O cristianismo pós-moderno - 1/2

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Por Gene Edward Veith, Jr.


De muitas maneiras, a igreja não pode deixar de ser apanhada nas mudanças pós-modernas. Já vimos o quanto é altamente segmentada a sociedade pós-moderna, com diferentes grupos se fragmentando em suas próprias subculturas. O exemplo mais claro desse fenômeno pode estar na própria área dos conservadores. 

Os crentes hoje têm suas próprias escolas, suas próprias faculdades, suas próprias livrarias, sua própria indústria do entretenimento e sua própria mídia. Os pós-modernistas reivindicam que, como não pode haver um consenso universal, as pessoas que compartilham uma mesma linguagem e visão de mundo devem formar suas próprias comunidades auto-suficientes. E isso está realmente acontecendo no cristianismo contemporâneo. Os crentes que denunciam a subcultura cristã devem reconhecer que a alternativa poderá ser a extinção cultural. O cristianismo foi excomungado da cultura geral—sistematicamente excluído das escolas, do estabelecimento intelectual e da mídia. O estabelecimento de escolas, editoras, grupos de artes, radiodifusoras, empresas, etc. poderá ser uma das grandes realizações da igreja do século vinte e um. À medida que as pressões pós-modernistas se intensificam, ter instituições na direção oposta já colocadas poderá provar ser de valor incalculável para que os crentes possam apresentar uma resistência eficaz.


Os cristãos deverão aproveitar estas suas bases para incursões na cultura geral e para exercerem sua influência em todos os níveis. Certamente devem resistir à tentação de permanecer na segurança do “gueto cristão”. Contudo, poderão se ver aceitos só até certo ponto. Geralmente as pessoas não escolhem viver num gueto. Os guetos judeus e de negros eram meios de exclusão, e os crentes podem esperar ser excluídos de um mundo cada vez mais sem Deus. Os judeus do gueto de Varsóvia e os pretos de Harlem dos anos 20 foram barrados da corrente geral, mas isso não os impediu de ter uma vida cultural própria, vibrante e rica. Os crentes poderão aspirar o mesmo.


O problema não é os cristãos terem suas próprias instituições paralelas, mas que essas instituições costumam às vezes ser tão semelhantes às seculares. Surpreende a freqüência com que a mentalidade cultivada pela subcultura evangélica se assemelha à do pós-modernismo secular.


A rejeição pós-modernista da objetividade permeia a igreja evangélica. “Temos uma geração menos interessada em argumentos cerebrais, pensamento linear, sistemas teológicos”, observa Leith Anderson, “e mais interessada em encontros com o sobrenatural”.[116] Em consequência, as pessoas que vão à igreja funcionam num paradigma diferente de espiritualidade. “O velho paradigma ensinava que se você tivesse o ensino, a doutrina certa, você teria experiência de Deus. O novo paradigma diz que se você tiver a experiência de Deus, você terá a doutrina certa”.[117] Não só fica a doutrina objetiva minimizada em favor de uma experiência subjetiva; a experiência realmente se torna o critério para se avaliar a doutrina. 

Anderson, pastor de uma megaigreja e consultor de crescimento de igrejas, diz que os pastores precisarão de lidar cada vez mais com pessoas como o jovem que vimos antes que diz que crê na inerrância da Escritura, na teologia reformada, e na reencarnação. Dizer-lhe que crer na reencarnação é incoerente com crer na Bíblia poderá não lhe dizer quase nada. A nova geração (o pastor poderia ter dito a geração pós-modernista) simplesmente não raciocina em termos sistemáticos. O jovem gosta da Bíblia, de João Calvino, e de Shirley MacLaine. Cada um destes faz sentido para ele. Consegue conviver com as contradições.[118]

Essa tendência de deixar para o segundo plano a doutrina e o pensamento objetivo ajuda a explicar porque 53 por cento dos crentes evangélicos conseguem acreditar que não existem absolutos (comparado aos 66 por cento dos americanos em geral).[119] É claro que a tradição evangélica sempre cultivou as emoções e enfatizou uma religião experiencial, em oposição a mero “conhecimento mental”. Essa abertura a sentimentos pessoais e experiência constitui um ponto de contato com o pós-modernismo, que já foi adiante exagerando o papel da subjetividade até um ponto além de qualquer coisa que pudesse ser reconhecida por um “evangélico quente” do século dezenove.

De modo similar, os evangélicos vêm mostrando a tendência de enfatizar o papel da escolha na salvação. As pessoas são instigadas a fazer uma “decisão por Cristo”, um compromisso sempre descrito como função da vontade humana. Essa terminologia coaduna bem com a mentalidade pós-modernista, que entende religião e moralidade em termos de opção, não de verdade.

Quando os evangélicos se aprofundam em sua própria rica herança teológica, entretanto, encontram mais substância nessa “teologia da decisão” do que haviam percebido. Para Lutero, Calvino, Santo Agostinho e muitos outros teólogos bíblicos, a vontade humana está em servidão ao pecado, de maneira que nossas escolhas nos afastam de Deus. Na salvação nós não escolhemos Deus; ele nos escolhe. Não somos salvos por nossa vontade, mas pela graça de Deus que transforma nossa vontade pecaminosa pelo poder do Espírito Santo. Então, e somente então, é que se pode dizer que temos a liberdade da vontade e somos capacitados a “escolher Cristo”. Mesmo teólogos, tais como Armínio, Wesley e Aquinas, que criam que a vontade humana é livre e precisa cooperar no processo da salvação, não viam a salvação como pura opção autônoma.

O evangelicalismo, tendo talvez negligenciado sua teologia, parece atraente aos pós-modernistas, portanto, pelo seu emocionalismo quente e sua exaltação da escolha. Outras práticas que os evangélicos têm seguido durante anos (como estudos bíblicos e grupos de oração) de repente encontraram nova ressonância nos meios pós-modernistas (com seu gosto por grupos de apoio e o cultivo da identidade do grupo). Mas, embora as tradições do evangelicalismo possam ser boas maneiras de atrair os pós-modernistas para evangelizá-los, por vezes a conversão tem tomado a direção contrária.

Já vimos como o pós-modernismo é aberto à cultura popular e à franca comercialização. A arte, a política e as idéias—desligadas da realidade objetiva—são todas colocadas de modo a satisfazer o gosto do consumidor. A retórica e marketing em massa substituem a persuasão racional. O pós-modernismo incentiva a mentalidade de consumidor, sempre voltada para o que as pessoas apreciam e querem. Isso se extrapola à religião, como vimos. Quando a verdade deixa de ser fator, a pessoa escolhe sua religião como qualquer outro produto—eu gosto? Isso me dá o que quero?

Charles Colson conta o caso de uma igreja evangélica que decidiu que precisava crescer em número de membros. Primeiro o pastor encomendou uma pesquisa de mercado. Descobriu que muitas pessoas tinham uma restrição à palavra “Batista”. A igreja mudou de nome. A pesquisa mostrou que as pessoas queriam mais acesso, e por isso a igreja construiu outro prédio perto da rodovia. