Quão bíblico é o Molinismo? (Parte 1)

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O Molinismo é uma teoria que pretende conciliar uma robusta doutrina da providência e presciência divina com uma visão libertária do livre-arbítrio, apelando para a noção do conhecimento médio divino: o eterno conhecimento de Deus sobre os chamados contra-factuais da liberdade da criatura em questão, ou seja, as verdades contingentes acerca de quais seriam as possíveis criaturas que livremente escolheriam a Deus se elas fossem colocadas sob determinadas circunstâncias. (Para outros posts, em inglês, tratando do Molinismo, clique aqui)

O Molinismo é mais frequentemente criticado por razões teológicas ou filosóficas principalmente porque ele é justamente defendido com base em suas supostas virtudes teológicas e filosóficas. E não há nada de errado nisso. Eu mesmo já lancei objeções ao Molinismo por razões teológicas e filosóficas. (Então está tudo bem, certo?) No entanto, para o cristão que crê que a Bíblia é a Palavra de Deus e a autoridade final em questões teológicas, a pergunta preeminente deve ser: O quanto será que a Bíblia dá suporte ao Molinismo? (Não me proponho a defender neste momento o princípio metodológico subjacente, irei simplesmente admiti-lo.)

Existem pelo menos dois componentes na questão que estamos tratando. Em primeiro lugar, será que o Molinismo é consistente com a Bíblia? Em outras palavras, será que a Bíblia ensina coisas que são (ou parecem ser) incompatíveis com os princípios ou as implicações do Molinismo? Em segundo lugar, será que a Bíblia oferece algum suporte positivo para as alegações propriamente pertencentes ao Molinismo, ou seja, aqueles princípios que distinguem o Molinismo das principais alternativas concorrentes (como Agostinianismo e o Teísmo Aberto)? Nesta série de posts, proponho explorar essas questões tendo como referência alguns textos bíblicos chaves. Vou me concentrar especialmente em como o Molinismo se compara ao Agostinianismo (que é, sem dúvida, seu principal concorrente entre os teólogos cristãos ortodoxos). (Nota: Estou usando o termo Agostinianismo simplesmente como abreviação para o determinismo divino causal. Não assumimos aqui que o próprio Santo Agostinho tenha, de fato, crido no Agostinianismo nesse sentido! Mas, definindo o Agostinianismo dessa maneira, iremos incluir a maioria dos calvinistas confessionais e, penso eu, muitos dos tomistas conservadores.)

Antes de entrar no centro da questão, eu deveria tratar uma preocupação que alguns leitores podem apresentar. Eu não estou assumindo que a Bíblia responda a todas as questões filosóficas nem que possa resolver qualquer disputa filosófica. É evidente que existem algumas questões filosóficas (por exemplo, se é possível viajar no tempo ou não, se os números são entidades reais, e se o utilitarismo de regra colapsa no utilitarismo de ato) que a Bíblia sequer pretende abordar (e isso também é uma coisa boa!). Mas, ao mesmo tempo, eu considero que a Bíblia faz algumas afirmações filosóficas (de fato, a declaração de abertura da Bíblia é profundamente metafísica!) e ainda mais frequentemente expressa coisas (afirmações, promessas, comandos, etc.) que têm implicações ou pressuposições filosóficas razoavelmente claras.

Então, de uma forma mais crua, eu acredito que a Bíblia nos apresenta uma série de “pontos” que devem tanto informar quanto restringir a nossa maneira de filosofar. Algumas teorias filosóficas são consistentes com esses pontos, enquanto que outras não são. Algumas teorias filosóficas se adequam melhor a esses pontos que outras. Algumas perguntas filosóficas não são determinadas pela evidência bíblica, mas nem todas são assim. Então, as perguntas exploradas nesta série incluem: (1) Quais são os pontos bíblicos importantes (ou alguns deles) quando se trata de avaliar o Molinismo? e (2) O quanto será que o Molinismo se adéqua a esses pontos?

