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É sempre complicado falar das coisas de Deus, mesmo guiados pelo Espírito Santo, a nossa visão é limitada pela infinitude, transcendência e perfeição divinas, então entender e compreender tudo é impossível, sendo seres limitados e imperfeitos, muitas coisas nos serão ininteligíveis e incompreensíveis, no sentido de sabermos em detalhes explica-las. Devemos, logo, ter a humildade de reconhecer os termos demarcados pelo Senhor a impedir-nos de esmiuçar e descrever toda a verdade. Ainda que nos seja revelado tudo nas Escrituras, tudo aquilo que ele quis manifestar, muitas delas serão aceitas pela fé, sabendo ser a Bíblia a palavra divina, ela é a verdade, e de que, se o Senhor escreveu, independente da capacidade de entender um ou outro enunciado, deve ser simplesmente aceita e jamais questionada, evitando-se a especulação, exatamente por sua complexidade. Enquanto Deus vê o todo, vemos, quando atentamos corretamente, fracionada e parcial. Deve bastar-nos, e ser suficiente para deleitarmo-nos, reconhecer a realidade da Escritura, posto Deus tê-la escrito e revelado, mesmo sem nos dar maiores explicações. Rejeitar algo maravilhoso, sublime, porque não as alcançamos, pela insignificância e limitação da mente e espírito, torna-nos em arrogantes, presunçosos, incapazes de admitir a própria realidade, auspiciando nas divagações e especulações uma vantagem suficiente para igualar-nos a Deus (ou até mesmo tornar-nos superiores), e assim encobrir a debilidade inerente e contemplada na natureza humana.
Eleição incondicional é, então, o ato divino de escolher pessoas entre a totalidade da humanidade caída, condenada, morta espiritualmente, e fazer delas o seu povo, regenerando-as e salvando-as da condenação advinda pelo pecado; sem que elas tivessem condição alguma a favorecê-las na escolha, pois a escolha é dele, feita exclusivamente por ele, pela liberdade e vontade soberanas que ele tem de escolher sem qualquer restrição, coação ou limitação exterior a ele. Deus é absoluto, supremo em suas decisões, implicando ser ele livre para escolher quem quer, da maneira que quer, sem ninguém poder questioná-lo, como Paulo, peremptoriamente, declara em Romanos:
“Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20)
Deus livremente escolhe, segundo a sua vontade, de entre os seus inimigos, pessoas as quais separou para serem o seu povo.
Como Deus é eterno, e tudo relacionado com ele é eterno, a eleição também é eterna. Há várias passagens na Escritura afirmando a nossa eleição antes da fundação do mundo. Esta expressão não está limitada a um momento histórico, a um evento temporal, mas significa que, desde sempre, desde quando o Senhor existe, ela foi planejada, estando sempre em sua mente, assim como a sua causa também é eterna. Pense um pouco, e tente responder: Você pode dizer o motivo pelo qual, não havendo nada em nós a agradá-lo, Deus elege?
Seria por ele ter antevisto, no tempo, que responderíamos prontamente ao chamado santo do Senhor? De ter ele previsto que alguns creriam e, por isso, predestinou-os à salvação? Esta é, certamente, a resposta mais óbvia, uma solução humana que não contempla a realidade divina, porém tem uma aceitação quase unânime, em nossos dias. Também chamado de presciência, advoga o conhecimento prévio de Deus de todas as coisas como o motivo para a eleição. Acontece haver duas definições de presciência, uma antibiblica e a outra bíblica. A primeira, definida como Deus não estando no tempo, mas este sendo parte da criação, vê tudo e todos num mesmo instante. A dificuldade em se dar um sentido exato à sentença é facilmente verificada em como dispomos de uma linguagem restrita para um conhecimento também restrito. Um instante é uma fração de tempo, contido no tempo, mas não há como abandoná-lo na tentativa de trazer significado ao termo “presciência”, pois, de outra maneira, tornar-se-ia, por completo, incompreensível. Ao dizer que Deus vê tudo num instante, mesmo esse “instante” sendo infinito e eterno, é prova da delimitação reservada ao homem de não alcançar a amplitude indeterminada, a perfeição intangível, a santidade ilimitada, da mente divina. É preciso, muitas vezes, para a nossa compreensão, rebaixarmos a magnitude de Deus ao nível da insignificância humana.
