Níveis Causais

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Por Paul Helm


Fundamental para qualquer tentativa de obter compreensão sobre o relacionamento entre a atividade de Deus e as ações humanas que ocorrem dentro da ordem da providência divina é o reconhecimento do fato de que Deus é o Criador e que os agentes humanos são criaturas. Nenhum modelo da atividade divina e da ação humana pode ignorar esse fato e permanecer fiel ao ensino bíblico. O problema surge não com o reconhecimento desse fato, mas com a construção de uma forma de compreensão que faça justiça tanto a esse fato quanto à visão da providência isenta de risco.

Uma forma pela qual certos teólogos abordam o problema da agência divina e da agência humana é distinguir entre duas ordens de atividade, a ordem divina e a ordem humana. Tomás de Aquino, por exemplo, expõe essa distinção nos seguintes termos:

Deus age suficientemente dentro das coisas como o agente causador primário, e isso não significa que a atividade das causas secundárias seja supérflua. Uma ação não resulta de dois agentes do mesmo nível. Nada há, contudo, contra uma e a mesma ação resultando de uma causa primária e de uma causa secundária. Deus não somente dá forma às coisas, mas conserva sua existência, aplica-lhes suas ações e é o fim de todas as ações, como nós já afirmamos. [1]

Aquino se refere a níveis. Uma ação, digamos, a ação de digitar essa página, resulta de dois agentes: resulta de Deus e resulta de mim. Mas essas forças causais não competem nem entram em conflito uma com a outra, porque são ordens diferentes. A causa divina primária assegura a realização da ação de digitar essa página, do ponto de vista da ordem divina, enquanto minha própria força causal assegura a realização dessa ação em um nível secundário.

Entre os Reformadores, João Calvino faz uma afirmação semelhante:

Essa diferença de causas, sobre a qual eu já me estendi, não deve ser esquecida – que uma causa é próxima e a outra é remota. A observação cuidadosa dessa distinção é indispensável para que nós compreendamos quão sábia e quão importante é a distinção entre a justa e equitativa Providência de Deus e a turbulenta impetuosidade dos homens. Nossos adversários nos enchem de calúnias mesquinhas e escandalosas, quando colocam em nossos lábios que nós fazemos de Deus o autor do pecado ao afirmar que sua vontade é a causa de todas as coisas que são feitas. Pois quando um homem age injustamente, incitado pela ambição, ou pela avareza, ou pela luxúria, ou por qualquer outra paixão depravada, se Deus, por seu justo e secreto juízo, realiza suas obras por meio dessas mãos, a menção de pecado ao pode ser feita com referência a Deus, em seus justos atos. [2]

O sol se levanta dia após dia, mas é Deus quem ilumina a terra com seus raios. A terra produz seus frutos, mas é Deus quem dá o pão e é Deus quem dá força pela nutrição desse pão. Em uma palavra, como toda causa inferior e secundária, vista em si mesma, cobre como cortinas a glória de Deus de nossa vista (o que acontece muito frequentemente), o olho da fé deve olhar mais alto, e contemplar a mão de Deus agindo através de todos esses seus instrumentos. [3]

É pelo uso dessa distinção entre Deus, a causa primária, e as causas secundárias que Calvino (por exemplo) é capaz de distinguir entre (a) o propósito e a intenção humana e (b) o mais elevado propósito e intenção de Deus em ordenar a ação da causa secundária.

Aquelas coisas que são vaidosas e injustamente feitas pelo homem são, correta e justamente, as obras de Deus! [4]

Quando Deus expõe seu poder através de meios e causas secundárias, esse poder nunca deve ser separado desses meios ou causas inferiores. É o excesso de um beberrão dizer: “Deus decretou tudo o que deve acontecer, e tudo deve acontecer; portanto, interpor qualquer cuidado ou estudo, ou esforço nosso, é supérfluo e vão”. Mas já que Deus prescreve a nós o que nós devemos fazer, e deseja que nós sejamos os instrumentos da operação de seu poder, julguemos ilegal nos separarmos naquelas coisas que ele faz junto conosco. [5]

E um escritor moderno, James Ross, escreveu:

Empregando o princípio de Aquino, de que Deus é o produtor suficiente de todos os eventos finitos, nós sabemos que em algum sentido ele é a causa tanto dos sofrimentos quanto dos atos imorais dos homens. Apesar disso, nós não podemos pensar que ele provoque esses eventos de tal forma que os atos dos homens deixem de ser imorais e os eventos deixem de causar sofrimento. Deus pode ser a causa de minhas ações pecaminosas de tal forma que eu ainda faça o que eu não deveria fazer com pleno conhecimento, previsão e responsabilidade... Qualquer interpretação da relação de Deus com o mundo que entre em conflito com essa suposição é obviamente falsa e contrária às doutrinas cristãs às quais a análise é primariamente relevante... nossa solução envolve uma proposição tal como a de Aquino: que para o mesmo evento duas correntes de suficiência causal e de necessidade causal estão simultaneamente presentes, e são simultaneamente requeridas. [6]

