Orare et labutare: A Hermenêutica Reformada das Escrituras - 2/3

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Por Rev. Paulo R. B. Anglada


IV. Principais Correntes de Interpretação 

As classificações normalmente pecam pelo simplismo. É de fato difícil resumir e agrupar adequadamente as diversas ênfases, tendências, princípios e práticas de uma determinada área de estudos, sem negligenciar peculiaridades importantes. Com a hermenêutica não é diferente. Contudo, observando as diferentes ênfases, tendências, princípios e práticas de interpretação das Escrituras adotados no curso da história da Igreja, pode-se perceber pelo menos três correntes gerais nas quais as diversas escolas podem ser de certo modo agrupadas: 

A. Corrente Espiritualista 

Muitos grupos na história da interpretação bíblica se caracterizaram por superenfatizar o caráter espiritual (místico) das Escrituras, em detrimento do seu caráter humano. Esta corrente distingue-se especialmente pela insatisfação generalizada com o sentido natural, literal das Escrituras. Dois dos textos mais explorados são 2 Coríntios 3.6: ‘‘...a letra mata, mas o Espírito vivifica’’ e 1 Coríntios 2.7: ‘‘...falamos a sabedoria de Deus em mistério’’. O maior perigo dessa corrente de interpretação é o subjetivismo e o misticismo. Nenhuma das duas passagens mencionadas prescreve a supremacia de sentidos "espirituais" e ocultos da Escritura sobre sentidos naturais e óbvios. 2 Coríntios 3.6 faz um contraste entre os dois ministérios ou alianças exercidos por Moisés e por Cristo; 1 Coríntios 2.7 trata do mistério de Deus, que é Cristo, mistério agora revelado. Nada há nestas passagens que exaltem sentidos ocultos da Escritura, disponíveis apenas aos "espirituais" ou avançados. Alguns sistemas hermenêuticos pertencentes à corrente espiritualista são descritos abaixo. 

1. A Hermenêutica Alegórica 

Trata-se de um dos métodos de interpretação mais antigos. Fortemente influenciados pelo platonismo e pelo alegorismo judaico, os defensores desse método de interpretação atribuíam diversos sentidos ao texto das Escrituras, enfatizando o sentido chamado de alegórico. 

Clemente de Alexandria (†215) e Orígenes (†254) são os dois principais nomes da escola alegórica de Alexandria, no Egito. Clemente identificava cinco sentidos para um dado texto das Escrituras: 1) histórico, 2) doutrinário, 3) profético, 4) filosófico e 5) místico. Orígenes distinguia três níveis de sentidos: 1) o literal, ao nível do corpo, 2) o moral, ao nível da alma, e 3) o alegórico, ao nível do espírito. 

A hermenêutica alegórica prevaleceu durante toda a Idade Média, especialmente em sua forma quádrupla. Sua origem é provavelmente o sistema hermenêutico de Agostinho. Segundo este método, as passagens das Escrituras teriam quatro sentidos: um sentido literal, e três sentidos espirituais: moral, alegórico e anagógico. O sentido literal seria o registro do que aconteceu (o fato); o sentido moral conteria uma exortação quanto à conduta (o que fazer); o sentido alegórico ensinaria uma doutrina a ser crida (o que crer); e o sentido anagógico apontaria para uma promessa a ser cumprida (o que esperar). Assim, uma referência bíblica sobre a água, teria um sentido literal (a água), um sentido moral (exortação a uma vida pura), um sentido alegórico (o sacramento do batismo), e um sentido anagógico (a água da vida na Nova Jerusalém).[4]

Este método pode fornecer esplêndidas interpretações, mas rouba o real significado do texto, desviando a atenção do leitor do seu verdadeiro sentido, que o Espírito Santo intentou transmitir. 

O caráter fantasioso deste método de interpretação fica manifesto na conhecida interpretação alegórica de Orígenes[5] da parábola do bom samaritano (Lc 10.30-37). Segundo ele, o homem atacado pelos ladrões simbolizava Adão (a humanidade); Jerusalém, os céus; Jericó, o mundo; os ladrões, o diabo e suas hostes; o sacerdote, a lei; o levita, os profetas; o bom samaritano, Cristo: o animal sobre o qual foi colocado o homem ferido, o corpo de Cristo (que suporta o Adão caído); a estalagem, a igreja; as duas moedas, o Pai e o Filho; e a promessa do bom samaritano de voltar, a segunda vinda de Cristo.[6] 

Outro exemplo do caráter fantasioso desse método de interpretação pode ser percebido nas diferentes interpretações alegóricas atribuídas às duas moedas mencionadas nessa parábola: o Pai e o Filho, o Antigo e o Novo Testamento, os dois mandamentos do amor (a Deus e ao próximo), fé e obras, virtude e conhecimento, o corpo e o sangue de Cristo, etc. 

