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O Calvinismo não Criou Estilo Próprio Exatamente por seu Estágio Superior de Desenvolvimento Religioso
Assim, por si só, deve ser negada a possibilidade que um estilo de arte próprio possa originar-se independentemente da religião; mas mesmo se fosse de outro modo, e este é meu segundo argumento, ainda seria ilógico exigir do Calvinismo uma tendência secular como esta. Pois, como vocês podem desejar que um movimento de vida, que encontrou a fonte de seu poder na acusação de todos os homens e de toda vida humana perante a face de Deus, tivesse visto o impulso, a paixão e a inspiração para sua vida fora de Deus em um campo tão excessivamente importante como este das poderosas artes? Portanto, não resta nenhuma sombra de realidade na reprovação desdenhosa de que a não criação de um estilo arquitetônico próprio é uma prova conclusiva da pobreza artística do Calvinismo. Somente sob os auspícios de seu princípio religioso o Calvinismo poderia ter criado um estilo de arte geral e exatamente porque tinha alcançado um estágio muito mais alto de desenvolvimento religioso, seu próprio princípio proibia a expressão simbólica de sua religião em formas visíveis e sensoriais.
Existe um Lugar para Arte, no Calvinismo?
Por isso, a questão deve ser formulada de modo diferente. E isso nos conduz ao nosso segundo ponto. A questão não é se o Calvinismo com seu ponto de vista superior produziu o que não era mais permitido criar, a saber, um estilo de arte geral próprio dele, mas qual interpretação sobre a natureza da arte flui de seu princípio. Em outras palavras, há na bio-cosmovisão do Calvinismo um lugar para a arte, e se sim, qual lugar? Seu princípio é oposto a arte, ou, se julgado pelos padrões do princípio calvinista, um mundo sem arte perderia uma de suas esferas ideais? Eu não falarei agora do abuso, mas simplesmente do uso da arte. Em cada campo, a vida é obrigada a respeitar as dimensões desse campo. A transgressão dos domínios dos outros é sempre ilegal; e nossa vida humana atingirá sua mais nobre harmonia somente quando todas as suas funções cooperarem na justa proporção para nosso desenvolvimento geral. A lógica da mente não pode desprezar os sentimentos do coração, nem o amor pela beleza deveria silenciar a voz da consciência. Por mais santa que a Religião possa ser, ela deve guardar-se dentro de seus próprios limites, para que não se degenere em superstição, insanidade ou fanatismo ao atravessar suas linhas. E, do mesmo modo, a tão exuberante paixão pela arte que despreza o sussurro da consciência, deve resultar num desacordo desagradável completamente diferente do que os gregos exaltavam em seus kalokagathos. [1]
Calvino se Opôs ao Uso Ilegítimo da Arte
O fato, por exemplo, de que o Calvinismo se dispôs contra toda diversão ímpia com a honra da mulher, e estigmatizou toda forma de prazer artístico imoral como uma degradação, encontra-se portanto fora de nosso alcance. Tudo isto denuncia adequadamente o abuso, embora não tenha qualquer peso quanto a questão do uso legítimo. E o próprio Calvino não se opôs ao uso legítimo da arte, mas encorajou e até mesmo recomendou, como suas próprias palavras prontamente provam. Quando a Escritura menciona a primeira aparição da arte nas tendas de Jubal, que inventou a harpa e o órgão, Calvino recorda-nos enfaticamente que esta passagem trata dos “excelentes dons do Espírito Santo”. Ele declara que, quanto ao instinto artístico, Deus tinha enriquecido Jubal e sua posteridade com raros dons naturais. E, abertamente, declara que esses poderes inventivos da arte são o mais evidente testemunho do favor divino. Ele declara mais enfaticamente ainda, em seu comentário sobre Êxodo, que “todas as artes vêm de Deus e devem ser consideradas como invenções divinas”.
As Artes Procedem do Espírito Santo
Segundo Calvino, nós devemos estas coisas preciosas da vida natural originalmente ao Espírito Santo. Em todas as Artes Liberais, tanto nas mais como nas menos importantes, o louvor e a glória de Deus devem ser acentuadas. As artes, diz ele, foram dadas para nosso conforto, nesse nosso estado deprimido de vida. Elas reagem contra a corrupção da vida e da natureza pela maldição. Quando seu colega, o Prof. Cop, levantou armas em Genebra contra a arte, Calvino propositadamente instituiu medidas, como ele escreve, para restaurar esse homem louco ao bom senso e a razão. Calvino declara ser indigno de refutação o preconceito cego contra a escultura com base no Segundo Mandamento. Ele exalta a música como um poder maravilhoso para comover corações e para dignificar tendências e princípios morais. Entre os excelentes favores de Deus para nossa recreação e prazer, ela ocupa em sua mente o posto mais alto. E mesmo quando a arte se rebaixa para tornar-se o instrumento de mero entretenimento para o povo, afirma que este tipo de prazer não lhe deveria ser negado.
