sorte que guarda à religião, mas enquanto subsistir entre nós o amor ao país e à liberdade, a memória deste grande homem será sempre reverenciada.”³ Ainda que não atribuamos ao reformador tudo o que Rousseau lhe credita, todavia, é certo que Calvino ocupa um lugar notável na história política, e que o calvinismo foi uma força altamente influente na esfera política.
Ainda que advogasse alguns princípios políticos que com o tempo chegariam “a abrir novos caminhos”, contudo, Calvino não chegou a desenvolver uma teoria completa do Estado. Esta missão foi completada pelas gerações calvinistas seguintes. Talvez, foi o desconhecido autor de Vindiciae Contra Tyrannos – de ampla circulação entre os huguenotes franceses do século XVII – quem pela primeira vez, e sobre uma base calvinista, ofereceu-nos uma teoria bem desenvolvida do Estado. Também num documento que se atribui a Theodore Beza, o sucessor de Calvino em Genebra, e que leva o título: De Jure Magistratum, e no documento de Hotman: Franco-Gallia, encontramos os princípios de uma teoria calvinista do Estado. Ambos documentos adquiriram ampla circulação entre os huguenotes franceses.
Igualmente durante este período da história, Buchanan – reconhecido estadista do reinado de Mary Stuart – escreveu uma obra sob o título: De Jure Regni Apud Scotos, em que desenvolveu uma teoria política fundamentada sobre alguns princípios distintamente calvinistas. O erudito alemão Althusius, ainda que careça de calor dos escritores franceses e escoceses, nos oferece a mais completa e elaborada estruturação da teoria calvinista do estado de seu tempo. No século XVIII cresce um marcado interesse pelos princípios calvinistas sobre o estado. Autores como Hugh Grotius e John Locke, ainda que façam uso de uma terminologia clássica calvinista, em suas ideias se afastam bastante da concepção calvinista. Contudo, o calvinismo continuou exercendo uma marcante influência na história política, especialmente na defesa das liberdades populares, como pode apreciar-se na “gloriosa revolução” de William de Orange e Mary da Inglaterra (1688), bem como na revolução americana (1776).
No século XIX ocorre um avivamento da atividade política calvinista. Na Inglaterra o estadista anglicano William E. Gladstone engajou na restauração do conceito do estado sobre um amplo fundamento calvinista. Um movimento similar ocorreu nos círculos luteranos nos dias de Bismarck, e sob o impulso do grande jurisconsulto luterano Julio Stahl. Baseando-se na soberania de Deus, Julio chegou a estruturar uma filosofia política cristã do estado que, em muitos aspectos, se identifica com a teoria calvinista. Todavia, e por falta de apoio necessário, o seu intento fracassou; contudo, os princípios mais importantes de sua teoria continuam exercendo influência. É na Holanda, de um modo muito especial, onde a teoria calvinista do estado floresceu novamente através da obra de Groen Van Prinsterer, Abraham Kuyper e Savornin Lorman. A obra destes homens, no século XIX, continua através do Dr H. Colyn, primeiro ministro da Holanda, dos professores P.A. Diepenhorst e A. Anema da Universidade Livre de Amsterdã, e outros. Conforme é enfatizado pelo professor K.W. Kolfhaus, em seu livro Christusbekenntniss und Politik, publicado em 1933, também na Alemanha estes pontos de vista exercem influência.
Esta breve referência histórica demonstrou que, contrariamente ao que se pressupõe, o calvinismo exerceu uma grande influência na história política moderna. Todos que desejam adquirir uma visão mais ampla das teorias políticas calvinistas podem consultar as obras de escritores não calvinistas tais como: Social Teachings of the Christian Churches and Groups por E. Troeltsch, Political Theories of the Calvinists up to the time of the Puritan Exodus to America escrito pelo professor Herbert D. Foster em seus Collected Papers; ou, também consultar a obra calvinista do Dr Abraham Kuyper, Antirevolutionaire Staatkunde (vol. 1).
Apresentaremos um esboço dos princípios básicos do calvinismo com referência à política. Ao fazê-lo notaremos as posições mais importantes que se opõe a esta concepção; e que nada aclarará melhor os pontos de vista calvinistas como uma referência às concepções opostas. Estudaremos estes temas na seguinte ordem: a Bíblia e a política, o estado, os cidadãos e as relações internacionais.
