O Problema do Conhecimento Médio [ou do Molinismo]

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Por Herman Bavinck


Mas os jesuítas, entrando na discussão [sobre o pré-conhecimento de Deus], fizeram mudança. Com o intuito de articular a onisciência de Deus com a liberdade humana, seguindo a linha semi-pelagiana, eles introduziram o chamado conhecimento médio (media scientia) entre o conhecimento “necessário” e o conhecimento “livre” de Deus. Com esse conhecimento médio eles se referem a um conhecimento divino de eventos contingentes que é logicamente antecedente aos seus decretos. O objeto desse conhecimento é o meramente possível que nunca será realizado, nem aquilo que, em virtude de um decreto divino, é certo de acontecer, mas as possibilidades de que dependam, para sua realização, de uma ou outra condição. Ao governar o mundo, Deus faz que muitos resultados possíveis dependam de condições e sabe, com antecedência, o que fará, caso essas condições sejam ou não cumpridas pelos seres humanos. Em todos os casos, portanto, Deus está pronto. Ele antevê e conhece todas as possibilidades e toma suas decisões e providências levando em conta todas essas possibilidades. Ele soube, com antecedência, o que faria se Adão caísse e também se ele não caísse; se Davi fosse ou não até Queila; se Tiro e Sidom se arrependessem ou não. Portanto, o conhecimento que Deus tem de eventos contingentes precede seu decreto a respeito de eventos futuros “absolutos”. Embora os seres humanos, a cada momento, tomem suas decisões livres e independentes, nunca poderão surpreender Deus com as decisões que tomam ou desfazer seus planos, pois, em seu pré-conhecimento, Deus levou em conta todas as possibilidades. Essa teoria do conhecimento mediado foi apoiada por numerosos textos da Escritura que atribuem a Deus conhecimento daquilo que aconteceria em um dado caso se alguma condição fosse ou não fosse cumprida (e.g.,  Gn 11.6; Êx. 3.19; 34.16; Dt. 7.3, 4; 1Sm 23.10 – 13; 25.29ss; 2Sm 12.8; 1Rs 11.2; 2Rs 2.10; 13.19; Sl 81.14 – 16; Jr. 26.2, 3; 38.17 – 20; Ez 2.5 – 7; 3.4 – 6; Mt. 11.21, 23; 24.22; 26.53; Lc. 22.66 – 68; Jo. 4.10; 6.15; At. 22.18; Rm. 9.29; 1Co 2.8).

Embora, de fato, tenha recebido oposição dos tomistas e agostinianos (e.g., Bannez, os salmanticenses [carmelitas de Salamanca, Espanha] e Billuart), essa teoria do conhecimento médio também foi fervorosamente defendida pelos molinistas e congruístas (Suárez, Belarmino, Lessius, etc). O temor do Calvinismo e do jansenismo favoreceu essa teoria na Igreja Católica e, de maneira mais ou menos pronunciada, ganhou aceitação expressa por parte de quase todos os teólogos católicos. Desse modo, a linha de pensamento expressa por Agostinho foi abandonada e a de Orígenes foi recuperada. Ainda que a teologia grega tenha tomado essa posição desde o princípio, a teologia católica romana agora a seguiu. Os luteranos e os remonstrantes também não se mostraram indispostos com essa teoria. Em tempos modernos, muitos teólogos afirmaram, aproximadamente da mesma forma, que, para Deus, também, o mundo é um conhecimento médio. Ele, de fato, pré-conhece os eventos contingentes futuros como possíveis, mas descobre, com o mundo, se eles serão realizados ou não. Para todos os casos, porém, ele conhece “uma ação que se encaixará precisamente na ação da criatura, seja o que for que possa acontecer”. Ele estabeleceu o esboço do plano do mundo, mas deixa o enchimento desse esboço por conta das criaturas”. Em contraste com essa linha de pensamento, seguindo o exemplo de Agostinho, os reformados rejeitaram a teoria de um “pré-conhecimento nu” (nuda praescientia) e o “conhecimento médio” (media scientia).