Em vista de tudo isto, podemos dizer que Calvino apreciava a arte em todas as suas ramificações como um dom de Deus, ou mais especialmente, como um dom do Espírito Santo; que ele entendeu plenamente os profundos efeitos produzidos pela arte sobre a vida das emoções; que ele apreciava o fim pelo qual a arte fora dada, a saber, que por ela poderíamos glorificar a Deus, dignificar a vida humana, e beber na mais alta fonte de prazeres, sim até mesmo no esporte comum; e, finalmente, que longe considerar a arte como simples imitação da natureza, ele lhe atribuiu a nobre vocação de desvendar para o homem uma realidade mais alta do que foi oferecida a nós pelo mundo pecaminoso e corrupto.
A Arte Revela uma Realidade Superior à Oferecida pelo Mundo
Ora, se isso implicava em nada mais que a interpretação pessoal de Calvino, certamente seu testemunho não teria valor conclusivo para o Calvinismo em geral. Mas quando observamos que o próprio Calvino não era artisticamente desenvolvido, e que por isso ele deve ter inferido seu breve sistema de Estética [2] de seus princípios, ele pode ser reconhecido como tendo exposto a consideração calvinista sobre a arte como tal. Para ir direto ao coração da questão, comecemos com a última declaração de Calvino, a saber, que a arte revela para nós uma realidade mais alta do que é oferecida por este mundo pecaminoso.
Vocês estão familiarizados com a questão, já mencionada, se a arte deveria imitar a natureza ou se deveria transcendê-la. Na Grécia uvas eram pintadas com tal precisão que os pássaros eram iludidos por sua aparência e tentavam comê-las. E esta imitação da natureza parece ter sido o ideal maior da escola Socrática. Aqui, encontra-se a verdade muitas vezes esquecida pelos idealistas, de que as formas e relações exibidas pela natureza são e sempre devem ser as formas e relações fundamentais de toda realidade atual, e uma arte que não observa as formas e movimentos da natureza nem escuta seus sons, mas arbitrariamente gosta de flutuar acima dela, se degenera num bárbaro jogo de fantasia.
Mas por outro lado, toda interpretação idealista da arte deveria ser justificada em oposição à puramente empírica, sempre que a empírica confina sua tarefa a mera imitação. Por isso, muitas vezes é cometido na arte o mesmo equívoco cometido pelos cientistas quando limitam sua tarefa científica à mera observação, computação e relatório acurado dos fatos. Pois do mesmo modo como a ciência deve subir dos fenômenos para a investigação de sua ordem inerente, a fim de que o homem, enriquecido pelo conhecimento desta ordem, possa reproduzir espécies de animais, flores e frutos mais nobres do que a própria natureza poderia produzir, assim a vocação da arte é, não simplesmente observar cada coisa visível e audível, a fim de apreendê-la e reproduzi-la artisticamente, mas muito mais, descobrir naquelas formas naturais a ordem da beleza, e enriquecido por este conhecimento superior, produzir uma beleza mundial que transcende a beleza da natureza.
O Calvinismo Compreendeu a Influência do Pecado
Isto é o que Calvino afirmou: a saber, que as artes exibem dons que Deus colocou à nossa disposição, agora que a verdadeira beleza fugiu de nós como triste consequência do pecado, a verdadeira beleza fugiu de nós. Sua decisão aqui depende inteiramente de sua interpretação do mundo. Se vocês consideram o mundo como a realização do bem absoluto, então não há nada superior, e a arte não pode ter outra vocação senão copiar a natureza. Se, como o panteísta ensina, o mundo segue da imperfeição para a perfeição por um processo lento, então a arte torna-se a profecia de uma fase adicional da vida por vir. Porém, se vocês confessam que o mundo outrora foi belo, mas que pela maldição tornou-se desfeito e por uma catástrofe final deve passar para seu pleno estado de glória, superando até mesmo a beleza do paraíso, então a arte tem a tarefa mística de lembrar-nos, em suas produções, da beleza que foi perdida e de antecipar seu perfeito brilho vindouro. Este último caso mencionado é a confissão calvinista. O Calvinismo compreendeu, mais claramente do que Roma, a influência horrenda e corruptora do pecado; isto o levou a maior apreciação da natureza do paraíso na beleza da justiça original; e guiado por esta encantadora recordação o Calvinismo também profetizou uma redenção da natureza exterior, a ser realizada no reino da glória celestial. A partir deste ponto de vista, o Calvinismo honrou a arte como um dom do Espírito Santo e como uma consolação em nossa vida atual, habilitando-nos a descobrir em e atrás desta vida pecaminosa um pano de fundo mais rico e mais glorioso. Considerando as ruínas desta criação outrora tão maravilhosamente bela, para o calvinista a arte chama a atenção tanto para as linhas do plano original ainda visíveis quanto, o que é ainda melhor, para a esplêndida restauração pela qual o Supremo Artista e Construtor Mestre um dia renovará e até mesmo intensificará a beleza de sua criação original.
