1 – “O termo ‘Cânon’ só pode se referir a uma lista fixa e fechada de livros”
Graham Stanton observou corretamente: “Em discussões acerca do surgimento do cânon, seja dos escritos do Velho ou do Novo Testamento, definições são todas importantes e o diabo está nos detalhes”[i]. De fato, a definição do cânon que uma pessoa defende guia suas conclusões históricas acerca do cânon – sobretudo, em relação à sua data. E, particularmente por essa razão, sempre houve um intenso debate entre os estudiosos sobre o que nós queremos dizer com o termo “cânon”.
Entretanto, nos anos recentes, esse debate sofreu uma reviravolta interessante. Uma definição particular do cânon passou a emergir como a visão dominante. Na verdade, os estudiosos têm sugerido que todos devemos usar essa definição para que toda a área dos estudos canônicos não seja levada à confusão e anacronismo. E essa definição é a que diz que o cânon apenas existe quando há uma lista final, fixa e fechada. Você pode ter a “Escritura” antes disso; mas não, um “cânon”. Essa pode ser chamada de definição exclusiva.
O impacto desse novo “consenso” tem sido profundo nos estudos canônicos: se você não pode ter um cânon até que os livros estejam em uma lista fechada e final, não pode haver, então, um cânon até, no mínimo, o quarto ou quinto séculos. Assim, essa definição tem sido usada para empurrar mais e mais a data do cânon para os séculos mais tardios da igreja. Notavelmente, então, a data do cânon se tornou mais tardia enquanto a evidência história não mudou em nada.
Mas é a definição exclusiva a melhor definição para o cânon? E nós somos obrigados a usá-la excluindo as outras? Embora essa definição capture corretamente o fato dos limites do cânon terem margens fluidas antes do quarto século, creio que ela cria mais problemas do que os soluciona. Uma série de preocupações:
1. É difícil de acreditar que a distinção brusca entre Escritura e cânon delineada pelos modernos defensores da definição exclusiva seria tão facilmente compartilhada por suas contrapartes históricas do segundo século. Os cristãos primitivos teriam considerado a Escritura como fluida e aberta e apenas o cânon como limitado e restrito? Se eles pudessem dizer que certos livros em suas bibliotecas eram a Escritura, então isso implica que eles poderiam dizer que outros livros em sua biblioteca não eram a Escritura. Mas, se eles fossem capazes de dizer quais livros eram (e não eram) a Escritura, então como isso é materialmente diferente de dizer quais livros estavam (e não estavam) no cânon? Assim, parece que um grau de limitação e exclusão já está incluso no termo “Escritura”.
2. Enquanto a definição exclusiva insiste que o termo cânon não pode ser usado até que a coleção de Novo Testamento esteja oficialmente “fechada”, uma ambiguidade significativa permanece no que, exatamente, constitui seu fechamento. Se é uma absoluta uniformidade das práticas por toda cristandade, então, nesses termos, não havia um cânon até mesmo no quarto século. De fato, nesses termos, nós ainda não temos um cânon até hoje! Se o fechamento do cânon se refere a um ato formal, oficial, da igreja do Novo Testamento, então temos forçado bastante para encontrar esse ato antes do Concílio de Trento no décimo sexto século. A questão é que, quando nós olhamos para história do cânon, percebemos que nunca houve um tempo em que as fronteiras do Novo Testamento estivessem fechadas na forma que a definição exclusiva requer.
3. Isso nos leva ao problema, possivelmente, mais fundamental dessa definição. Inerente à definição exclusiva está uma insistência de que o quarto século representa um estágio profundo e diferente no desenvolvimento do Novo Testamento que garante uma mudança decisiva na terminologia. Mas era o cânon tão distinto no quarto século? Enquanto um vasto grau de consenso havia, sem dúvida, sido alcançado nessa época, o cerne dos livros do Novo Testamento – os quatro evangelhos e a maioria das epístolas de Paulo – já haviam sido reconhecidas e recebidos por séculos. O que quer que tenha, supostamente, acontecido no quarto século nem alterou o status desses livros, nem aumentou a sua autoridade. A mudança abrupta na terminologia dá a impressão de que esses livros carregam um status inferior até esse ponto; ela informa que os cristãos tinham apenas Escritura e não, um cânon. Ou, como um estudioso coloca, até o quarto século, os cristãos só tinham uma “ilimitada massa viva de heterogêneos” textos[ii]. Mas isso é, no mínimo, enganoso.
À luz dessas preocupações, nós não devemos ser forçados a usar apenas essa única definição. Se queremos apreciar completamente a profundidade e complexidade do cânon, devemos também deixar que outras definições tenham voz. Brevard Childs destacou o que nós podemos chamar de definição funcional, que sugere que nós temos um cânon assim que um livro é usado enquanto Escritura pelos cristãos primitivos. Nessa definição, nós teríamos um cânon, pelo menos, até o início do segundo século. E eu tenho argumentado em favor de uma terceira definição no meu artigo para o Tyndale Bulletin que define cânon como os livros que Deus deu a sua igreja corporativa (o que eu chamo de definição ontológica). Pode-se dizer que essa vê o cânon sob uma perspectiva divina. Nessa definição, nós teríamos um cânon tão logo esses livros fossem escritos.
Ironicamente, então, talvez o debate acerca do cânon seja melhor tratado não pela escolha da definição, mas na permissão para a legitimidade de definições múltiplas que se relacionam umas com as outras. Se o cânon é um fenômeno multi-dimensional, então, talvez, ele seja melhor definido de maneira multi-dimensional.
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[i] “The Gospels in Justin and Irenaeus,” 370.
[ii] Dungan, Constantine’s Bible, 132-133.
Traduzido por Kimberly Anastacio | iPródigo.com | Original aqui
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