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“No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.”
No princípio. Interpretar o termo “princípio” relacionando-o a Cristo não nos é de maneira alguma útil, pois Moisés, neste ponto, simplesmente pretende afirmar que o mundo não havia sido aperfeiçoado em seus primórdios do modo como agora vemos, mas que foi criado um caos vazio de céus e terra. A linguagem mosaica deve, portanto, ser explicada. Quando Deus, no princípio, criou os céus e a terra, a terra era sem forma e vazia.[1] Ele, ademais, nos ensina mediante o termo “criada” que aquilo que antes não existia foi agora feito; ora, ele não utilizou a palavra יָצַר (yatsar), que significa moldar ou formar, mas sim בָּרָ֣א (bara’), que significa criar.[2] Consequentemente, sua intenção é dizer que o mundo foi feito a partir do nada. Logo, refuta-se, assim, a insensatez daqueles que imaginam que existia, desde a eternidade, uma matéria informe, bem como daqueles que nada absorvem da narrativa de Moisés a não ser que o mundo foi provido de novos ornamentos e recebeu uma forma da qual antes se encontrava destituído.
De fato, tal ideia era, em tempos antigos, uma fábula comum entre os pagãos,[3] que tinham recebido apenas uma descrição obscura da criação, e que, segundo o hábito, adulteraram a verdade de Deus em invencionices esdrúxulas. Todavia, para os cristãos, laborar (como o faz Steuchus)[4] para manter esse erro grosseiro é absurdo e intolerável. Assim, tenhamos em mente primeiramente o seguinte ponto: o mundo não é eterno, mas foi criado por Deus. Não há dúvida que Moisés dá o nome de céus e terra àquela massa desordenada que ele, logo em seguida (Gênesis 1:2), denominada “águas”. A razão disso é que tal matéria estava para ser a semente de todo o mundo. Além disso, essa é a divisão do mundo generalizadamente reconhecida.[5]
Deus. Moisés utiliza o termo Elohim, um substantivo no plural, donde se faz a inferência de que as três Pessoas da Divindade são aqui percebidas; contudo, como evidência de um assunto assim tão grandioso [A Trindade], não me parece apresentar muita solidez, de modo que não insistirei nesse termo. Porém, que isso nos sirva de alerta, de modo que tenhamos todo cuidado com miragens bruscas desse tipo.[6] Alguns pensam que o termo em pauta constitui um testemunho contra os arianos, uma prova da Deidade do Filho e do Espírito Santo; contudo, ao mesmo tempo, eles se envolvem no erro de Sabélio,[7] porque Moisés subsequentemente ajunta que Elohim tinha dito e que o Espírito de Elohim se movia sobre as águas.
Caso venhamos a supor que as três Pessoas estão aqui denotadas, então não haverá distinção entre elas, pois se concluiria que tanto o Filho é gerado por Si mesmo e que o Espírito não é do Pai, mas de Si mesmo. Para mim, é suficiente entender que o número plural do substantivo expressa aqueles poderes que Deus exerceu ao criar o mundo. Ademais, reconheço que a Escritura, embora liste vários poderes da Divindade, todavia, sempre nos traz à memória o Pai, a Sua Palavra e o Espírito, como veremos em breve. Porém, aquelas absurdidades às quais aludi nos proíbem com sutileza de distorcer aquilo que Moisés simplesmente declara com relação ao próprio Deus, aplicando separadamente às Pessoas da Divindade. Isto, contudo, percebo como estando além de quaisquer controvérsias, que da circunstância peculiar dessa passagem, inscreve-se aqui um título atribuído a Deus, que expressa aqueles poderes que estavam anteriormente incluídos de certa forma em Sua essência eterna.[8]
E a terra era sem forma e vazia. Não seria demasiadamente solícito com relação à interpretação destes dois epítetos תֹ֙הוּ֙ (tohu) e בֹ֔הוּ (bohu). Os hebreus os utilizavam para designar aquilo que era vazio e confuso, ou vão, ou destituído de qualquer valor. Indubitavelmente, Moisés colocou ambos em oposição a todos aqueles objetos criados que pertencem à forma, ao ornamento e à perfeição do mundo. Tendo nós excluído da terra tudo aquilo que Deus acrescentou posteriormente ao tempo aqui aludido, então teremos um caos bruto e ainda não trabalhado, ou, antes, um caos amorfo. Consequentemente, entendo aquilo que Moisés acrescenta logo em seguida, isto é, que “havia trevas sobre a face do abismo”, como uma parte daquele vazio desordenado: porque a luz começou a dar alguma aparência externa ao mundo. Por algum motivo, o autor chama isso de abismo e águas, uma vez que naquele amontoado de matéria, nada era sólido ou estável, e nada se podia distinguir.