A Arte não Pode Originar-se do Diabo
Portanto, se a interpretação pessoal de Calvino concorda inteiramente com a confissão calvinista sobre este ponto principal, o mesmo se aplica ao próximo ponto em questão. Se para o Calvinismo a soberania de Deus é e continua sendo seu imutável ponto de partida, então a arte não pode originar-se do Diabo; pois Satanás é destituído de todo poder criativo. Tudo que ele pode fazer é abusar das boas dádivas de Deus. Nem pode originar-se com o homem, pois, sendo ele mesmo uma criatura, o homem não pode senão empregar os poderes e dons colocados por Deus à sua disposição. Se Deus é e continua sendo soberano, então a arte não pode produzir nenhum encantamento exceto de acordo com as ordenanças que Deus ordenou para a beleza, quando ele, como o Supremo Artista, chamou este mundo à existência.
Deus Soberano Confere os Dons Artísticos
E além disso, se Deus é e continua sendo soberano, então ele também confere estes dons artísticos a quem ele quer, primeiramente, então, à posteridade de Caim e não a de Abel; não como se a arte fosse Cainita, mas a fim de que aquele que pecou contra os mais altos dons devesse ao menos, como Calvino tão belamente disse: nos menores dons da arte receber algum testemunho do favor Divino. Esta habilidade e capacidade artística como tal, pode ter lugar na natureza humana, nós a devemos à nossa criação segundo à imagem de Deus. No mundo real, Deus é o Criador de todas as coisas; o poder de produzir coisas realmente novas é seu somente, e portanto continua a ser sempre o artista criador. Como Deus, somente ele é o original, nós somos apenas os portadores de sua Imagem.
Nossa capacidade para criar segundo ele e segundo o que ele criou, pode consistir somente na criação imaginária da arte. Assim nós, à nossa maneira, podemos imitar o trabalho manual de Deus. Nós criamos um tipo de cosmos em nosso monumento Arquitetônico; embelezamos formas da natureza na Escultura; em nossa Pintura reproduzimos a vida, animada por linhas e cores; transfundimos as esferas místicas em nossa Música e em nossa Poesia. E tudo isto porque a beleza não é o produto de nossa própria fantasia, nem de nossa percepção subjetiva, mas tem uma existência objetiva, sendo ela mesma a expressão de uma perfeição Divina.
Arte e a Criação
Após a criação, Deus viu que tudo era bom. Imagine que cada olho humano fosse fechado e cada ouvido humano tapado, ainda assim a beleza permanece, e Deus a vê e a ouve, pois, não somente “seu eterno poder”, mas igualmente sua “divindade”, desde o momento da criação têm sido percebidos em sua criação, tanto espiritual como corporalmente. Um artista pode observar isto em si mesmo. Se ele compreende que sua própria capacidade artística depende de ter um olho para a arte [senso estético], deve necessariamente chegar à conclusão de que “o olho” original para a arte está no próprio Deus, cuja capacidade para produção artística é plena, e segundo esta imagem foi feito o artista entre os homens.
Sabemos isto a partir da criação ao nosso redor, do firmamento que forma um arco sobre nós, do luxo abundante da natureza, da riqueza de formas no homem e no animal, do som das corredeiras e do cântico do rouxinol; como pois toda esta beleza poderia existir exceto se criada pelo Único que preconcebeu a beleza em seu próprio ser e a produziu de sua própria perfeição Divina? Assim, vocês vêem que a soberania de Deus e nossa criação segundo sua semelhança, necessariamente levaram a esta interpretação elevada da origem, da natureza e da vocação da arte, como adotada por Calvino, e ainda aprovada por nosso próprio instinto artístico. O mundo dos sons, o mundo das formas, o mundo das cores e o mundo das idéias poéticas não pode ter outra fonte senão Deus; e é nosso privilégio, como portadores de sua imagem, ter uma percepção deste mundo belo, para reproduzir artisticamente, para gozá-lo humanamente.
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Notas:
[1] - NT - Do grego kalokagateo , praticar a virtude, kalokagathia de kalos + agatos , honestidade, lealdade perfeita.
[2] - Estética pode ser definida como a ciência da beleza e do gosto; o ramo do conhecimento que pertence às belas artes e a arte crítica. Não há uma estética universalmente aceita. Há três escolas: a sensorialística (Hogarth); a empírica (Helmholtz); e a idealística, devendo sua origem a Kant.
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Fonte: Extraído da introdução do excelente livro “Calvinismo”, de Abraham Kuyper, publicado no Brasil pela Editora Cultura Cristã.
Via: Monergismo | Teologia & Apologética
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