A BÍBLIA E A POLÍTICA
Para o calvinista a Bíblia é a sua regra de fé e prática; daí, pois, que também o seja na esfera da política. Isto é fácil de compreender. Para o calvinista, Deus é soberano em todas as coisas; consequentemente, a Sua Palavra vem a ser também a norma a seguir na esfera política. Por ser a Bíblia a Palavra de Deus e princípio de sua fé e conduta, o calvinista recorre a ela para se conduzir as suas atividades políticas.
Não caiamos no erro de supor que os calvinistas pretendem extrair todas as suas ideias da Bíblia, pois não é este o caso. Ao estudar o lugar que a Bíblia ocupa no sistema calvinista, vimos que Deus tem dois livros através dos quais se revela: o livro da natureza – com seus objetos, história, biografia humana, etc – e, o livro da Escritura Sagrada. Da natureza e da história o cristão aprende muitos fatos que satisfatoriamente incorporará em sua teoria política. Em seu estudo o cristão investigará a história política dos impérios e terá em consideração o que os jurisconsultos pensaram e enfatizaram acerca do estado. Mas, como o livro da natureza somente pode nos oferecer uma visão imperfeita de Deus e da verdade, nos vemos na necessidade de um corretivo, e este o calvinista o acha na Bíblia. A Escritura além de ser o corretivo do livro da natureza, também contém aqueles princípios eternos que guiam a conduta humana. Consequentemente, a Bíblia se torna no livro de autoridade última e, num sentido especial, também o fundamento da visão política do calvinista.
Ao fazer da Bíblia o fundamento da ciência política, o calvinista adota uma posição que poderíamos considerar como única. A maioria dos sistemas políticos não pretende basear-se na Bíblia. Para fundamentar a autoridade estatal, longe de apelar para a Bíblia, recorrerão a outras fontes, tais como a vontade das massas, o sentido individual de justiça, ou aos direitos naturais; em outros casos farão do estado uma corporação autônoma com suficiente autoridade para decidir o que estime conveniente. Em todos estes casos, descobrimos um fundamento humano. Naturalmente os adeptos destes sistemas políticos sempre se oporão àqueles que defendem perspectivas religiosas em sua concepção política do estado. O ateu, tal como ocorre no governo soviético, se oporá decididamente a ele; outros são tolerantes quanto às opiniões religiosas, mas defendem que estas opiniões deveriam confirmar-se na esfera privada e não ter transcendência política. Outros irão ainda mais longe, e permitirão que a religião conceda colorida a certas atividades políticas; aberturas de reuniões políticas com uma oração, alusões ocasionais a Deus nos discursos públicos, etc; mas, quanto à formulação dos princípios políticos cristãos sustentarão que não podemos recorrer à Bíblia como critério, ou norma. Argumenta-se na política que as opiniões e teorias humanas decidem tudo. Todavia, o calvinismo começa com a ideia de Deus. A vontade divina se converterá no critério regulador de sua concepção do estado.
Em que sentido a Bíblia é o fundamento da teoria política do calvinista? Crê o calvinista que a Bíblia lhe oferece um programa político completo? Seria tolice pretender tal coisa. Nos Estados Unidos da América os partidos políticos mudam o seu programa a cada quatro anos; considerando estas mudanças tão frequentes, não é tarefa fácil confeccionar um programa político do agrado de todos. Há, pois, base racional para supor que a Bíblia contém um programa político completo para todas as épocas e para todos os grupos? Na realidade a Bíblia não possui um sistema político organizado – muito menos oferece um sistema teológico unificado -. A chamada teocracia mosaica, com todo o cerimonialismo que nos detalha nos primeiros cinco livros da Bíblia, vem a ser algo como um esboço de programa político. Mas, este sistema, segundo as próprias palavras de Calvino, não tem vigência em nosso tempo: tanto os tempos como as circunstâncias são distintas. De fato, o calvinista não que a Bíblia advogue por um sistema de governo definido e definitivo. A Bíblia não nos diz se o governo de uma nação deve ser monárquico, aristocrático ou democrático. O que a Bíblia nos oferece são uma série de princípios eternos sobre os quais deve fundamentar-se todo sistema político. Estes princípios, como todos os demais, não envelhecem: são imutáveis, eterno e de vigência para todos os tempos e sob todas as condições. Uma vez assumindo estes princípios, então, poderemos estruturar sistemas e decidir programas para afrontar as condições do dia.