E o Espírito de Deus. Os intérpretes já lutaram com essa passagem de várias maneiras. A opinião defendida por alguns, de que essa expressão se refere ao vento é demasiadamente frígida para exigir de nós uma refutação. Aqueles que por ela entendem o Espírito de Deus estão corretos, todavia, não contemplam o sentido pretendido por Moisés em conexão com todo seu discurso; logo, surgem várias interpretações do particípio merachepeth. Em primeiro lugar, expressarei o que, segundo meu entendimento, Moisés pretendia com isso. Já ouvimos que, antes de Deus aperfeiçoar o mundo, este era um amontoado não organizado; porém, Moisés agora ensina que o poder do Espírito foi necessário para sustentá-lo. Pois, afinal, tal dúvida pode nos assolar a mente: como um amontoado desordenado poderia subsistir, uma vez que agora vemos o mundo preservado pelo governo ou ordem.
Portanto, Moisés afirma que esse amontoado, embora confuso, foi tornado estável naquele momento pela eficácia secreta do Espírito. Ora, há dois sentidos possíveis para a palavra hebraica que se encaixam aqui: o Espírito Se movia e Se agitava sobre as águas a fim de produzir robustez; ou o Espírito chocava tais águas a fim de acalentá-las. Dado que pouca diferença faz ao fim e ao cabo a escolha por qualquer uma dessas explicações, deixemos livre o juízo do leitor. Mas se tal caos exigiu a secreta inspiração de Deus para prevenir sua célere dissolução, como poderia a presente ordem, tão clara e distinta, subsistir por si mesma, a não ser que derivasse sua força de outro lugar? Portanto, que se cumpra a Escritura: “Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da terra” (Sl 104:30), por outro lado, tão logo o SENHOR retira Seu Espírito, todas as coisas retornam ao pó e se desvanecem (Sl 104:29).
_____________
Notas:
[1] Na tradução francesa : « La terre estoit vuide, et sans forme, et ne servoit a rien » –— “A terra era vazia, e sem forma, e sem utilidade alguma”.
[2] O termo possui um duplo sentido – 1 Criar a partir do nada, como se prova mediante a presente passagem – “No princípio”, uma vez que nada havia sido feito antes deles [do céu e da terra]. 2 Produzir algo excepcional a partir de uma matéria preexistente, tal como é dito posteriormente que Ele [Deus] criou os grandes animais marinhos [provavelmente as baleias](Gn 1:21) e o homem – Conferir Fagius, Drusius e Estius, na Sinopse de Poole.
[3] Inter profanos homines (no original latim) – Entre homens profanos.
[4] Steuchus Augustinis foi o autor de uma obra chamada De Perennie Philosophia, Lugfd., 1540, e é provavelmente o autor a quem Calvino se refere. A obra, todavia, é bem rara e provavelmente de muito pouco valor.
[5] A saber, em céus e terra.