Prosseguindo, a ideia de presciência, definida segundo uma ótica não bíblica, tem a conotação de Deus prever, antever, conhecer de antemão, todos os atos e eventos históricos, antes deles se realizarem. Assim, Deus, conhecendo que fulano responderia positivamente ao chamado ou “esforço” do Espírito, através da fé, crendo para a sua salvação, tornou-se um eleito, em definição corrente e usual entre os cristãos. Ao ver os eventos descortinados diante dos olhos, e a resposta positiva do homem, Deus o predestinou, elegendo-o. Encontramos um sério problema nesta definição, posto Deus escolher quem o escolheu, mesmo o fazendo antes dos eventos, mas apenas um momento após vislumbrá-los, antevê-los, significando, de qualquer maneira, que a escolha divina se deu após a decisão, a escolha humana estabelecendo-se efetivamente. Ou seja, do ponto de vista lógico, Deus escolheu depois da escolha do homem, logo, não é, na verdade, a escolha divina, mas a ratificação divina à escolha humana. Somente depois de confirmado pelo antever, Deus tornou-a firme, validando a eleição, cuja causa e origem está no homem, cuja atitude de responder positivamente ao chamado divino é a razão, o agente eficaz que justifica a existência do não existente, sendo a origem da eleição, o ato motivador e o princípio gerador. Deus nada pode fazer, como um agente passivo, se tornando prisioneiro da vontade humana. Mas há algo ainda pior: este esquema faz de Deus prisioneiro do tempo, ou seja, prisioneiro da sua própria criação.
Se a presciência é a antevisão de Deus dos fatos futuros, e ele elege o homem a partir dessa visão, mesmo Deus não estando no tempo, ele estaria “refém” do tempo, posto somente "validar" a eleição após certificar-se da resposta positiva do homem. Ora, há uma visão do futuro, o próprio futuro é um fragmento temporal, e a resposta humana se dará nele, então a presciência, como um “decreto comprobatório” dessa visão, depende essencialmente da resposta transitória do homem, levando a uma decisão temporal, não eterna, tornando o próprio Deus em um ser limitado por sua própria criação. Neste sentido, Deus elegeria e predestinaria somente "após" observar a resposta positiva ou negativa do homem. Há, aqui, uma condição de subordinação de Deus, passível de afetar o atributo da soberania, na qual ele pode tudo, ontologicamente, mas está condicionado à iniciativa humana, no tempo, no sentido de o seu conhecimento, ainda que completo, amplo, o restringe e o faz dependente, podendo tornar-se imobilizado nos casos das respostas serem negativas. Sendo eterno, se sujeitaria a efemeridade, resignando-se a uma mera coadjuvância, não o causador e gerador do ato, mas uma testemunha ocular; onde a sua vontade não é imperiosa, determinante, mas sancionada por uma ação futura, temporal, a não apenas influenciar, mas ocasionar a eternidade. Ou seja, não é o eterno a fundar o tempo, mas uma fração ou frações dele a sedimentar o perene. E a própria ideia de Deus conforme revelado na Escritura tornar-se-ia impossível, ou, no mínimo, questionável.
Uma analogia possível, guardadas as devidas proporções, seria um copo de suco de laranja ser a causa da existência da laranjeira e seus frutos; em outras palavras, o menor, o suco de laranja, fundacionaria o maior, a laranjeira, quando na verdade acontece o contrário. O temporal nunca poderá justificar e fundamentar o eterno, posto ser este a instituir aquele. E Deus estaria aprisionado em sua própria criação, não somente agora mas para sempre, dadas as consequências da eternidade firmarem-se nas ações transitórias, das quais ele não tem poder de decisão, nem são por ele controladas.
Podemos resumir este estado de coisas em duas frases:
“Deus escolhe, elege, o salvo”. Esta proposição não fere, enfraquece a soberania divina, ou transforma-o em um mero espectador, mas em um agente ativo na ação de escolher. É ele quem, por sua exclusiva vontade, decide, a partir de si mesmo, quem será eleito, sem atentar para nenhum fator externo a ele.
“O homem, ao responder positivamente, pela fé, é escolhido por Deus”. Esta proposição faz de Deus um agente passivo, que decide a partir de uma ação exterior a si, como uma reação à resposta positiva ou negativa do homem; pois, antes, a sua motivação está associada, ou melhor, parte da resposta humana, da manifestação da sua vontade, sem a qual Deus está incapacitado de condenar ou não, posto o homem ser autônomo e detentor do livre-arbítrio. Em linhas gerais, Deus está em uma camisa de força, imóvel, podendo apenas assentir ao movimento humano, concordando ou discordando mentalmente, mas ratificando-o, independente da resolução tomada pelo homem, a qual, em última instância, põe termo à questão, dando-lhe o desfecho final.