O teólogo anglicano Austin Farrer argumentou que:

Nós entramos em sua [i.e., de Deus] ação simplesmente por agir, que seja a ação um movimento de pensamento ou um movimento da mão. Nós cremos e até mesmo afirmamos encontrar, que sua ação sustenta ou inspira as nossas, mas a assistência divina é experimentada simplesmente em seus efeitos. [7]

A articulação causal (podemos dizer) entre as ações finitas e infinitas pode ou não tomar parte em nossa preocupação com Deus e sua vontade. [8]

Tanto as ações humanas quanto as ações divinas permanecem reais e, portanto, livres na relação entre si. Não conhecendo a modalidade da ação divina, não podemos posicionar o problema de sua mútua relação. [9]

Dois agentes para o mesmo ato é algo impossível, se ambos os agentes tiverem o mesmo sentido e estiverem no mesmo nível. [10]

Farrer afirma a existência de um duplo nível de causalidade, mas não oferece explicação sobre isso, já que o exato relacionamento entre o nível mais alto e o nível mais baixo de causalidade é oculto a nós.

Como explicado por Vernon White, [11] isso significa que Deus organiza e ordena a realidade de tal forma que, seja qual for a intenção da criatura, ela implica a intenção divina em um contexto mais amplo. Dessa forma, a intenção de Judas de trair Jesus tem um sentido dentro da intenção de Deus diferente da intenção do próprio Judas. Isso é benéfico, mas nós não podemos dizer (para preservar os dois níveis de causalidade rigorosamente) que seja o que for que Judas planeje, isso está colocado por Deus em um esquema mais amplo de significado, mas que de alguma forma Deus causa a intenção específica de Judas, e acrescenta o próprio nível causativo inferior do evento.

A proposta de dois níveis parece ser uma solução engenhosa e persuasiva. Ela certamente tem o mérito de preservar a disparidade entre a ação do Criador e a ação de suas criaturas, pois é totalmente apropriado que essas duas ações sejam consideradas como ações de diferentes ordens.

Se nós olharmos um pouco mais de perto, contudo, certas dificuldades emergem. Precisamente qual é a força causal primária da qual minha ação deriva? “Deriva” em que sentido? Claramente não é adequado entender essa derivação em termos da provisão de Deus das condições necessárias para a minha ação, pois enquanto a provisão das condições necessárias permitiria ou tornaria possível minha ação, essas condições não assegurariam que minha ação fosse realizada. Para assegurar a ocorrência dessa ação, as condições divinas, condições de ordem primária, teriam que ser tanto necessárias quanto suficientes.

Mas se essas condições são tão necessárias quanto suficientes para a realização da ação, então elas asseguram que a ação aconteça. Mas se existem causas divinas que asseguram que essa ação aconteça, então que parte tomam os desejos e as razões (e o que mais nós ordinariamente pensamos que produzem nossas ações) da pessoa?

De acordo com essa visão, o que Deus provê, por sua atividade causativa de primeira ordem, não pode ser meramente que eu existo e possuo certos poderes. Em vez disso, Deus age de tal forma que eu realmente emprego esses poderes na realização de uma ação definida. Se eu tenho meu poder (independente do que Deus possa fazer) para realizar a ação, então a causalidade divina, primária, pode ser somente a provisão das condições necessárias para essa ação, nunca uma condição suficiente.

Em resumo, é difícil ver que possa haver dois conjuntos separados de condições necessárias e condições suficientes para a mesma ação, mesmo que um desses conjuntos seja de condições primárias e o outro seja de condições secundárias. Chamar certas condições de primárias e outras de secundárias não resolve o problema por si mesmo.

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Notas:
[1] Summa Theologiae vol. 14, trad. T. C. O’ Brien (Londres: Eyre and Spottiswoode, 1975), Ia. 105.5.
[2] A Defence of the Secret Providence of God, p. 251.
[3] Ibid., p. 231
[4] Ibid., p. 233.
[5] Ibid., pp. 235,236.
[6] Philosophical Theology (Indianápolis: Bobbs-Merrill, 1969), pp. 252,253. Veja também Kathryn Tanner, God and Creation in Christian Theology: Tyranny or Empowerment? (Oxford: Blackwell, 1988).
[7] Austin Farrer, Faith and Speculation, (Londres: Black, 1967), pp. 64,65. Veja também Vernon White, The Fall of a Sparrow (Exeter: Paternoster Press, 1985).
[8] Austin Farrer, op. cit., p. 65.
[9] Austin Farrer, op. cit., p. 66.
[10] Austin Farrer, op. cit., p. 194.
[11] Vernon White, op. cit., p. 116.

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Fonte: HELM, Paul, A Providência de Deus (Série Teologia Cristã), ed. Cultura Cristã, cap. 7, ps. 158-162
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