Em que lugar da Bíblia estes princípios podem ser encontrados? Alguns afirmam que estes princípios se encontram em passagens dispersas da Bíblia; mas, na dificuldade de não encontrar facilmente estes textos chegaram à conclusão de que a Bíblia não tem muito que dizer-nos com respeito à política. O calvinista, pelo contrário, crê que a Bíblia contém sólida base para a sua política, sua teologia e suas ideias sociais, e que esta não se encontra em meras passagens dispersas. Na regra de fé que impregna toda a Escritura, e que às vezes dá a conhecer em determinados textos – como sucede com Rm 13:1: “toda alma se submeta às autoridades superiores” e, Pv 8:15: “por Mim reinam os reis” – o calvinista chega a descobrir estes princípios. Mas estes de modo algum se circunscrevem a um determinado número de textos isolados.
Estes princípios, não apenas se relacionam com outros conceitos mais gerais, tais como a soberania de Deus e a obrigação de obedecer as autoridades, como também têm a ver com uma ampla gama de problemas políticos: a relação do indivíduo com o grupo, a relação das igrejas e outras organizações sociais com o estado, os limites do poder governamental, o direito dos indivíduos, etc.. Calvino ao desenvolver o seu conceito político, frequentemente recorre aos princípios bíblicos de justiça, equidade e bem-estar do povo.
O calvinista insiste em que os princípios da Palavra de Deus são válidos tanto para ele como para os demais cidadãos. Assim, sendo Deus soberano, aceitando ou não o indivíduo, a Bíblia – a palavra deste Rei soberano – há de ser norma para tudo e todos, especialmente para o cristão. O calvinista crê que na política também deve ser guiada por estes princípios, sendo que sua confissão é de que “pertence ao seu fiel Salvador Jesus Cristo, não somente com sua alma e para toda a eternidade, como também em tudo o que concerne a seu corpo e enquanto durar a sua peregrinação.” Em todas as esferas de sua vida deve obedecer ao seu Senhor.
A grande vantagem que pressupõe adotar a Bíblia como regra positiva e incondicional de fé, inclusive na política, adquirirá mais realce à medida que avançaremos em nosso estudo dos diferentes aspectos da teoria política calvinista.
_________
Notas:
[1] H. Henry Meeter, Doutor em Teologia, foi presidente durante 30 anos do Departamento Bíblico do Calvin College, Grand Rapids, MI. Nota do tradutor.
[2] A.M. Fairbain, Modern History (New York, Cambridge University Press, 1918), vol. 2, p. 364.
[3] Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social, livro II, cap. 7, nota citada por Georgia Harkness, John Calvin, the Man and His Ethics (New York, Henry Holt & Co., 1931), p. 221.
***
Por H. Henry Meeter¹
Começaremos o nosso estudo dos princípios do calvinismo quanto à esfera política fazendo uma breve introdução histórica. Afirmam, às vezes, que o calvinismo pode ser bom como sistema teológico, mas que aparte de certas verdades gerais sobre a soberania de Deus em todas as esferas da vida e ao que se acrescente a obediência os cidadãos a seu governo, o calvinismo não tem um programa político a oferecer. Mantém-se que o calvinismo nunca chegou a desenvolver um sistema político próprio. E, em casos em que se chega a admitir tal possibilidade, então, afirma-se que este sistema consiste em teorias meramente abstratas que nunca foram provadas no plano político, de maneira que, não se pode saber se realmente são funcionais.
RESUMO HISTÓRICO DA POSIÇÃO CALVINISTA EM RELAÇÃO À POLÍTICA
Àqueles que sustentam tais opiniões, o estudo da história política do calvinismo lhe reservará grandes surpresas. Assim, não somente o calvinismo desenvolveu princípios políticos próprios, senão que diversas foram as teorias políticas que se estruturaram sobre estes princípios, e igualmente aplicadas em diferentes países da história moderna. Quem se der ao trabalho de examinar, por exemplo, o índice do livro de história das teorias políticas do Dr W.A. Dunning, professor de história e filosofia política na Universidade de Columbia, e que leva o título: Uma História das Teorias Políticas, não tardará em perceber tão importante lugar que estas teorias políticas ocupam e que, em parte ou na sua totalidade, deve a sua origem ao calvinismo. Uma das causas pelas quais hoje em dia não se sabe muito dos pontos de vista calvinista sobre a política, há que busca-la no fato de que ultimamente o mundo inglês mostra pouca simpatia pelas perspectivas políticas que se baseiam na soberania de Deus e nos princípios da Escritura. Consequentemente, se estas perspectivas ocupassem de novo um primeiro plano, pesa sobre os calvinistas a missão de fazê-las conhecidas.
