A corrente reformada de interpretação das Escrituras (objeto específico deste estudo) posiciona-se entre as duas correntes extremas já consideradas. Ela (a corrente reformada) caracteriza-se pelo equilíbrio resultante do reconhecimento do caráter divino-humano das Escrituras. Em função disso, os intérpretes desta corrente reconhecem a necessidade da iluminação do Espírito falando através da própria Palavra, ao mesmo tempo em que admitem a necessidade de interpretação gramatical e histórica das Escrituras. A interpretação reformada rejeita, por um lado, a alegorização indevida das Escrituras e, por outro, repudia uma postura primariamente crítica com relação a elas.
1. Método Gramático-Histórico
O método de interpretação adotado e praticado pela corrente reformada ou protestante conservadora é conhecido pelo nome de método gramático-histórico; o método de interpretação honrado pelo tempo, no dizer de M. Lloyd-Jones. Trata-se de um método fundamentado em pressuposições bíblicas quanto à própria natureza das Escrituras, que emprega princípios gerais e métodos lingüísticos e históricos coerentes com o caráter divino-humano da Palavra de Deus.
2. Precursores: Escola de Antioquia e Agostinho
Os reformadores não criaram este método de interpretação bíblica do nada. Eles se fundamentaram no próprio ensino bíblico sobre a sua natureza e na prática apostólica. As origens da interpretação reformada também são encontradas na escola de Antioquia da Síria, que pode ser considerada precursora do método gramático-histórico. Seus principais representantes foram Teodoro de Mopsuéstia (†428) e João Crisóstomo (†407), o ‘‘Boca de Ouro’’. Eles rejeitaram tanto o literalismo judeu, como o alegorismo de Alexandria; defendiam uma interpretação literal e histórica das Escrituras; criam na realidade histórica dos eventos descritos no Antigo Testamento; defendiam a unidade das Escrituras e admitiam o desenvolvimento ou progressividade da revelação.[24]
Agostinho também pode ser considerado precursor do método gramático-histórico de interpretação bíblica. Ele não parece haver sido consistente na aplicação do seu método. De fato, sua distinção de quatro sentidos das Escrituras foi tão influente que prevaleceu por toda a Idade Média, como já foi visto. Apesar disso, ele estabeleceu importantes princípios de interpretação bíblica no seu manual de hermenêutica e pregação, De Doctrina Chistiana. Eis alguns desses princípios: [25]
1. A fé é um pré-requisito fundamental para o intérprete da Palavra de Deus.
2. Deve-se considerar o sentido literal e histórico do texto.
3. O Antigo Testamento é um documento cristológico.
4. O propósito do expositor é descobrir o sentido do texto e não atribuir-lhe sentido.
5. O credo ortodoxo deve controlar a interpretação das Escrituras.
6. O texto não deve ser estudado isoladamente, mas no seu contexto bíblico geral.
7. Se o texto for obscuro, não pode se tornar matéria de fé. As passagens obscuras devem dar lugar às passagens claras.
8. O Espírito Santo não dispensa o aprendizado das línguas originais, geografia, história, ciências naturais, filosofia, etc.
9. As Escrituras não devem ser interpretadas de modo a se contradizerem. Para isso, deve-se considerar a progressividade da revelação.
3. Princípios Reformados
Tem sido reconhecido que a reforma teológica e eclesiástica do século XVI foi o resultado de outra reforma: uma reforma hermenêutico-exegética.[26] De fato, a redescoberta das doutrinas bíblicas pelos reformadores e a reforma eclesiástica decorrente foram precedidas por um evidente rompimento com os princípios hermenêuticos e com a prática exegética medieval.
a. A Única Regra Infalível de Interpretação
A Reforma Protestante rejeitou veementemente a hermenêutica alegórica medieval, e registrou seu repúdio em alguns dos seus principais símbolos de fé. Eis um exemplo: o parágrafo IX do capítulo I da Confissão de Fé de Westminster (idêntico ao mesmo parágrafo da Confissão de Fé Batista de 1689):
A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.
Este parágrafo estabelece o princípio reformado fundamental de interpretação bíblica, segundo o qual a única regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Ela se auto-interpreta, elucidando, assim, suas passagens mais difíceis. O que estas confissões querem dizer com essa afirmativa é que o sentido de uma passagem obscura não pode ser autoritativamente determinado nem por tradição, nem por decisão eclesiástica, nem por argumento filosófico, nem por intuição espiritual, mas sim, unicamente, por outras partes das Escrituras que expliquem e esclareçam o seu sentido.
b. Repúdio à Interpretação Alegórica Medieval
O parágrafo acima, citado da Confissão de Fé, também representa o repúdio dos reformadores ao método de interpretação quádrupla medieval. Em lugar dele, os reformadores ensinavam que cada passagem das Escrituras tem um só sentido, que é literal — a não ser que o próprio contexto ou outro texto das Escrituras requeiram claramente uma interpretação figurada ou metafórica.