Isso faz de Deus, em algum aspecto, refém da autonomia humana, de tal maneira que ele estará condicionado a ela, submetendo-se (e a ideia de voluntariedade inexiste como explicação), numa posição subjacente, secundária, ao desígnio estabelecido pelo homem a partir da própria vontade; esta, sim, determinante da eleição, enquanto a divina é apenas confirmatória, e não causativa, ratificando o que Deus já havia vislumbrado, por verdadeiro, pela antevisão.
Nesse aspecto, a soberania divina é frágil, enquanto a força encontra-se na vontade determinada do homem; e nem mesmo Deus pode demovê-lo para o bem, pois sua vontade permanece imperiosa; assim, se o homem desejar permanecer em sua rebeldia, Deus não poderá fazer nada. Como observador, resta-lhe a condição de testemunha, estando apto a confirmar e declarar o assistido, cumprindo o papel de passividade cabível. Ainda mais angustiante é saber que, segundo essa definição, o Senhor ama a todos os homens, indistintamente, e não pode exercer nenhuma ação visando preservar o objeto do seu amor, antes, porém, deve respeitar e salvaguardar as decisões tolas de suas criaturas, culminando em lança-las, os amados, no Inferno. Após a condenação, o amado tornar-se-á em odiado, e sobre ele a ira e justiça divinas recairá. Temos, via de regra, um deus esquizofrênico, o qual ama suas criaturas, derramando sobre elas a sua graça, morrendo por todas elas na cruz, pagando o sacrifício impossível de ser quitado, mas, na hora “h”, nada disso se torna relevante, pois se o homem não quiser receber todas essas dádivas, pode recusá-las, anulando os seus eventuais efeitos, tornando-os inócuos como uma rosca espanada.
Outra analogia seria a de um garoto, de dez anos, subir no alto de um prédio de cinco andares, vestido de Super-Homem, e ameaçar atirar-se do telhado. Ele acredita possível voar, e espera alcançar a mesma velocidade do Homem-de-aço, vista no último filme. Ainda que tenha machucado algumas vezes, e tirado sangue de joelhos e cotovelos, sempre reputou ser aquilo fruto de uma kriptonita invisível, enfraquecendo-o. Porém, agora, ele está certo de não haver nenhuma ameaça, nem mesmo tênue. Sente-se corajoso como nunca para realizar o mesmo feito do seu ídolo. Seu avô chega a tempo de impedi-lo, e tenta demovê-lo dessa ideia, dizendo que, se pular, ele morrerá, não verá mais seus pais, seus irmãos, os colegas de escola, não tomará mais sorvete, nem jogará futebol, o seu PlayStation será dado ao irmão caçula, que herdará também o quarto e todos os demais brinquedos... Além do mais, diz, você não é o Super-Homem, o Super-Homem não existe, é uma história, e homem nenhum jamais voou por si mesmo. Então, durante a conversa, ele se aproxima o suficiente para agarrar a criança, salvando-a de precipitar-se no vazio, mas insiste em convencê-la, argumentando, crendo que ela acreditará na própria insensatez e gravidade do seu ato, e pelo seu livre-arbítrio¹ decidirá com correção. Mas o garoto está cheio da conversa do avô e, mentalmente, quer provar que está certo; o Super-Homem não é uma mentira, ele viu, estava lá, voando, atravessando paredes, segurando aviões em pleno voo, mostrando o quanto era hábil no que fazia. Num átimo, lança-se do topo do edifício, estatelando-se no chão. O avô, no momento em que podia segurá-lo, recua a mão, lembrando-se de que a decisão é do netinho, e ele não pode interferir em suas escolhas, mesmo danosas e mortais. Quase teve remorsos, mas entendeu ser impossível ir contra a decisão da criança. Mesmo sabendo que o conhecimento dela da realidade era insuficiente para tomar uma decisão acertada, mesmo sabendo que esteve, até aquele tempo, enganada com a ilusão hollywoodiana de um super-herói voador, que sua mente estava mais afeita à fantasia do que à verdade, mesmo assim, não poderia intervir. Considerou-se impotente, entristecido, mas convicto de haver preservado a vontade da criança, a qual, em última instância, não a teve cumprida, posto não ter voado, nem permanecido vivo, como supunha, chegando a um final impensado e não desejado.