O Dr A.M. Fairbain, em linhas gerais, resume assim o importante papel que Calvino teve na história política: “O lugar que Calvino merece na História é resultado de seu êxito e talento como legislador. Como teólogo seguiu os passos de outros; como legislador, foi um pioneiro. O seu sistema doutrinário era derivado, enquanto que sua concepção política foi um novo despontar que fundamentava o edifício social sobre novos princípios. Certamente merece que seja reconhecido o estabelecimento de um sistema político e legal próprio, que – direta ou indiretamente – influenciou profundamente todas as instituições democráticas subsequentes.”² O famoso Jean-Jacques Rousseau se refere a Calvino nestes termos tão elogiosos: “Os que falam de Calvino como se este fora tão somente um teólogo, estão longe de apreciar a amplitude de sua genialidade. A sua importante contribuição na estruturação de nossas leis mais sábias lhe honra tanto como as suas Institutas da Religião Cristã. Nestes tempos instáveis não sabemos a sorte que guarda à religião, mas enquanto subsistir entre nós o amor ao país e à liberdade, a memória deste grande homem será sempre reverenciada.”³ Ainda que não atribuamos ao reformador tudo o que Rousseau lhe credita, todavia, é certo que Calvino ocupa um lugar notável na história política, e que o calvinismo foi uma força altamente influente na esfera política.
Ainda que advogasse alguns princípios políticos que com o tempo chegariam “a abrir novos caminhos”, contudo, Calvino não chegou a desenvolver uma teoria completa do Estado. Esta missão foi completada pelas gerações calvinistas seguintes. Talvez, foi o desconhecido autor de Vindiciae Contra Tyrannos – de ampla circulação entre os huguenotes franceses do século XVII – quem pela primeira vez, e sobre uma base calvinista, ofereceu-nos uma teoria bem desenvolvida do Estado. Também num documento que se atribui a Theodore Beza, o sucessor de Calvino em Genebra, e que leva o título: De Jure Magistratum, e no documento de Hotman: Franco-Gallia, encontramos os princípios de uma teoria calvinista do Estado. Ambos documentos adquiriram ampla circulação entre os huguenotes franceses.
Igualmente durante este período da história, Buchanan – reconhecido estadista do reinado de Mary Stuart – escreveu uma obra sob o título: De Jure Regni Apud Scotos, em que desenvolveu uma teoria política fundamentada sobre alguns princípios distintamente calvinistas. O erudito alemão Althusius, ainda que careça de calor dos escritores franceses e escoceses, nos oferece a mais completa e elaborada estruturação da teoria calvinista do estado de seu tempo. No século XVIII cresce um marcado interesse pelos princípios calvinistas sobre o estado. Autores como Hugh Grotius e John Locke, ainda que façam uso de uma terminologia clássica calvinista, em suas ideias se afastam bastante da concepção calvinista. Contudo, o calvinismo continuou exercendo uma marcante influência na história política, especialmente na defesa das liberdades populares, como pode apreciar-se na “gloriosa revolução” de William de Orange e Mary da Inglaterra (1688), bem como na revolução americana (1776).
No século XIX ocorre um avivamento da atividade política calvinista. Na Inglaterra o estadista anglicano William E. Gladstone engajou na restauração do conceito do estado sobre um amplo fundamento calvinista. Um movimento similar ocorreu nos círculos luteranos nos dias de Bismarck, e sob o impulso do grande jurisconsulto luterano Julio Stahl. Baseando-se na soberania de Deus, Julio chegou a estruturar uma filosofia política cristã do estado que, em muitos aspectos, se identifica com a teoria calvinista. Todavia, e por falta de apoio necessário, o seu intento fracassou; contudo, os princípios mais importantes de sua teoria continuam exercendo influência. É na Holanda, de um modo muito especial, onde a teoria calvinista do estado floresceu novamente através da obra de Groen Van Prinsterer, Abraham Kuyper e Savornin Lorman. A obra destes homens, no século XIX, continua através do Dr H. Colyn, primeiro ministro da Holanda, dos professores P.A. Diepenhorst e A. Anema da Universidade Livre de Amsterdã, e outros. Conforme é enfatizado pelo professor K.W. Kolfhaus, em seu livro Christusbekenntniss und Politik, publicado em 1933, também na Alemanha estes pontos de vista exercem influência.