A providência divina abrangente

Um dos temas mais importantes da Bíblia é o controle providencial abrangente de Deus sobre sua criação (às vezes chamado de “providência divina meticulosa”). Tudo o que acontece na criação ocorre de acordo com o plano soberano de Deus; nada acontece a não ser por Sua vontade. Os teólogos têm feito várias distinções entre a vontade ativa e permissiva de Deus, a vontade decretadora (secreta) e preceptiva (revelada), a vontade antecedente e conseqüente (e assim por diante), mas o argumento central é o mesmo: Deus tem um decreto eterno que cobre todo evento na criação, e esse decreto infalivelmente irá acontecer.

Aqui estão alguns textos específicos que ilustram esta penetrante doutrina bíblica:

O Senhor dos Exércitos jurou, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará. Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?” (Isaías 14:24, 27)

Lembrai-vos disto, e considerai; trazei-o à memória, ó prevaricadores.Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim.Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade.Que chamo a ave de rapina desde o oriente, e de uma terra remota o homem do meu conselho; porque assim o disse, e assim o farei vir; eu o formei, e também o farei.” (Isaías 46:8-11)

Quem é aquele que diz, e assim acontece, quando o Senhor o não mande? Porventura da boca do Altíssimo não sai tanto o mal como o bem?” (Lamentações 3:37,38)

E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito.” (Romanos 8:28)

Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade;” (Efésios 1:11)

Particularmente notáveis são as afirmações bíblicas do controle soberano de Deus sobre as ações pecaminosas de suas criaturas, de tal forma que até mesmo essas ações fazem parte de seu plano providencial (por exemplo, Gênesis 50:20,  Juízes 14:1-4, 1 Samuel 2:25, Isaías 10:5-19, Atos 4:27,28, Romanos 9:14-21).

Uma das virtudes do Molinismo é que o mesmo procura acomodar este importante tema bíblico. De acordo com o Molinismo, Deus, de fato, tem um decreto eterno infalível; todos os eventos na criação foram ordenados por Deus. Citando um de seus defensores:

Essa visão não só dá espaço para a liberdade humana, mas dá a Deus um meio de escolher qual mundo de criaturas livres Ele deseja criar. Pois, sabendo como as pessoas iriam livremente escolher sob quaisquer circunstâncias que fossem, Deus pode, pelo Seu decreto, colocar apenas essas pessoas [que o escolheriam] sob essas circunstâncias, realizando assim Seus propósitos finais através das decisões livres das criaturas. Assim, empregando seu conhecimento hipotético, Deus pode planejar um mundo nos mínimos detalhes e ainda assim fazê-lo sem aniquilar a liberdade da criatura, uma vez que Deus já levava em conta nas equações quais pessoas livremente escolheriam sob várias circunstâncias. Como o conhecimento hipotético de Deus encontra-se logicamente entre o Seu conhecimento natural e Seu conhecimento livre, os molinistas o chamam de conhecimento médio de Deus. [2]

Logo, sobre este ponto, o Molinismo claramente apresenta vantagem sobre alternativas como o Teísmo Aberto (que rejeita a doutrina da providência divina abrangente). No entanto, como o Agostinianismo também afirma essa doutrina, nesse ponto o Molinismo não pode afirmar ser mais bíblico do que o Agostinianismo. Em outras palavras, o ensinamento da Bíblia sobre o controle providencial abrangente de Deus não favorece o Molinismo quando comparado ao Agostinianismo.