Se porventura, todos os homens negassem a graça, a expiação e a justificação de Cristo (hipoteticamente, claro, a despeito de muitos já o fazerem efetivos), as quais não saíram da categoria de possibilidades, jamais, e em tempo algum, alcançaram o estado de certezas, elas não teriam qualquer sentido, e seriam um retumbante fracasso. Deus teria malogrado em seu propósito, o de salvar alguns, e ainda hoje, segundo essa visão, ele fracassou, pois, se Cristo morreu por todos e sua graça é resistível, não há eficiência na expiação e justificação, em salvar todos, mas apenas a contingência de, eventualmente, um e outro decidir abandonar o pecado e aceitar a salvação (mais por um mérito pessoal que pelo convencimento sobrenatural); além do quê, Deus passaria o atestado de incompetência.
Diante desta descrição, como não julgar esse "Deus" um miserável, e cego, e nu, submetendo a sua sabedoria, perfeição, santidade e poder, às vontades de suas criaturas imperfeitas, tolas, pecadoras e frágeis?
Pois bem, a maior parte desse esquema não provém da Bíblia, nem da revelação divina, mas de distorções interpretativas do texto sagrado (ainda que exista uma lógica interna culminando nessa conclusão, contudo, o pressuposto do livre-arbítrio e do tempo, onde a vontade está atrelada, e sob os efeitos da transitoriedade, não se harmoniza com a realidade bíblica, sendo um equívoco) aliadas à especulações filosóficas e a necessidade de justifica-las, tendo como ponto comum a rebeldia e intransigente autoglorificação humana, em que o seu destino depende exclusivamente de si mesmo. Mas, se nos aspectos mais comuns e insignificantes da vida, nem assim o homem tem o poder de estabelece-los, muitas vezes, por que haveria de deter praticamente a totalidade das virtudes necessárias à salvação da alma, garantindo um lugar ao lado de Deus, na eternidade (algo que demandaria uma sabedoria próxima da perfeição)? Se está à mercê de forças externas a si, capazes de determinarem parte do curso existencial terreno, em um aspecto temporal, o que dizer de algo grandioso e dependente de um grau superlativo de virtudes? Ao ponto de ser necessário um estado de harmonia absoluta entre o espírito do homem e o Espírito de Deus? De onde tiraria essa superioridade espiritual sendo detentor de uma alma caída, pecadora e corrupta? Qual transformação seria indispensável à essa conversão? Uma vontade dominada pelo pecado? Controlada pela carne? Em oposição a Deus?
Alguém dirá: Mas o Senhor derrama a sua graça sobre aquele homem, e ele pode então ver...
Ao que digo: será? Se ele é capaz de vislumbrar as benevolências, o amor, o sacrifício, a misericórdia e a graça divinas, e permanece resoluto em manter o seu estilo de vida, depravado, corrupto, e maldito, terá entendido de verdade quem é Deus? Quem ele é? E, caso não tenha entendido, de que adiantará a graça se não pode, ao menos, movê-lo ao conhecimento divino? Será uma graça inútil, anulada por sua estupidez.
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Notas:
[1] A própria noção de "livre-arbítrio" está equivocada, posto a criança estar "presa", de alguma maneira, a uma coação exterior a si mesmo, ou seja, o personagem "Super-homem", o último filme, a sua fantasia de homem-de-aço, tudo isso cooperando para mover a sua vontade a fim de realizar o ato desejado. O livre-arbítrio não é sinônimo de vontade, pois esta é controlada pelo Espírito Santo ou pelo pecado. Não há meio termo; enquanto o livre-arbítrio pressupõe neutralidade, uma neutralidade livre de qualquer influência ou coação externa e interna (somos, desde cedo, expostos à moral, à ética, a valores sociais, leis, etc, capazes de formar o nosso caráter, e, ao se ter um caráter, levando-nos para um lado ou outro, em nossas decisões, já não somos "neutros", significando na impossibilidade da neutralidade, logo, do livre-arbítrio)
[2] Advogo que nem mesmo Deus detém o livre-arbítrio, pois ele não pode fazer, nem como hipótese, algo que contradiga o seu Ser, de maneira que ele somente fará e decidirá por atitudes segundo a sua natureza, e jamais contra ela.
[3] Fragmento de um esboço, a tornar-se apostila ou livro, sobre a Eleição Incondicional, portanto, são ideias e exposição preliminares, podendo sofrerem alterações, no futuro.