Ora, com respeito a esse conhecimento médio, a pergunta não é se as coisas [ou eventos] não estão frequentemente relacionadas umas às outras por um tipo de conexão condicional, que é conhecida e desejada pelo próprio Deus. se isso fosso tudo o que ele quer dizer, ele seria aceito sem qualquer dificuldade, assim como Gomarus e Walaeus o entenderam e reconheceram nesse sentido. Entretanto, a teoria do conhecimento tem um objetivo diferente: se propósito é harmonizar a noção pelagiana da liberdade da vontade com a onisciência de Deus. Nessa interpretação, a vontade humana é, por sua natureza, indiferente. Ela tanto pode fazer uma coisa quanto outra. ela não é determinada nem por sua própria natureza nem pelas várias circunstâncias nas quais é colocada. Embora as circunstâncias  possam influenciar a vontade, no fim das contas ela permanece livre e escolhe conforme desejar. É claro que a liberdade da vontade assim concebida não pode se harmonizar com um decreto de Deus, aliás, ela consiste essencialmente em independência do decreto de Deus. Em vez de determinar essa vontade, Deus a deixou livre. Ele não podia determinar a vontade sem destruí-la. Com relação a essa vontade de suas criaturas racionais, deus tem de adotar uma postura de espera vigilante. Ele observa para ver o que elas farão. Ele, porém, é onisciente. Por isso ele conhece todas as possibilidades, todas as contingências e também pré-conhece todos os eventos futuros reais. Nesse contexto e conservando-o, Deus tomou todas as suas decisões e criou seus decretos. Se uma pessoa, em certas circunstâncias, aceitará a graça de Deus, ele escolheu essa pessoa para a vida eterna; se essa pessoa não crer, ela foi rejeitada.

Ora, é claro que essa teoria diverge, em princípio, do ensino de Agostinho e de Tomás de Aquino. Certamente, em sua mente, o pré-conhecimento de Deus precede os eventos e nada pode acontecer se não for pela vontade de Deus. “Nada, portanto, acontece, a não ser pela vontade do Onipotente”. Não o mundo, mas os decretos são o meio pelo qual Deus conhece todas as coisas. Portanto, os eventos contingentes e as ações livres podem ser conhecidos infalivelmente em seu contexto e ordem. O escolasticismo, reconhecidamente, às vezes já expressava, nesse ponto, de um modo que diferia de Agostinho. Anselmo, por exemplo, afirmou que o pré-conhecimento não implicava uma “necessidade interna e antecedente”, mas apenas uma “necessidade externa e consequente”. E Tomás de Aquino, de fato, acreditava que Deus eterna e certamente conhece os eventos futuros contingentes de acordo com o estado no qual eles realmente estão, isto é, de acordo com sua própria imediação, mas que, em suas “causas  imediatas”, eles são contingentes e indeterminados. Isso, porém, não altera o fato de que, com relação à sua “causa primária”, esses eventos futuros contingentes são absolutamente certos e, portanto, não podem ser chamados de contingentes. E, em outro ponto, ele novamente afirma que “tudo que existe foi destinado a existir antes que viesse à existência, porque existia por sua própria causa para que pudesse vir à existência”.

A doutrina do conhecimento médio, porém, representa os eventos futuros contingentes como contingentes e livres também em relação a Deus. Isso é feito não somente com relação à predestinação de Deus, mas também com relação ao seu pré-conhecimento, como em Orígenes, em que as coisas não acontecem porque Deus as conhece, mas Deus as conhece porque elas acontecerão. Portanto, a sequência não é conhecimento necessário, conhecimento de visão, o decreto de criar (etc), mas, em vez disso, é conhecimento necessário, conhecimento médio, decreto de criar (etc), e o conhecimento de visão deus não deriva seu conhecimento dos livres atos dos seres humanos de seu próprio ser, de seus decretos, mas da vontade das criaturas.

Deus, portanto, torna-se dependente do mundo, extrai do mundo conhecimento que ele não tinha e não pode obter por si mesmo e, portanto, em seu conhecimento, deixa de ser um, simples, independente – isto é, deixa de ser Deus. Inversamente, a criatura, em grande parte, torna-se independente diante de Deus. Ela, de fato, em um momento, recebe o “ser”(esse) e o “ser capaz”(posse) de Deus, mas, agora, tem a “volição”(velle) completamente em suas próprias mãos. Ela soberanamente toma suas próprias decisões, realiza ou não realiza alguma coisa de forma totalmente independente de um decreto divino anterior. Uma coisa pode, portanto, vir à existência totalmente à parte da vontade de Deus. A criatura é, agora, criadora, autônoma, soberana: toda a história do mundo é tirada das mãos de Deus e colocada em suas mãos. Primeiro os seres humanos decidem, depois Deus responde com um plano que corresponde a essa decisão. Ora, se essa decisão ocorreu – como no caso de Adão – somos capazes de concebê-la. Mas decisões de maior ou menor importância ocorrem milhares de vezes em toda vida humana. O que podemos pensar, então de um Deus que sempre espera todas essas decisões e mantém à mão um estoque de todos os planos possíveis para todas as possibilidades? O que, então, resta até mesmo de um esboço de um plano mundial quando sua execução é deixada nas mãos dos seres humanos? E de que vale um governo cujo executivo é o escravo de seus próprios subordinados?