Contrafactuais da liberdade

O princípio que define o Molinismo é a afirmação de que Deus possui o chamado conhecimento médio e de que Ele baseia Seu eterno decreto nesse conhecimento prévio. O conhecimento médio é o conhecimento de Deus (precedente a Criação) acerca do quê as possíveis criaturas (ou seja, qualquer criatura que Deus possa trazer à existência) livremente escolheriam sob qualquer conjunto específico de circunstâncias. Por exemplo, de acordo com o Molinismo, Deus sabe desde a eternidade o que eu iria livremente escolher para comer no café da manhã se eu estivesse hospedado no Hilton Atlanta em 18 de Novembro de 2015 e me fosse apresentada uma determinada gama de opções enquanto eu sentia fome. Este conhecimento não implica por si só que eu irei fazer tal livre escolha, mas apenas que eu faria essa livre escolha se Deus decidisse me criar e organizar tudo, providencialmente, para que me fossem apresentadas as opções nessa data em particular, sob essas específicas circunstâncias.

Da mesma forma, de acordo com o Molinismo, Deus também sabe desde a eternidade o quê Schmames Anderson (meu irmão gêmeo do mal, uma possível criatura que Deus misericordiosamente optou por não criar no mundo real) livremente escolheria comer no café da manhã em circunstâncias semelhantes. (Suponho eu que seria “papas de milho” ou “pãozinho com salsa branca”.)

Portanto o Molinismo implica em: (i) realmente existirem tais verdades contrafactuais sobre as livres escolhas das possíveis criaturas; e (ii) no conhecimento de Deus, desde a Eternidade (ou seja, antes da Sua decisão de criar um mundo), sobre essas verdades contrafactuais. Tanto (i) quanto (ii) tem sido desafiados pelos críticos do Molinismo, mas essa não é a minha preocupação aqui. Em vez disso, quero considerar se há apoio bíblico para essas afirmações distintas do Molinismo.

Compreensivelmente, os molinistas têm colocado grande peso nas declarações das Escrituras que, em face disso, pressupõem o conhecimento hipotético de Deus de como as pessoas se comportariam se elas se encontrassem sob determinadas circunstâncias (especificamente como eles se comportariam se o mundo fosse diferente do que é, daí o termo “contrafactuais de liberdade”). Os textos bíblicos incluem: 1 Sm. 23:8-14; Ez. 3:6; Jr. 38:17-18; Mt. 11:21-24; Mt. 12:7; Lc. 22:67-68; Jo 18:36; 1 Co. 2:8.

Eu concordo que haja, de fato, um forte apoio bíblico a ideia de conhecimento contrafactual de Deus acerca das escolhas humanas. No entanto, devemos notar algo muito importante sobre estes textos: eles não afirmam explicitamente que as escolhas feitas (ou as que seriam feitas) são escolhas de natureza libertária.

É completamente razoável inferir que as escolhas em questão sejam escolhas livres, uma vez que as criaturas são (ou seriam) consideradas moralmente responsáveis por essas escolhas. Mas existe um debate muito grande entre os filósofos sobre qual seria o tipo necessário de liberdade para que se possa haver uma cobrança de responsabilidade moral sobre as criaturas. De um lado estão os libertários, que argumentam que a liberdade genuína requer o indeterminismo causal (isto é, as livres escolhas não podem ser causalmente determinadas por eventos ou estados anteriores). E do outro lado estão os compatibilistas, que argumentam que a liberdade genuína seja compatível com o determinismo causal.

Os molinistas, por definição, sustentam uma visão libertária (incompatibilista) da liberdade. A principal virtude do Molinismo, de acordo com seus defensores, é que ela concilia a liberdade (libertária) humana com a providência divina abrangente. Mas, os textos bíblicos citados acima não abordam a questão do tipo de liberdade que os seres humanos possuem. Eles não favorecem uma visão libertária sobre uma visão compatibilista. Se os molinistas os usam como suporte para a ideia de que existe o conhecimento contrafactual de Deus acerca da liberdade incompatibilista, é porque eles estão admitindo que esse tipo de liberdade seja necessário para que haja responsabilidade moral. Mas essa é uma afirmação filosófica discutível; não é algo que pode ser diretamente inferido a partir dos textos.