É sempre complicado falar das coisas de Deus, mesmo guiados pelo Espírito Santo, a nossa visão é limitada pela infinitude, transcendência e perfeição divinas, então entender e compreender tudo é impossível, sendo seres limitados e imperfeitos, muitas coisas nos serão ininteligíveis e incompreensíveis, no sentido de sabermos em detalhes explica-las. Devemos, logo, ter a humildade de reconhecer os termos demarcados pelo Senhor a impedir-nos de esmiuçar e descrever toda a verdade. Ainda que nos seja revelado tudo nas Escrituras, tudo aquilo que ele quis manifestar, muitas delas serão aceitas pela fé, sabendo ser a Bíblia a palavra divina, ela é a verdade, e de que, se o Senhor escreveu, independente da capacidade de entender um ou outro enunciado, deve ser simplesmente aceita e jamais questionada, evitando-se a especulação, exatamente por sua complexidade. Enquanto Deus vê o todo, vemos, quando atentamos corretamente, fracionada e parcial. Deve bastar-nos, e ser suficiente para deleitarmo-nos, reconhecer a realidade da Escritura, posto Deus tê-la escrito e revelado, mesmo sem nos dar maiores explicações. Rejeitar algo maravilhoso, sublime, porque não as alcançamos, pela insignificância e limitação da mente e espírito, torna-nos em arrogantes, presunçosos, incapazes de admitir a própria realidade, auspiciando nas divagações e especulações uma vantagem suficiente para igualar-nos a Deus (ou até mesmo tornar-nos superiores), e assim encobrir a debilidade inerente e contemplada na natureza humana.
Eleição incondicional é, então, o ato divino de escolher pessoas entre a totalidade da humanidade caída, condenada, morta espiritualmente, e fazer delas o seu povo, regenerando-as e salvando-as da condenação advinda pelo pecado; sem que elas tivessem condição alguma a favorecê-las na escolha, pois a escolha é dele, feita exclusivamente por ele, pela liberdade e vontade soberanas que ele tem de escolher sem qualquer restrição, coação ou limitação exterior a ele. Deus é absoluto, supremo em suas decisões, implicando ser ele livre para escolher quem quer, da maneira que quer, sem ninguém poder questioná-lo, como Paulo, peremptoriamente, declara em Romanos:
“Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20)
Deus livremente escolhe, segundo a sua vontade, de entre os seus inimigos, pessoas as quais separou para serem o seu povo.
Como Deus é eterno, e tudo relacionado com ele é eterno, a eleição também é eterna. Há várias passagens na Escritura afirmando a nossa eleição antes da fundação do mundo. Esta expressão não está limitada a um momento histórico, a um evento temporal, mas significa que, desde sempre, desde quando o Senhor existe, ela foi planejada, estando sempre em sua mente, assim como a sua causa também é eterna. Pense um pouco, e tente responder: Você pode dizer o motivo pelo qual, não havendo nada em nós a agradá-lo, Deus elege?
Seria por ele ter antevisto, no tempo, que responderíamos prontamente ao chamado santo do Senhor? De ter ele previsto que alguns creriam e, por isso, predestinou-os à salvação? Esta é, certamente, a resposta mais óbvia, uma solução humana que não contempla a realidade divina, porém tem uma aceitação quase unânime, em nossos dias. Também chamado de presciência, advoga o conhecimento prévio de Deus de todas as coisas como o motivo para a eleição. Acontece haver duas definições de presciência, uma antibiblica e a outra bíblica. A primeira, definida como Deus não estando no tempo, mas este sendo parte da criação, vê tudo e todos num mesmo instante. A dificuldade em se dar um sentido exato à sentença é facilmente verificada em como dispomos de uma linguagem restrita para um conhecimento também restrito. Um instante é uma fração de tempo, contido no tempo, mas não há como abandoná-lo na tentativa de trazer significado ao termo “presciência”, pois, de outra maneira, tornar-se-ia, por completo, incompreensível. Ao dizer que Deus vê tudo num instante, mesmo esse “instante” sendo infinito e eterno, é prova da delimitação reservada ao homem de não alcançar a amplitude indeterminada, a perfeição intangível, a santidade ilimitada, da mente divina. É preciso, muitas vezes, para a nossa compreensão, rebaixarmos a magnitude de Deus ao nível da insignificância humana.
Prosseguindo, a ideia de presciência, definida segundo uma ótica não bíblica, tem a conotação de Deus prever, antever, conhecer de antemão, todos os atos e eventos históricos, antes deles se realizarem. Assim, Deus, conhecendo que fulano responderia positivamente ao chamado ou “esforço” do Espírito, através da fé, crendo para a sua salvação, tornou-se um eleito, em definição corrente e usual entre os cristãos. Ao ver os eventos descortinados diante dos olhos, e a resposta positiva do homem, Deus o predestinou, elegendo-o. Encontramos um sério problema nesta definição, posto Deus escolher quem o escolheu, mesmo o fazendo antes dos eventos, mas apenas um momento após vislumbrá-los, antevê-los, significando, de qualquer maneira, que a escolha divina se deu após a decisão, a escolha humana estabelecendo-se efetivamente. Ou seja, do ponto de vista lógico, Deus escolheu depois da escolha do homem, logo, não é, na verdade, a escolha divina, mas a ratificação divina à escolha humana. Somente depois de confirmado pelo antever, Deus tornou-a firme, validando a eleição, cuja causa e origem está no homem, cuja atitude de responder positivamente ao chamado divino é a razão, o agente eficaz que justifica a existência do não existente, sendo a origem da eleição, o ato motivador e o princípio gerador. Deus nada pode fazer, como um agente passivo, se tornando prisioneiro da vontade humana. Mas há algo ainda pior: este esquema faz de Deus prisioneiro do tempo, ou seja, prisioneiro da sua própria criação.
Se a presciência é a antevisão de Deus dos fatos futuros, e ele elege o homem a partir dessa visão, mesmo Deus não estando no tempo, ele estaria “refém” do tempo, posto somente "validar" a eleição após certificar-se da resposta positiva do homem. Ora, há uma visão do futuro, o próprio futuro é um fragmento temporal, e a resposta humana se dará nele, então a presciência, como um “decreto comprobatório” dessa visão, depende essencialmente da resposta transitória do homem, levando a uma decisão temporal, não eterna, tornando o próprio Deus em um ser limitado por sua própria criação. Neste sentido, Deus elegeria e predestinaria somente "após" observar a resposta positiva ou negativa do homem. Há, aqui, uma condição de subordinação de Deus, passível de afetar o atributo da soberania, na qual ele pode tudo, ontologicamente, mas está condicionado à iniciativa humana, no tempo, no sentido de o seu conhecimento, ainda que completo, amplo, o restringe e o faz dependente, podendo tornar-se imobilizado nos casos das respostas serem negativas. Sendo eterno, se sujeitaria a efemeridade, resignando-se a uma mera coadjuvância, não o causador e gerador do ato, mas uma testemunha ocular; onde a sua vontade não é imperiosa, determinante, mas sancionada por uma ação futura, temporal, a não apenas influenciar, mas ocasionar a eternidade. Ou seja, não é o eterno a fundar o tempo, mas uma fração ou frações dele a sedimentar o perene. E a própria ideia de Deus conforme revelado na Escritura tornar-se-ia impossível, ou, no mínimo, questionável.
Uma analogia possível, guardadas as devidas proporções, seria um copo de suco de laranja ser a causa da existência da laranjeira e seus frutos; em outras palavras, o menor, o suco de laranja, fundacionaria o maior, a laranjeira, quando na verdade acontece o contrário. O temporal nunca poderá justificar e fundamentar o eterno, posto ser este a instituir aquele. E Deus estaria aprisionado em sua própria criação, não somente agora mas para sempre, dadas as consequências da eternidade firmarem-se nas ações transitórias, das quais ele não tem poder de decisão, nem são por ele controladas.
Podemos resumir este estado de coisas em duas frases:
“Deus escolhe, elege, o salvo”. Esta proposição não fere, enfraquece a soberania divina, ou transforma-o em um mero espectador, mas em um agente ativo na ação de escolher. É ele quem, por sua exclusiva vontade, decide, a partir de si mesmo, quem será eleito, sem atentar para nenhum fator externo a ele.
“O homem, ao responder positivamente, pela fé, é escolhido por Deus”. Esta proposição faz de Deus um agente passivo, que decide a partir de uma ação exterior a si, como uma reação à resposta positiva ou negativa do homem; pois, antes, a sua motivação está associada, ou melhor, parte da resposta humana, da manifestação da sua vontade, sem a qual Deus está incapacitado de condenar ou não, posto o homem ser autônomo e detentor do livre-arbítrio. Em linhas gerais, Deus está em uma camisa de força, imóvel, podendo apenas assentir ao movimento humano, concordando ou discordando mentalmente, mas ratificando-o, independente da resolução tomada pelo homem, a qual, em última instância, põe termo à questão, dando-lhe o desfecho final.
Isso faz de Deus, em algum aspecto, refém da autonomia humana, de tal maneira que ele estará condicionado a ela, submetendo-se (e a ideia de voluntariedade inexiste como explicação), numa posição subjacente, secundária, ao desígnio estabelecido pelo homem a partir da própria vontade; esta, sim, determinante da eleição, enquanto a divina é apenas confirmatória, e não causativa, ratificando o que Deus já havia vislumbrado, por verdadeiro, pela antevisão.
Nesse aspecto, a soberania divina é frágil, enquanto a força encontra-se na vontade determinada do homem; e nem mesmo Deus pode demovê-lo para o bem, pois sua vontade permanece imperiosa; assim, se o homem desejar permanecer em sua rebeldia, Deus não poderá fazer nada. Como observador, resta-lhe a condição de testemunha, estando apto a confirmar e declarar o assistido, cumprindo o papel de passividade cabível. Ainda mais angustiante é saber que, segundo essa definição, o Senhor ama a todos os homens, indistintamente, e não pode exercer nenhuma ação visando preservar o objeto do seu amor, antes, porém, deve respeitar e salvaguardar as decisões tolas de suas criaturas, culminando em lança-las, os amados, no Inferno. Após a condenação, o amado tornar-se-á em odiado, e sobre ele a ira e justiça divinas recairá. Temos, via de regra, um deus esquizofrênico, o qual ama suas criaturas, derramando sobre elas a sua graça, morrendo por todas elas na cruz, pagando o sacrifício impossível de ser quitado, mas, na hora “h”, nada disso se torna relevante, pois se o homem não quiser receber todas essas dádivas, pode recusá-las, anulando os seus eventuais efeitos, tornando-os inócuos como uma rosca espanada.
Outra analogia seria a de um garoto, de dez anos, subir no alto de um prédio de cinco andares, vestido de Super-Homem, e ameaçar atirar-se do telhado. Ele acredita possível voar, e espera alcançar a mesma velocidade do Homem-de-aço, vista no último filme. Ainda que tenha machucado algumas vezes, e tirado sangue de joelhos e cotovelos, sempre reputou ser aquilo fruto de uma kriptonita invisível, enfraquecendo-o. Porém, agora, ele está certo de não haver nenhuma ameaça, nem mesmo tênue. Sente-se corajoso como nunca para realizar o mesmo feito do seu ídolo. Seu avô chega a tempo de impedi-lo, e tenta demovê-lo dessa ideia, dizendo que, se pular, ele morrerá, não verá mais seus pais, seus irmãos, os colegas de escola, não tomará mais sorvete, nem jogará futebol, o seu PlayStation será dado ao irmão caçula, que herdará também o quarto e todos os demais brinquedos... Além do mais, diz, você não é o Super-Homem, o Super-Homem não existe, é uma história, e homem nenhum jamais voou por si mesmo. Então, durante a conversa, ele se aproxima o suficiente para agarrar a criança, salvando-a de precipitar-se no vazio, mas insiste em convencê-la, argumentando, crendo que ela acreditará na própria insensatez e gravidade do seu ato, e pelo seu livre-arbítrio¹ decidirá com correção. Mas o garoto está cheio da conversa do avô e, mentalmente, quer provar que está certo; o Super-Homem não é uma mentira, ele viu, estava lá, voando, atravessando paredes, segurando aviões em pleno voo, mostrando o quanto era hábil no que fazia. Num átimo, lança-se do topo do edifício, estatelando-se no chão. O avô, no momento em que podia segurá-lo, recua a mão, lembrando-se de que a decisão é do netinho, e ele não pode interferir em suas escolhas, mesmo danosas e mortais. Quase teve remorsos, mas entendeu ser impossível ir contra a decisão da criança. Mesmo sabendo que o conhecimento dela da realidade era insuficiente para tomar uma decisão acertada, mesmo sabendo que esteve, até aquele tempo, enganada com a ilusão hollywoodiana de um super-herói voador, que sua mente estava mais afeita à fantasia do que à verdade, mesmo assim, não poderia intervir. Considerou-se impotente, entristecido, mas convicto de haver preservado a vontade da criança, a qual, em última instância, não a teve cumprida, posto não ter voado, nem permanecido vivo, como supunha, chegando a um final impensado e não desejado.