[6] Neste ponto específico, o pensamento de Calvino evidencia o candor de sua mente e sua determinação em aderir estritamente àquilo que ele concebe ser o sentido das Sagradas Escrituras, independentemente da relação que possa ter com as doutrinas que ele sustém. Todavia, talvez seja justo direcionar o leitor que deseja examinar com profundidade o sentido da palavra אֱלֹהִ֑ים (Elohim) que se encontra no plural (e que é objeto de tantas controvérsias) e que traduzimos por Deus a algumas fontes de informação, a partir das quais ele, o leitor, pode formar seu próprio juízo a respeito do termo. Cocceius argumenta que o mistério da Trindade na Unidade está contido nessa palavra; vários outros escritores de reputação também adotam essa opinião. Outros, por sua vez, argumentam que, embora não seja dada nenhuma sugestão da Trindade na Unidade, ainda assim a noção de pluralidade das Pessoas está claramente implícita no termo. Para um relatório completo de todos os argumentos a favor dessa hipótese, pode-se consultar a obra do Dr. John Pye Smith acerca do testemunho escriturístico do Messias – uma obra de profunda erudição que se destaca pela dedicação paciente e pela análise que se desdobra de maneira sutil e reflexiva. Deve-se observar, contudo, que esse autor imparcial e diligente não se deparou com a objeção especial apresentada nessa passagem por Calvino, a saber, o risco de se cair involuntariamente no sabelianismo ao se tentar refutar o arianismo. (Nota do Editor).
[7] O erro de Sabélio (de acordo com Theodoret) consistia em sustentar “que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são apenas uma hipóstase e uma só Pessoa com três nomes”, ou, nas palavras do eminente erudito e historiador eclesiástico Dr. Burton, “Sabélio dividiu a Divindade Una em três, mas ele acreditava que o Filho e o Espírito Santo não tinham existência pessoal distinta, exceto quando trazidos à tona momentaneamente pelo Pai” – Cf. Burton’s Lectures on Ecclesiastical History [Palestras de Burton sobre História da Igreja], vol. 2, p. 365; e também sua Bampton Lectures, nota 103. Essas obras talvez irão auxiliar o leitor a entender a natureza do argumento de Calvino apresentado logo em seguida. Supondo que a palavra Elohim denota as Três Pessoas da Divindade no primeiro verso, ela também denota as mesmas Três Pessoas no segundo verso. Todavia, nesta passagem (isto é, o verso 2) Moisés diz que o Espírito de Elohim, isto é, o Espírito das Três Pessoas pairava sobre as águas. Sendo assim, a distinção das Pessoas se perde, pois o Espírito é Ele mesmo uma delas; portanto, consequentemente – segundo essa linha de raciocínio – o Espírito é enviado de Si mesmo. O mesmo raciocínio poderia provar que o Filho foi gerado por Si mesmo, pois Ele é uma das Pessoas de Elohim por meio do qual o Filho é gerado. (Nota do Editor).
[8] A interpretação dada acima com relação ao sentido da palavra אֱלֹהִ֑ים (Elohim) é corroborada pelas profundas investigações críticas do Dr. Hengstenberg, professor de Teologia na Universidade de Berlim, cujo trabalho, composto numa forma de certo modo nova, e intitulado “Dissertations on the Genuineness of the Pentateuco” [Ensaios sobre a autenticidade do Pentateuco], surge numa edição em inglês, sob a superintendência da Sociedade Continental de Tradução, enquanto estas páginas estão sendo editadas. Juntamente com outros críticos eruditos, ele conclui que tal palavra é derivada da raiz árabe “Allah”, que significa cultuar, adorar e ser tomado pelo temor. Hengstenberg, portanto, vê o título como especialmente uma descrição do terrível aspecto do caráter Divino. Com relação à forma plural da palavra, ele cita a afirmação dos rabis judeus segundo os quais o termo significa “Dominus potentiarum omnium”, isto é, “O SENHOR de todos os poderes”. O Dr. Hengstenberg se refere a Calvino e outros como tendo se oposto, ainda que seu efeito imediato, à noção sustentada por Pedro Lombardo relacionada ao mistério da Trindade. O erudito alemão também rejeita a sugestão profana de Le Clerc e seus sucessores da Escola Noológica de que o nome Elohim tem origem no politeísmo; e, em seguida, continua a mostrar que “há na língua