John Colet (c. 1467-1519) foi um dos primeiros reformadores a romper com o método alegórico medieval, ao expor em 1496, em Oxford, as cartas do apóstolo Paulo em seu sentido literal e no seu contexto histórico.[27] Três anos depois, em 1499, ele já sustentava o princípio de que as Escrituras não podem ter senão um único significado: o mais simples.[28]
Lutero também rejeitou a interpretação alegórica. Defendeu que ‘‘nós devemos nos ater ao sentido simples, puro e natural das palavras, como requerido pela gramática e pelo uso do idioma criado por Deus entre os homens.’’[29]
Quanto a Calvino, sua aversão à interpretação alegórica era de tal ordem que ele chegou a afirmar ser satânica, por desviar o homem da verdade das Escrituras. ‘‘É uma audácia próxima do sacrilégio’’, escreveu ele, ‘‘usar as Escrituras ao nosso bel-prazer e brincar com elas como com uma bola de tênis, como muitos antes de nós o fizeram.’’[30]
c. Necessidade de Iluminação Espiritual
Os reformadores reconheceram a natureza divino-humana das Escrituras, e enfatizaram o papel do Espírito Santo no processo de interpretação da sua mensagem. Para eles, o impedimento maior estava na cegueira espiritual do homem, em função da queda, e não nas Escrituras. Tanto para Lutero, como para Calvino,[31] nenhuma pessoa poderia interpretar corretamente as Escrituras sem a ação iluminadora do Espírito Santo através da própria Palavra. Eis as palavras de Lutero sobre o assunto:
...a verdade é que ninguém que não possui o Espírito de Deus vê um til sequer do que está na Escritura. Todos os homens têm seus corações obscurecidos, de modo que, mesmo quando discutem e citam tudo o que está na Escritura, não compreendem ou conhecem realmente qualquer assunto dela... O Espírito é necessário para a compreensão de toda a Escritura e cada uma de suas partes.[32]
d. Interpretação Gramatical e Histórica
Por outro lado, reconhecendo a natureza histórica das Escrituras, os reformadores defendiam a sua interpretação literal, enfatizando também a importância da gramática e da história na compreensão da sua mensagem.
Melanchton foi um dos responsáveis pela ênfase reformada na exegese gramatical. Em um discurso proferido em 1518 em Wittenberg, ele exortou seus ouvintes a recorrerem às Escrituras nas línguas originais, onde encontrariam Cristo, livre das discordâncias dos teólogos latinos. Lutero ficou tão impressionado com o que ouviu, que passou a assistir às aulas de grego de Melanchton, dedicando-se com afinco ao estudo do grego.[33]
Mas foi Calvino, sem dúvida, quem melhor praticou a exegese gramatical e histórica. Ele tem sido considerado por muitos o maior intérprete da Reforma e um dos maiores de todas as épocas. A profundidade, lucidez e erudição dos seus comentários, que abrangem praticamente todos os livros da Bíblia,[34] continuam a ser admirados e considerados atuais e raramente igualados.[35] E não se pense que essa é a opinião apenas dos calvinistas (um compreensível exagero presbiteriano deste autor). Mesmo Jacobus Arminius (1560-1609), um dos mais conhecidos opositores das doutrinas de Calvino, reconhecia a excelência dos comentários dele, e chegou a recomendá-los como incomparáveis. Eis suas palavras:
Depois da leitura das Escrituras..., e mais do que qualquer outra coisa,... eu recomendo a leitura dos Comentários de Calvino... Pois afirmo que na interpretação das Escrituras Calvino é incomparável, e que seus Comentários são mais valiosos do que qualquer coisa que nos tenha sido legada nos escritos dos pais — tanto assim que atribuo a ele um certo espírito de profecia no qual ele se encontra em uma posição distinta acima de outros, acima da maioria, na verdade, acima de todos.[36]
e. Desenvolvimento do Método Gramático Histórico
Estes e outros princípios de interpretação praticados pelos reformadores (Lutero, Calvino e demais reformadores alemães, suíços, franceses e ingleses) viriam a ser desenvolvidos e adotados pelo protestantismo ortodoxo em geral desde então,[37] e se tornaram conhecidos pelo nome de método gramático-histórico de interpretação bíblica.