Se porventura, todos os homens negassem a graça, a expiação e a justificação de Cristo (hipoteticamente, claro, a despeito de muitos já o fazerem efetivos), as quais não saíram da categoria de possibilidades, jamais, e em tempo algum, alcançaram o estado de certezas, elas não teriam qualquer sentido, e seriam um retumbante fracasso. Deus teria malogrado em seu propósito, o de salvar alguns, e ainda hoje, segundo essa visão, ele fracassou, pois, se Cristo morreu por todos e sua graça é resistível, não há eficiência na expiação e justificação, em salvar todos, mas apenas a contingência de, eventualmente, um e outro decidir abandonar o pecado e aceitar a salvação (mais por um mérito pessoal que pelo convencimento sobrenatural); além do quê, Deus passaria o atestado de incompetência.
Diante desta descrição, como não julgar esse "Deus" um miserável, e cego, e nu, submetendo a sua sabedoria, perfeição, santidade e poder, às vontades de suas criaturas imperfeitas, tolas, pecadoras e frágeis?
Pois bem, a maior parte desse esquema não provém da Bíblia, nem da revelação divina, mas de distorções interpretativas do texto sagrado (ainda que exista uma lógica interna culminando nessa conclusão, contudo, o pressuposto do livre-arbítrio e do tempo, onde a vontade está atrelada, e sob os efeitos da transitoriedade, não se harmoniza com a realidade bíblica, sendo um equívoco) aliadas à especulações filosóficas e a necessidade de justifica-las, tendo como ponto comum a rebeldia e intransigente autoglorificação humana, em que o seu destino depende exclusivamente de si mesmo. Mas, se nos aspectos mais comuns e insignificantes da vida, nem assim o homem tem o poder de estabelece-los, muitas vezes, por que haveria de deter praticamente a totalidade das virtudes necessárias à salvação da alma, garantindo um lugar ao lado de Deus, na eternidade (algo que demandaria uma sabedoria próxima da perfeição)? Se está à mercê de forças externas a si, capazes de determinarem parte do curso existencial terreno, em um aspecto temporal, o que dizer de algo grandioso e dependente de um grau superlativo de virtudes? Ao ponto de ser necessário um estado de harmonia absoluta entre o espírito do homem e o Espírito de Deus? De onde tiraria essa superioridade espiritual sendo detentor de uma alma caída, pecadora e corrupta? Qual transformação seria indispensável à essa conversão? Uma vontade dominada pelo pecado? Controlada pela carne? Em oposição a Deus?
Alguém dirá: Mas o Senhor derrama a sua graça sobre aquele homem, e ele pode então ver...
Ao que digo: será? Se ele é capaz de vislumbrar as benevolências, o amor, o sacrifício, a misericórdia e a graça divinas, e permanece resoluto em manter o seu estilo de vida, depravado, corrupto, e maldito, terá entendido de verdade quem é Deus? Quem ele é? E, caso não tenha entendido, de que adiantará a graça se não pode, ao menos, movê-lo ao conhecimento divino? Será uma graça inútil, anulada por sua estupidez.
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Notas:
[1] A própria noção de "livre-arbítrio" está equivocada, posto a criança estar "presa", de alguma maneira, a uma coação exterior a si mesmo, ou seja, o personagem "Super-homem", o último filme, a sua fantasia de homem-de-aço, tudo isso cooperando para mover a sua vontade a fim de realizar o ato desejado. O livre-arbítrio não é sinônimo de vontade, pois esta é controlada pelo Espírito Santo ou pelo pecado. Não há meio termo; enquanto o livre-arbítrio pressupõe neutralidade, uma neutralidade livre de qualquer influência ou coação externa e interna (somos, desde cedo, expostos à moral, à ética, a valores sociais, leis, etc, capazes de formar o nosso caráter, e, ao se ter um caráter, levando-nos para um lado ou outro, em nossas decisões, já não somos "neutros", significando na impossibilidade da neutralidade, logo, do livre-arbítrio)
[2] Advogo que nem mesmo Deus detém o livre-arbítrio, pois ele não pode fazer, nem como hipótese, algo que contradiga o seu Ser, de maneira que ele somente fará e decidirá por atitudes segundo a sua natureza, e jamais contra ela.
[3] Fragmento de um esboço, a tornar-se apostila ou livro, sobre a Eleição Incondicional, portanto, são ideias e exposição preliminares, podendo sofrerem alterações, no futuro.
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Autor: Jorge Fernandes Isah
Fonte: Kálamos
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