Esta breve referência histórica demonstrou que, contrariamente ao que se pressupõe, o calvinismo exerceu uma grande influência na história política moderna. Todos que desejam adquirir uma visão mais ampla das teorias políticas calvinistas podem consultar as obras de escritores não calvinistas tais como: Social Teachings of the Christian Churches and Groups por E. Troeltsch, Political Theories of the Calvinists up to the time of the Puritan Exodus to America escrito pelo professor Herbert D. Foster em seus Collected Papers; ou, também consultar a obra calvinista do Dr Abraham Kuyper, Antirevolutionaire Staatkunde (vol. 1).
Apresentaremos um esboço dos princípios básicos do calvinismo com referência à política. Ao fazê-lo notaremos as posições mais importantes que se opõe a esta concepção; e que nada aclarará melhor os pontos de vista calvinistas como uma referência às concepções opostas. Estudaremos estes temas na seguinte ordem: a Bíblia e a política, o estado, os cidadãos e as relações internacionais.
A BÍBLIA E A POLÍTICA
Para o calvinista a Bíblia é a sua regra de fé e prática; daí, pois, que também o seja na esfera da política. Isto é fácil de compreender. Para o calvinista, Deus é soberano em todas as coisas; consequentemente, a Sua Palavra vem a ser também a norma a seguir na esfera política. Por ser a Bíblia a Palavra de Deus e princípio de sua fé e conduta, o calvinista recorre a ela para se conduzir as suas atividades políticas.
Não caiamos no erro de supor que os calvinistas pretendem extrair todas as suas ideias da Bíblia, pois não é este o caso. Ao estudar o lugar que a Bíblia ocupa no sistema calvinista, vimos que Deus tem dois livros através dos quais se revela: o livro da natureza – com seus objetos, história, biografia humana, etc – e, o livro da Escritura Sagrada. Da natureza e da história o cristão aprende muitos fatos que satisfatoriamente incorporará em sua teoria política. Em seu estudo o cristão investigará a história política dos impérios e terá em consideração o que os jurisconsultos pensaram e enfatizaram acerca do estado. Mas, como o livro da natureza somente pode nos oferecer uma visão imperfeita de Deus e da verdade, nos vemos na necessidade de um corretivo, e este o calvinista o acha na Bíblia. A Escritura além de ser o corretivo do livro da natureza, também contém aqueles princípios eternos que guiam a conduta humana. Consequentemente, a Bíblia se torna no livro de autoridade última e, num sentido especial, também o fundamento da visão política do calvinista.
Ao fazer da Bíblia o fundamento da ciência política, o calvinista adota uma posição que poderíamos considerar como única. A maioria dos sistemas políticos não pretende basear-se na Bíblia. Para fundamentar a autoridade estatal, longe de apelar para a Bíblia, recorrerão a outras fontes, tais como a vontade das massas, o sentido individual de justiça, ou aos direitos naturais; em outros casos farão do estado uma corporação autônoma com suficiente autoridade para decidir o que estime conveniente. Em todos estes casos, descobrimos um fundamento humano. Naturalmente os adeptos destes sistemas políticos sempre se oporão àqueles que defendem perspectivas religiosas em sua concepção política do estado. O ateu, tal como ocorre no governo soviético, se oporá decididamente a ele; outros são tolerantes quanto às opiniões religiosas, mas defendem que estas opiniões deveriam confirmar-se na esfera privada e não ter transcendência política. Outros irão ainda mais longe, e permitirão que a religião conceda colorida a certas atividades políticas; aberturas de reuniões políticas com uma oração, alusões ocasionais a Deus nos discursos públicos, etc; mas, quanto à formulação dos princípios políticos cristãos sustentarão que não podemos recorrer à Bíblia como critério, ou norma. Argumenta-se na política que as opiniões e teorias humanas decidem tudo. Todavia, o calvinismo começa com a ideia de Deus. A vontade divina se converterá no critério regulador de sua concepção do estado.