2. A Hermenêutica Intuitiva 

Muitos são consciente ou inconscientemente adeptos desta corrente de interpretação bíblica. Também chamados de impressionistas,[7] os hermeneutas intuitivos caracterizam-se por identificar a mensagem do texto com os pensamentos que lhes vêm à mente ao lê-lo, sem contudo dar a devida atenção à gramática, ao contexto e às circunstâncias históricas, geográficas, culturais, religiosas, etc. Um passo adiante estão os místicos, que aqui e ali aparecem na história da igreja, com a sua ênfase na iluminação interior. Uma versão moderna do método de interpretação intuitiva pode ser verificada na prática de abrir as Escrituras ao acaso para pregar ou encontrar uma mensagem para uma ocasião específica, sem o devido estudo do texto e do seu contexto histórico. 

3. A Hermenêutica Existencialista 

Há uma escola contemporânea de interpretação das Escrituras que enfatiza excessivamente o conhecimento subjetivo em detrimento do seu sentido gramatical e histórico. Trata-se da assim chamada nova hermenêutica, que nada mais é do que um desenvolvimento dos princípios hermenêuticos de Bultmann, com sua ênfase na relevância da mensagem do Novo Testamento para o homem contemporâneo. 

Para Bultmann e para a nova hermenêutica — reconhecidamente influenciados pela filosofia existencialista de Martin Heidegger[8] — o importante não é a intenção do autor, nem o que o texto falou aos seus leitores originais, mas o que fala a nós, hoje, no nosso contexto: esse é o sentido do texto. Para a hermenêutica existencialista o importante mesmo não é o texto, mas o que está por trás dele. Não interessa tanto o que o texto diz (historicamente), mas o que ele quer dizer (existencialmente). Logo, as Escrituras só serão interpretadas realmente se lidas existencialmente, se forem experimentadas. Ou seja, as Escrituras não são objetivamente a Palavra de Deus, elas se tornam Palavra de Deus, quando nos falam subjetivamente. 

Talvez as principais críticas à hermenêutica existencialista sejam que ela rejeita o elemento sobrenatural das Escrituras (milagres, encarnação, ressurreição, etc.) como sendo mitos, e que torna subjetivo o conceito de Palavra de Deus, com sua ênfase existencialista. Com isso, ela esvazia a mensagem bíblica e, assim como o método alegórico e o método intuitivo, abre espaço para se ler no texto quaisquer idéias ou conceitos originados na mente do leitor.[9]

B. Corrente Humanista 

No extremo oposto da corrente espiritualista encontra-se a corrente que se pode chamar de humanista. Esta corrente caracteriza-se por dar ênfase excessiva ao caráter humano das Escrituras e por uma aversão ao seu caráter sobrenatural. A ênfase dessa corrente está no método, na técnica, nos aspectos literários ou históricos das Escrituras, em detrimento do seu caráter divino, espiritual e sobrenatural. 

1. Precursores 

Os saduceus, com o seu repúdio à doutrina da ressurreição e descrença na existência de seres angelicais, podem ser considerados como precursores dessa corrente de interpretação das Escrituras.[10] Pouco se sabe sobre a origem desse partido judaico, mas parece haver adotado uma posição secular-pragmática de interpretação das Escrituras.Ao negarem verdades básicas das Escrituras, os saduceus podem ser considerados, guardadas as devidas proporções, como os modernistas ou liberais da época.[11] 

2. Humanismo Renascentista 

Os humanistas renascentistas, com seu interesse meramente literário e acadêmico nas Escrituras, e com sua ênfase na moral, também podem ser incluídos nesta corrente de interpretação bíblica. Alguns se dedicaram ao estudo das Escrituras, outros chegaram até a editar textos bíblicos na língua original. Mas o interesse deles era meramente acadêmico, lingüístico, literário e histórico. Estavam interessados nas Escrituras por sua antigüidade e não por serem a Palavra de Deus. 

3. Escola Crítica 

A escola mais característica e influente desta corrente de interpretação bíblica é a escola crítica, com o seu método histórico-crítico. Uma das razões para o surgimento do método histórico-crítico parece ter sido ‘‘a pretensão de tornar científicos os estudos bíblicos, ou seja, faze-los compatíveis com o modelo científico e acadêmico da época.’’[12] E o resultado desta nova postura para com as Escrituras (crítica, ao invés de gramatical) foi o liberalismo teológico que tem assolado a Igreja desde o século passado. 

Trata-se sem dúvida de uma hermenêutica racionalista. Ao invés da revelação governar a razão, a razão é que determina a revelação. A razão e o intelecto passaram a ser determinantes, sendo rejeitado como erro, fábula ou mito tudo o que não puder ser explicado ou harmonizado com a razão. 

Os adeptos desta corrente rejeitam as doutrinas reformadas das Escrituras, tais como inspiração, autoridade, inerrância, e preservação; enfatizam a moralidade e descartam o sobrenatural. Sob forte influência do evolucionismo de Darwin e da dialética de Hegel, as Escrituras deixaram de ser vistas como a Palavra de Deus inspirada na qual ele se revela ao homem, passando a ser considerada ‘‘como um registro do desenvolvimento evolucionista da consciência religiosa de Israel (e mais tarde da Igreja)’’.[13] O conceito liberal de inspiração das Escrituras só é objetivo no sentido de as Escrituras serem o objeto da inspiração. No mais, é subjetivo: elas são o sujeito: elas é que inspiram, com o ‘‘seu poder de inspirar experiências religiosas’’.[14] 

Na prática, portanto, a principal característica da escola crítica de interpretação é o pressuposto de que as Escrituras devem ser estudadas do mesmo modo que as demais literaturas antigas, pelo emprego das mesmas metodologias. Esta postura, crítica, com sua ênfase apenas no caráter humano das Escrituras, resultou em uma série de metodologias críticas de caráter histórico ou lingüístico que vêm sendo empregadas na interpretação das Escrituras. 

A crítica ou história da tradição é uma dessas metodologias, cuja pretensão é ‘‘descobrir a história percorrida por determinado trecho, no âmbito da tradição oral, ou seja, na fase anterior à sua fixação literária mais antiga’’.[15] Isto é: estudar como os eventos históricos e ensinos originais de Jesus teriam dado origem às diversas formas de tradições orais até o seu registro escrito. Seu propósito é ‘‘destradicionalizar’’ (semelhante à desmitologização de Bultmann) os Evangelhos, em busca do ‘‘fato’’ ou ensino ‘‘original’’.[16] 

A crítica da forma é outra metodologia crítica. Sua pretensão é classificar os escritos do Novo Testamento em gêneros literários e identificar as tradições que teriam dado origem às fontes empregadas pelos autores do Novo Testamento. Segundo os teóricos da crítica da forma,[17] os evangelhos provém de tradições orais não cronológicas existentes (chamadas de paradigmas, novelas, lendas, mitos e exortações). Posteriormente essas tradições orais teriam sido organizadas em relatos cronológicos escritos que foram empregados pelos evangelistas. Mas a teoria é extremamente especulativa, visto que não explica como esses gêneros teriam surgido e se desenvolvido. Além disso, não existe registro histórico dessas supostas coleções não cronológicas.[18] 

Outra metodologia desenvolvida pela escola crítica de interpretação é a crítica das fontes. De acordo com esta teoria há muito pouco nos evangelhos (especialmente nos sinópticos) originário dos evangelistas. Eles teriam sido mais coletores e editores dos diversos relatos (tradições escritas) existentes sobre a vida de Jesus do que propriamente autores. A teoria se baseia nas palavras de Lucas no início do seu evangelho (cf. Lc 1.1,3), e na observação de que os evangelhos de Mateus e Lucas normalmente concordam literalmente com o evangelho de Marcos (ambos ou cada um isoladamente), enquanto que raramente concordam entre si, quando discordam de Marcos. 

A conclusão mais comum a que se chegou é que Mateus e Lucas foram copiados de Marcos (quando concordam com ele) e de outra suposta fonte chamada "Q", quando concordam entre si, mas discordam de Marcos. 

Não há, contudo, concordância entre os críticos da forma. As evidências internas (baseadas em supostas inconsistências cronológicas, estilísticas, teológicas e históricas) a favor dessa teoria são bastante limitadas, subjetivas, ambíguas e contraditórias com as evidências externas (afirmativas dos pais da igreja que apontam de modo unânime em direção oposta).[19] Muitas outras possibilidades tornam qualquer conclusão extremamente incerta. Marcos poderia ter usado Mateus e Lucas; os três evangelistas podem ter usado as mesmas fontes; Jesus pode ter repetido ensinos e parábolas com palavras diferentes em ocasiões diferentes, etc. A verdade é que não se sabe com exatidão como os evangelistas escreveram seus evangelhos. 

Parece evidente que pelo menos um, Lucas, lançou mão de algumas fontes, mas conforme ele mesmo afirma, ele e suas fontes basearam-se no que lhes transmitiram ‘‘testemunhas oculares’’ dos acontecimentos (Lc 1.2). Entretanto, não há meios de saber concretamente que fontes foram estas e até que ponto e como as usaram. Isso torna a crítica da forma necessariamente especulativa. De concreto, mesmo, têm-se os Evangelhos, como Palavra de Deus escrita por homens inspirados (movidos) pelo Espírito Santo, fundamentados no que testemunharam e no testemunho de outras testemunhas oculares, e, portanto, fidedignas. 

Além dessas metodologias, há também a crítica da redação, que se propõe a estudar como os evangelistas teriam usado (editado) as suas supostas fontes na composição dos evangelhos; isto é, que mudanças peculiares (ou contribuições) teriam sido introduzidas pelos evangelistas às fontes que usaram, e com que propósito (especialmente teológico).[20] Mas, a que conclusões seguras se pode chegar com a crítica da redação, se nem mesmo há certeza alguma com relação ao uso das fontes? 

Por fim, pode ser mencionado o criticismo histórico. Sua pretensão é avaliar a historicidade das narrativas bíblicas, ou, como escreve Marshall, ‘‘...testar a precisão do que se propõe ser uma narrativa histórica.’’[21] Mas este propósito não é somente pretensioso (inconsistente do ponto de vista bíblico); é também tendencioso, na medida em que explora as aparentes contradições internas (especialmente entre as passagens paralelas dos evangelhos) e externas (com fontes seculares e históricas); e encara os relatos de ocorrências sobrenaturais por uma perspectiva altamente especulativa. Assim, o criticismo histórico não vê os textos paralelos como complementares, mas como contraditórios; atribui às fontes seculares autoridade superior à das Escrituras; rejeita as intervenções sobrenaturais; e considera muitas narrativas históricas como invenção da igreja, novelas ou mitos. 

O gráfico a seguir resume estas metodologias críticas do método histórico-crítico de interpretação dos evangelhos, em ordem lógica.


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Os resultados de todas estas metodologias críticas são inseguros, questionáveis e dúbios, e sua aplicação prática extremamente limitada (se possível). São hipóteses construídas sobre especulações infrutíferas que não contribuem em praticamente nada para a compreensão do texto do Novo Testamento, a não ser para lançar dúvidas sobre a sua inspiração, autoridade e inerrância.[22] 

Não obstante, parece que a corrente humanista de interpretação das Escrituras tem começado a prevalecer em um número considerável de seminários teológicos no nosso país. A ênfase hermenêutica destes seminários está no método, na técnica, nos aspectos literários ou históricos das Escrituras, em detrimento do seu caráter divino, espiritual e sobrenatural. A metodologia predominante tem sido o método histórico-crítico. E, em virtude da impossibilidade de conciliar este método com as doutrinas bíblicas da inspiração, autoridade, suficiência, inerrância e preservação das Escrituras, muitos destes seminários têm se afastado cada vez mais da verdadeira fides reformata (fé reformada). 

Como os resultados das metodologias críticas empregadas pelo método histórico-crítico são quase sempre infrutíferos, e sua aplicação prática extremamente limitada, não é incomum que o produto final de muitos dos nossos seminários seja formandos despreparados para o ofício de ministros da Palavra. Nesta condição, não é de estranhar que, como observou Lopes, ‘‘...os púlpitos de bom número das igrejas evangélicas destilam uma espécie de sermão onde pouca ou nenhuma atenção se dá ao sentido original do texto bíblico’’.[23] Destilam também, acrescento, teologias imprecisas e inconsistentes, que pouco edificam os membros de suas congregações. 

Continua...

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