hebraica um uso vastamente extenso do plural a fim de expressar a intensidade da ideia contida no singular”. Após numerosas referências, que provam esse ponto, ele dá sequência ao seu argumento: que, “se, em relação aos objetos terrenos, tudo aquilo que serve para representar uma ordem total de seres é trazido à mente mediante a forma plural, podemos antecipar uma aplicação ainda mais extensa desse método de distinção nos nomes de Deus, em cujo ser e atributos há, de maneira total, uma unidade que abrange e compreende toda a multiplicidade”. Ele ainda acrescenta: “o uso do plural possui o mesmo propósito que, em várias partes da Escritura, é realizado por uma acumulação dos nomes Divino; como em Josué 22:22; o triságio em Isaías 6:2 e הָֽאֱלֹהִ֔ים אֱלֹהֵ֣י (Elohey heelohym) e הָאֲדֹנִ֑ים אֲדֹנֵ֖י (Adonay Adonaym) em Deuteronômio 10:17. Este uso nos leva a dirigir nossa atenção às riquezas infinitas e à plenitude inexaurível contida no único Ser Divino, de forma que embora os homens possam conceber inúmeros deuses, investindo-os com uma série de perfeições, todavia, todas elas estão contido no único אֱלֹהִ֑ים (Elohim). Ver o supramencionado Dissertations, p. 268-273. Talvez seja necessário afirmar aqui que independente dos tesouros bíblicos que os escritos desse autor contenha – e, sem dúvida, são grandes tesouros –, ao leitor provavelmente será exigido manter alta a sua guarda quando da leitura da obra. Pois, não obstante a enérgica oposição geral do autor ao anti-supranaturalismo de seus conterrâneos, ele, entretanto, não escapou completamente do contágio daquilo que lutou para resistir. Pode haver ocasiões, portanto, nas quais será propício aludir a alguns de seus equívocos.
No princípio. Interpretar o termo “princípio” relacionando-o a Cristo não nos é de maneira alguma útil, pois Moisés, neste ponto, simplesmente pretende afirmar que o mundo não havia sido aperfeiçoado em seus primórdios do modo como agora vemos, mas que foi criado um caos vazio de céus e terra. A linguagem mosaica deve, portanto, ser explicada. Quando Deus, no princípio, criou os céus e a terra, a terra era sem forma e vazia.[1] Ele, ademais, nos ensina mediante o termo “criada” que aquilo que antes não existia foi agora feito; ora, ele não utilizou a palavra יָצַר (yatsar), que significa moldar ou formar, mas sim בָּרָ֣א (bara’), que significa criar.[2] Consequentemente, sua intenção é dizer que o mundo foi feito a partir do nada. Logo, refuta-se, assim, a insensatez daqueles que imaginam que existia, desde a eternidade, uma matéria informe, bem como daqueles que nada absorvem da narrativa de Moisés a não ser que o mundo foi provido de novos ornamentos e recebeu uma forma da qual antes se encontrava destituído.
De fato, tal ideia era, em tempos antigos, uma fábula comum entre os pagãos,[3] que tinham recebido apenas uma descrição obscura da criação, e que, segundo o hábito, adulteraram a verdade de Deus em invencionices esdrúxulas. Todavia, para os cristãos, laborar (como o faz Steuchus)[4] para manter esse erro grosseiro é absurdo e intolerável. Assim, tenhamos em mente primeiramente o seguinte ponto: o mundo não é eterno, mas foi criado por Deus. Não há dúvida que Moisés dá o nome de céus e terra àquela massa desordenada que ele, logo em seguida (Gênesis 1:2), denominada “águas”. A razão disso é que tal matéria estava para ser a semente de todo o mundo. Além disso, essa é a divisão do mundo generalizadamente reconhecida.[5]
Deus. Moisés utiliza o termo Elohim, um substantivo no plural, donde se faz a inferência de que as três Pessoas da Divindade são aqui percebidas; contudo, como evidência de um assunto assim tão grandioso [A Trindade], não me parece apresentar muita solidez, de modo que não insistirei nesse termo. Porém, que isso nos sirva de alerta, de modo que tenhamos todo cuidado com miragens bruscas desse tipo.[6] Alguns pensam que o termo em pauta constitui um testemunho contra os arianos, uma prova da Deidade do Filho e do Espírito Santo; contudo, ao mesmo tempo, eles se envolvem no erro de Sabélio,[7] porque Moisés subsequentemente ajunta que Elohim tinha dito e que o Espírito de Elohim se movia sobre as águas.
Caso venhamos a supor que as três Pessoas estão aqui denotadas, então não haverá distinção entre elas, pois se concluiria que tanto o Filho é gerado por Si mesmo e que o Espírito não é do Pai, mas de Si mesmo. Para mim, é suficiente entender que o número plural do substantivo expressa aqueles poderes que Deus exerceu ao criar o mundo. Ademais, reconheço que a Escritura, embora liste vários poderes da Divindade, todavia, sempre nos traz à memória o Pai, a Sua Palavra e o Espírito, como veremos em breve. Porém, aquelas absurdidades às quais aludi nos proíbem com sutileza de distorcer aquilo que Moisés simplesmente declara com relação ao próprio Deus, aplicando separadamente às Pessoas da Divindade. Isto, contudo, percebo como estando além de quaisquer controvérsias, que da circunstância peculiar dessa passagem, inscreve-se aqui um título atribuído a Deus, que expressa aqueles poderes que estavam anteriormente incluídos de certa forma em Sua essência eterna.[8]
E a terra era sem forma e vazia. Não seria demasiadamente solícito com relação à interpretação destes dois epítetos תֹ֙הוּ֙ (tohu) e בֹ֔הוּ (bohu). Os hebreus os utilizavam para designar aquilo que era vazio e confuso, ou vão, ou destituído de qualquer valor. Indubitavelmente, Moisés colocou ambos em oposição a todos aqueles objetos criados que pertencem à forma, ao ornamento e à perfeição do mundo. Tendo nós excluído da terra tudo aquilo que Deus acrescentou posteriormente ao tempo aqui aludido, então teremos um caos bruto e ainda não trabalhado, ou, antes, um caos amorfo. Consequentemente, entendo aquilo que Moisés acrescenta logo em seguida, isto é, que “havia trevas sobre a face do abismo”, como uma parte daquele vazio desordenado: porque a luz começou a dar alguma aparência externa ao mundo. Por algum motivo, o autor chama isso de abismo e águas, uma vez que naquele amontoado de matéria, nada era sólido ou estável, e nada se podia distinguir.
E o Espírito de Deus. Os intérpretes já lutaram com essa passagem de várias maneiras. A opinião defendida por alguns, de que essa expressão se refere ao vento é demasiadamente frígida para exigir de nós uma refutação. Aqueles que por ela entendem o Espírito de Deus estão corretos, todavia, não contemplam o sentido pretendido por Moisés em conexão com todo seu discurso; logo, surgem várias interpretações do particípio merachepeth. Em primeiro lugar, expressarei o que, segundo meu entendimento, Moisés pretendia com isso. Já ouvimos que, antes de Deus aperfeiçoar o mundo, este era um amontoado não organizado; porém, Moisés agora ensina que o poder do Espírito foi necessário para sustentá-lo. Pois, afinal, tal dúvida pode nos assolar a mente: como um amontoado desordenado poderia subsistir, uma vez que agora vemos o mundo preservado pelo governo ou ordem.
Portanto, Moisés afirma que esse amontoado, embora confuso, foi tornado estável naquele momento pela eficácia secreta do Espírito. Ora, há dois sentidos possíveis para a palavra hebraica que se encaixam aqui: o Espírito Se movia e Se agitava sobre as águas a fim de produzir robustez; ou o Espírito chocava tais águas a fim de acalentá-las. Dado que pouca diferença faz ao fim e ao cabo a escolha por qualquer uma dessas explicações, deixemos livre o juízo do leitor. Mas se tal caos exigiu a secreta inspiração de Deus para prevenir sua célere dissolução, como poderia a presente ordem, tão clara e distinta, subsistir por si mesma, a não ser que derivasse sua força de outro lugar? Portanto, que se cumpra a Escritura: “Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da terra” (Sl 104:30), por outro lado, tão logo o SENHOR retira Seu Espírito, todas as coisas retornam ao pó e se desvanecem (Sl 104:29).
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Notas:
[1] Na tradução francesa : « La terre estoit vuide, et sans forme, et ne servoit a rien » –— “A terra era vazia, e sem forma, e sem utilidade alguma”.
[2] O termo possui um duplo sentido – 1 Criar a partir do nada, como se prova mediante a presente passagem – “No princípio”, uma vez que nada havia sido feito antes deles [do céu e da terra]. 2 Produzir algo excepcional a partir de uma matéria preexistente, tal como é dito posteriormente que Ele [Deus] criou os grandes animais marinhos [provavelmente as baleias](Gn 1:21) e o homem – Conferir Fagius, Drusius e Estius, na Sinopse de Poole.
[3] Inter profanos homines (no original latim) – Entre homens profanos.
[4] Steuchus Augustinis foi o autor de uma obra chamada De Perennie Philosophia, Lugfd., 1540, e é provavelmente o autor a quem Calvino se refere. A obra, todavia, é bem rara e provavelmente de muito pouco valor.
[5] A saber, em céus e terra.
[6] Neste ponto específico, o pensamento de Calvino evidencia o candor de sua mente e sua determinação em aderir estritamente àquilo que ele concebe ser o sentido das Sagradas Escrituras, independentemente da relação que possa ter com as doutrinas que ele sustém. Todavia, talvez seja justo direcionar o leitor que deseja examinar com profundidade o sentido da palavra אֱלֹהִ֑ים (Elohim) que se encontra no plural (e que é objeto de tantas controvérsias) e que traduzimos por Deus a algumas fontes de informação, a partir das quais ele, o leitor, pode formar seu próprio juízo a respeito do termo. Cocceius argumenta que o mistério da Trindade na Unidade está contido nessa palavra; vários outros escritores de reputação também adotam essa opinião. Outros, por sua vez, argumentam que, embora não seja dada nenhuma sugestão da Trindade na Unidade, ainda assim a noção de pluralidade das Pessoas está claramente implícita no termo. Para um relatório completo de todos os argumentos a favor dessa hipótese, pode-se consultar a obra do Dr. John Pye Smith acerca do testemunho escriturístico do Messias – uma obra de profunda erudição que se destaca pela dedicação paciente e pela análise que se desdobra de maneira sutil e reflexiva. Deve-se observar, contudo, que esse autor imparcial e diligente não se deparou com a objeção especial apresentada nessa passagem por Calvino, a saber, o risco de se cair involuntariamente no sabelianismo ao se tentar refutar o arianismo. (Nota do Editor).
[7] O erro de Sabélio (de acordo com Theodoret) consistia em sustentar “que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são apenas uma hipóstase e uma só Pessoa com três nomes”, ou, nas palavras do eminente erudito e historiador eclesiástico Dr. Burton, “Sabélio dividiu a Divindade Una em três, mas ele acreditava que o Filho e o Espírito Santo não tinham existência pessoal distinta, exceto quando trazidos à tona momentaneamente pelo Pai” – Cf. Burton’s Lectures on Ecclesiastical History [Palestras de Burton sobre História da Igreja], vol. 2, p. 365; e também sua Bampton Lectures, nota 103. Essas obras talvez irão auxiliar o leitor a entender a natureza do argumento de Calvino apresentado logo em seguida. Supondo que a palavra Elohim denota as Três Pessoas da Divindade no primeiro verso, ela também denota as mesmas Três Pessoas no segundo verso. Todavia, nesta passagem (isto é, o verso 2) Moisés diz que o Espírito de Elohim, isto é, o Espírito das Três Pessoas pairava sobre as águas. Sendo assim, a distinção das Pessoas se perde, pois o Espírito é Ele mesmo uma delas; portanto, consequentemente – segundo essa linha de raciocínio – o Espírito é enviado de Si mesmo. O mesmo raciocínio poderia provar que o Filho foi gerado por Si mesmo, pois Ele é uma das Pessoas de Elohim por meio do qual o Filho é gerado. (Nota do Editor).
[8] A interpretação dada acima com relação ao sentido da palavra אֱלֹהִ֑ים (Elohim) é corroborada pelas profundas investigações críticas do Dr. Hengstenberg, professor de Teologia na Universidade de Berlim, cujo trabalho, composto numa forma de certo modo nova, e intitulado “Dissertations on the Genuineness of the Pentateuco” [Ensaios sobre a autenticidade do Pentateuco], surge numa edição em inglês, sob a superintendência da Sociedade Continental de Tradução, enquanto estas páginas estão sendo editadas. Juntamente com outros críticos eruditos, ele conclui que tal palavra é derivada da raiz árabe “Allah”, que significa cultuar, adorar e ser tomado pelo temor. Hengstenberg, portanto, vê o título como especialmente uma descrição do terrível aspecto do caráter Divino. Com relação à forma plural da palavra, ele cita a afirmação dos rabis judeus segundo os quais o termo significa “Dominus potentiarum omnium”, isto é, “O SENHOR de todos os poderes”. O Dr. Hengstenberg se refere a Calvino e outros como tendo se oposto, ainda que seu efeito imediato, à noção sustentada por Pedro Lombardo relacionada ao mistério da Trindade. O erudito alemão também rejeita a sugestão profana de Le Clerc e seus sucessores da Escola Noológica de que o nome Elohim tem origem no politeísmo; e, em seguida, continua a mostrar que “há na língua hebraica um uso vastamente extenso do plural a fim de expressar a intensidade da ideia contida no singular”. Após numerosas referências, que provam esse ponto, ele dá sequência ao seu argumento: que, “se, em relação aos objetos terrenos, tudo aquilo que serve para representar uma ordem total de seres é trazido à mente mediante a forma plural, podemos antecipar uma aplicação ainda mais extensa desse método de distinção nos nomes de Deus, em cujo ser e atributos há, de maneira total, uma unidade que abrange e compreende toda a multiplicidade”. Ele ainda acrescenta: “o uso do plural possui o mesmo propósito que, em várias partes da Escritura, é realizado por uma acumulação dos nomes Divino; como em Josué 22:22; o triságio em Isaías 6:2 e הָֽאֱלֹהִ֔ים אֱלֹהֵ֣י (Elohey heelohym) e הָאֲדֹנִ֑ים אֲדֹנֵ֖י (Adonay Adonaym) em Deuteronômio 10:17. Este uso nos leva a dirigir nossa atenção às riquezas infinitas e à plenitude inexaurível contida no único Ser Divino, de forma que embora os homens possam conceber inúmeros deuses, investindo-os com uma série de perfeições, todavia, todas elas estão contido no único אֱלֹהִ֑ים (Elohim). Ver o supramencionado Dissertations, p. 268-273. Talvez seja necessário afirmar aqui que independente dos tesouros bíblicos que os escritos desse autor contenha – e, sem dúvida, são grandes tesouros –, ao leitor provavelmente será exigido manter alta a sua guarda quando da leitura da obra. Pois, não obstante a enérgica oposição geral do autor ao anti-supranaturalismo de seus conterrâneos, ele, entretanto, não escapou completamente do contágio daquilo que lutou para resistir. Pode haver ocasiões, portanto, nas quais será propício aludir a alguns de seus equívocos.
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Fonte: Christian Classics Ethereal Library
Tradução: Fabrício Moraes
Revisão: Leonardo Dâmaso
Revisão: Leonardo Dâmaso
Divulgação: Bereianos
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1 comentários:
Com todo respeito a João Calvino, mas a tradução e interpretação do prof. Osvaldo Luiz Ribeiro, sobre Gn 1:1, me parece estar de longe mais correta.
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