Em que sentido a Bíblia é o fundamento da teoria política do calvinista? Crê o calvinista que a Bíblia lhe oferece um programa político completo? Seria tolice pretender tal coisa. Nos Estados Unidos da América os partidos políticos mudam o seu programa a cada quatro anos; considerando estas mudanças tão frequentes, não é tarefa fácil confeccionar um programa político do agrado de todos. Há, pois, base racional para supor que a Bíblia contém um programa político completo para todas as épocas e para todos os grupos? Na realidade a Bíblia não possui um sistema político organizado – muito menos oferece um sistema teológico unificado -. A chamada teocracia mosaica, com todo o cerimonialismo que nos detalha nos primeiros cinco livros da Bíblia, vem a ser algo como um esboço de programa político. Mas, este sistema, segundo as próprias palavras de Calvino, não tem vigência em nosso tempo: tanto os tempos como as circunstâncias são distintas. De fato, o calvinista não que a Bíblia advogue por um sistema de governo definido e definitivo. A Bíblia não nos diz se o governo de uma nação deve ser monárquico, aristocrático ou democrático. O que a Bíblia nos oferece são uma série de princípios eternos sobre os quais deve fundamentar-se todo sistema político. Estes princípios, como todos os demais, não envelhecem: são imutáveis, eterno e de vigência para todos os tempos e sob todas as condições. Uma vez assumindo estes princípios, então, poderemos estruturar sistemas e decidir programas para afrontar as condições do dia.
Em que lugar da Bíblia estes princípios podem ser encontrados? Alguns afirmam que estes princípios se encontram em passagens dispersas da Bíblia; mas, na dificuldade de não encontrar facilmente estes textos chegaram à conclusão de que a Bíblia não tem muito que dizer-nos com respeito à política. O calvinista, pelo contrário, crê que a Bíblia contém sólida base para a sua política, sua teologia e suas ideias sociais, e que esta não se encontra em meras passagens dispersas. Na regra de fé que impregna toda a Escritura, e que às vezes dá a conhecer em determinados textos – como sucede com Rm 13:1: “toda alma se submeta às autoridades superiores” e, Pv 8:15: “por Mim reinam os reis” – o calvinista chega a descobrir estes princípios. Mas estes de modo algum se circunscrevem a um determinado número de textos isolados.
Estes princípios, não apenas se relacionam com outros conceitos mais gerais, tais como a soberania de Deus e a obrigação de obedecer as autoridades, como também têm a ver com uma ampla gama de problemas políticos: a relação do indivíduo com o grupo, a relação das igrejas e outras organizações sociais com o estado, os limites do poder governamental, o direito dos indivíduos, etc.. Calvino ao desenvolver o seu conceito político, frequentemente recorre aos princípios bíblicos de justiça, equidade e bem-estar do povo.
O calvinista insiste em que os princípios da Palavra de Deus são válidos tanto para ele como para os demais cidadãos. Assim, sendo Deus soberano, aceitando ou não o indivíduo, a Bíblia – a palavra deste Rei soberano – há de ser norma para tudo e todos, especialmente para o cristão. O calvinista crê que na política também deve ser guiada por estes princípios, sendo que sua confissão é de que “pertence ao seu fiel Salvador Jesus Cristo, não somente com sua alma e para toda a eternidade, como também em tudo o que concerne a seu corpo e enquanto durar a sua peregrinação.” Em todas as esferas de sua vida deve obedecer ao seu Senhor.
A grande vantagem que pressupõe adotar a Bíblia como regra positiva e incondicional de fé, inclusive na política, adquirirá mais realce à medida que avançaremos em nosso estudo dos diferentes aspectos da teoria política calvinista.
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Notas:
[1] H. Henry Meeter, Doutor em Teologia, foi presidente durante 30 anos do Departamento Bíblico do Calvin College, Grand Rapids, MI. Nota do tradutor.
[2] A.M. Fairbain, Modern History (New York, Cambridge University Press, 1918), vol. 2, p. 364.
[3] Jean-Jacques Rousseau, Du Contrat Social, livro II, cap. 7, nota citada por Georgia Harkness, John Calvin, the Man and His Ethics (New York, Henry Holt & Co., 1931), p. 221.
Fonte: Extraído de H. Henry Meeter, La Iglesia y el Estado (Grand Rapids, TELL, 1963), pp. 93-101. Este livro originalmente foi publicado sob o título de THE BASIC IDEAS OF CALVINISM.
Tradução: Rev. Ewerton B. Tokashiki, em 2 de Junho de 2015.
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1 comentários:
Infelizmente, receber um elogio de Jean-Jacques Rousseau é algo profundamente horrível e desastroso, diante do tipo de canalha que foi em sua existência. Prof. Luis Cavalacnte - Soli Deo Gloria
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