Na teoria do conhecimento médio, é exatamente isso o que acontece com Deus. Deus é um mero espectador, enquanto os seres humanos decidem. Não é Deus que faz distinção entre as pessoas, mas as pessoas é que se distinguem. A graça é concedida de acordo com o mérito e a predestinação depende das boas obras. As ideias às quais a Escritura, em toda parte, opõe-se e que Agostinho rejeitou em sua polêmica contra Pelágio são transformadas na doutrina católica romana padrão pelo ensino dos jesuítas. Os proponentes do conhecimento médio, de fato, recorrem a muitos textos da Escritura, mas totalmente sem fundamento. Não há dúvida de que a Escritura reconhece o fato de que Deus inseriu as coisas (eventos, etc) em uma rede variada de conexões umas com as outras, e que essas conexões são, frequentemente, de natureza condicional, de modo que uma coisa não pode acontecer se outra coisa não acontecer primeiro. [Por exemplo], sem a fé não há salvação, sem o trabalho não há sustento, etc.

No entanto, os textos citados pelos jesuítas para fundamentar a teoria do conhecimento médio não provam o que precisa ser provado. Reconhecidamente, eles falam sobre condição e cumprimento, obediência e promessa, aceitação e consequência daquilo que acontecerá se um ou outro caminho for escolhido. No entanto, nenhum desses textos nega que, em todos os casos, Deus – embora fale aos seres humanos e lide com eles em termos humanos – conhecia e determinou aquilo que será realizado – presente em Deus somente como uma ideia – e aquilo que é certo e foi decretado por Deus não há uma área que possa ser controlada pela vontade dos seres humanos. Uma coisa sempre pertence a uma área ou a outra. se ela é somente uma possibilidade e nunca será realizada, ela é objeto do conhecimento “necessário” de Deus e se, um dia, ela realmente será realizada, ela é conteúdo de seu conhecimento “livre”. Não há um terreno médio entre os dois, não há conhecimento “médio”.

As teorias do conhecimento médio, além disso, não alcançam seu objetivo. Elas têm o objetivo de colocar a liberdade da vontade humana – no sentido de indiferença – em harmonia com o pré-conhecimento divino. Ora, elas alegam que esse pré-conhecimento concebido como conhecimento médio deixa a conduta humana totalmente livre, não-necessária. De fato, isso está correto, a não ser que, nesse caso, ele deixe de ser pré-conhecimento. Se Deus conhece infalivelmente com antecedência o que uma pessoa fará em determinado caso, ele só pode pré-conhecer isso se os motivos da pessoa determinarem sua vontade em uma direção específica, e isso, portanto, não consistiria indiferença. Inversamente, se essa vontade fosse indiferente, o pré-conhecimento seria impossível, e só existiria um conhecimento post-factum. O pré-conhecimento de Deus a vontade concebida como arbitrariedade são mutuamente excludentes. Pois, como Cícero já dizia, “se ele conhece, isso certamente acontecerá, mas, se isso obrigatoriamente deve acontecer, não existe algo como o acaso”. Portanto, juntamente com Agostinho, devemos procurar a solução do problema em outra direção. A liberdade da vontade não consiste, como descobriremos adiante, em indiferença, arbitrariedade ou acaso, mas em “prazer racional”. Esse prazer racional, em vez de estar em conflito com o pré-conhecimento de Deusa, é implicado e sustentado por ele. A vontade humana – juntamente com sua natureza, antecedentes e motivos, suas decisões e consequências – está integrada à “ordem de causas que é certa para Deus e abrangida por seu pré-conhecimento”. No conhecimento de Deus, as coisas estão relacionadas na mesma rede de conexões nas quais ocorrem na realidade. Não é pré-conhecimento nem predestinação aquilo que intervém, vindo de cima, com força de imposição. Toda decisão humana, todo ato humano é motivado, em vez disso, por aquilo que o precede, e, nessa rede de conexões, está incluído no conhecimento de Deus. conservando sua própria natureza conhecida e ordenada por Deus, os eventos contingentes e as ações livres estão ligados na ordem de causas que, pouco a pouco, nos é revelada na história do mundo.

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Sobre Herman Bavinck: Herman Bavinck (1854-1921) tornou-se sucessor de Abraham Kuyper na cadeira de Teologia Sistemática da Universidade Livre da Holanda, em 1902.

Fonte: BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. Vol. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 204 - 209.
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