Foi este o método empregado pelos puritanos no séc. XVII;[38] pelos líderes evangélicos do século XVIII na Europa e América do Norte (tais como George Whitefield e Jonathan Edwards); pelo anglicano J. C. Ryle, pelo batista Charles Spurgeon na Inglaterra e pelos presbiterianos Charles e Alexander Hodge no Seminário de Princeton nos EUA, no século passado; e pelos intérpretes e pregadores protestantes (luteranos, anglicanos, presbiterianos e batistas) ortodoxos deste século.
Os manuais de hermenêutica de Davidson, Patrick, Imer, Terry, Berkhof, Berkeley, Mickelsen e Ramm pertencem todos a essa escola de interpretação bíblica, bem como os comentários bíblicos de Keil e Delitzsch, Meyer, Matthew Henry, Lange, Alford, Ellicot, Lightfoot, Hodge, Broadus e muitos outros.
O método gramático-histórico de interpretação bíblica desenvolvido pela corrente reformada é, de fato, a hermenêutica honrada pelo tempo. É um método coerente com a natureza das Escrituras; fundamenta-se em pressuposições teológicas bíblicas; e emprega princípios gerais adequados e métodos lingüísticos e históricos extremamente frutíferos.
Conclusão
A teologia e a praxis eclesiástica deformadas do evangelicalismo moderno clamam por reforma; clamam por um novo retorno às Escrituras. A corrente espiritualista de interpretação bíblica já foi colocada na balança e achada em falta: as hermenêuticas alegórica, intuitiva e existencialista, por não darem a devida consideração ao caráter humano das Escrituras, abrem espaço para todo tipo de eisegese. O caráter fantasioso destas hermenêuticas acaba desviando a atenção do leitor ou ouvinte do verdadeiro sentido do texto bíblico (aquele que o Espírito Santo intentou transmitir).
A corrente humanista de interpretação bíblica também já foi colocada na balança e achada em falta: a hermenêutica dos saduceus, dos humanistas renascentistas e da escola crítica, por não darem a devida atenção ao caráter divino das Escrituras, tendem a atribuir à razão a autoridade que pertence à revelação. Este caráter racionalista da hermenêutica humanista induz ao liberalismo teológico que acaba negando a legítima fé reformada.
A corrente reformada de interpretação bíblica também já foi colocada na balança da história, mas foi aprovada com louvor: o método gramático-histórico fundamentado no próprio ensino bíblico sobre as Escrituras e desenvolvido e aplicado pelos reformadores e seus legítimos herdeiros, por dar a devida atenção tanto ao caráter divino como ao caráter histórico das Escrituras, promoveu as reformas teológicas e eclesiásticas mais profundas já experimentadas pela igreja cristã.
Durante a Reforma Protestante do século XVI e a reforma puritana do século XVII, por exemplo, muito entulho religioso teve que ser rejeitado. Muitas doutrinas e práticas eclesiásticas acumuladas no decurso dos séculos tiveram que ser abolidas, quando reformadores e puritanos dedicaram-se com labor e oração a perscrutar as Escrituras para ver se as coisas eram de fato assim. A hermenêutica reformada das Escrituras já demonstrou ter a capacidade de revelar a falácia de doutrinas e práticas eclesiásticas ‘‘fundamentadas’’ em interpretações alegóricas, intuitivas, existencialistas e racionalistas.
Na convicção deste autor, o evangelicalismo brasileiro tem acumulado nos últimos cem anos — especialmente nas últimas décadas — considerável entulho religioso. Não é possível entrar em detalhes aqui. Mas a proliferação de teologias estranhíssimas, práticas litúrgicas inusitadas e condutas eclesiásticas no mínimo excêntricas, já descaracterizaram a fé e o culto reformados. Mesmo denominações historicamente reformadas têm absorvido doutrinas e práticas de culto inconsistentes com o ensino bíblico e com seus símbolos de fé. Esta descaracterização se explica, pelo menos em parte, pelo emprego das hermenêuticas deficientes que estivemos considerando.
Não é tempo, portanto, de reconsiderarmos os rumos que estamos tomando? De nos desvencilharmos das hermenêuticas alegóricas, intuitivas, existencialistas e racionalistas, e de retornarmos à hermenêutica reformada aprovada pela história? Não é tempo de fazermos da oração uma prática hermenêutica, suplicando pela iluminação do Espírito Santo; e de labutarmos no estudo diligente das Escrituras, dando a devida atenção à língua e às circunstâncias históricas em que foram escritas?
Orare e labutare é o caminho. Não é um caminho fácil nem mágico. Requer sinceridade e diligência. Talvez não forneça interpretações esplêndidas nem realce a criatividade, imaginação e genialidade do pregador. Mas é o antigo e bom caminho aprovado com louvor pela história. Ele deixa que a verdade de Deus opere e que as Escrituras falem com poder e graça, promovendo profundas reformas teológicas e eclesiásticas.
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