Os agostinianos tipicamente sustentam uma visão compatibilista da liberdade. Nesse ponto de vista, não há nenhum problema em afirmar que Deus tem o conhecimento contrafactual da liberdade humana. Este conhecimento não é um conhecimento médio (que por definição é o conhecimento contrafactual de uma liberdade incompatibilista). Ao invés disso, ele cai sob o conhecimento natural de Deus ou sob o Seu conhecimento livre. (Agostinianos podem assumir diferentes pontos de vista aqui, mas esse debate interno não vem ao caso. Todos os Agostinianos irão afirmar que Deus tem um conhecimento contrafactual abrangente).

O resultado, então, é que os textos bíblicos citados em apoio ao Molinismo (os textos que implicam (1) que existem verdades contrafactuais sobre as livres escolhas dos seres humanos; e (2) que Deus conhece essas verdades) são igualmente consistentes com o Agostinianismo se não formos levantar a questão da natureza das escolhas dos seres humanos (libertária versus compatibilista). Logo, esses textos favorecem o Molinismo apenas diante de alternativas concorrentes que negam (1) ou (2) (como o Teísmo Aberto ou a visão da Presciência Simples). Mas eles não favorecem o Molinismo diante do Agostinianismo pelo simples fato de o último também afirmar (1) e (2).

Podemos ser tentados a ir mais longe e argumentar que, à luz das objeções filosóficas à ideia de que não se pode haver verdadeiros contrafactuais de liberdade incompatibilista (por exemplo, a chamada objeção base), esses textos bíblicos na verdade apoiariam o Agostinianismo e não o Molinismo. Eu suspeito que o molinista aqui irá retrucar que existem objeções filosóficas ao compatibilismo (isto é, argumentos a favor do incompatibilismo) que pesam tanto quanto os argumentos contra a existência de verdadeiros contrafactuais de liberdade incompatibilista. O que essa resposta não leva em conta (penso eu) é que o molinista tem que lidar com dois conjuntos de problemas: objeções ao conhecimento médio e objeções à liberdade indeterminística (por exemplo, a famosa objeção da sorte). De toda maneira, está claro que neste momento o debate mudou, saiu das implicações superficiais dos textos bíblicos citados acima para disputas metafísicas mais profundas.

E agora? Para onde vamos?

Vimos que em relação a duas afirmações bíblicas significativas (a providência divina abrangente e o conhecimento de Deus de contrafactuais) não dá ao Molinismo vantagem alguma sobre o Agostinianismo, uma vez que ambas as posições são consistentes com esses ensinamentos bíblicos (pelo menos de cara). Se queremos mostrar que o Molinismo possui melhor suporte bíblico do que o Agostinianismo (ou vice-versa), então precisamos encontrar alguma proposição p que é afirmada pelo Molinismo e negada pelo Agostinianismo (ou vice-versa) de forma que p goza de apoio bíblico positivo (isto é, existem textos bíblicos que, segundo a interpretação mais natural e defensável, e sem implorar questões filosóficas, asseguram ou implicam p).

Na próxima parte desta série, irei considerar algumas proposições candidatas a p.

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Notas:
[1] Para uma discussão mais detalhada sobre o ensinamento bíblico da providência divina, leia os capítulos  8-9 do livro Systematic Theology por John Frame , ou os capítulos 3-5  de The Reformed Doctrine of Predestination por of Loraine Boettner.
[2] William Lane Craig, “God Directs All Things,” em Four Views on Divine Providence, ed. Dennis W. Jowers (Zondervan, 2011), p. 82, enfâse adicionada. O “conhecimento natural” de Deus é o Seu conhecimento acerca de todas as possibilidades e necessidades, que é fundamentado na natureza essencial de Deus. O “conhecimento livre” de Deus é Seu conhecimento acerca de todas as verdades contingentes sobre o mundo real, esse conhecimento está fundamentado no eterno e livre decreto de Deus.

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Autor: James N. Anderson
Fonte: Analogical Thoughts
Tradução: Erving Ximendes
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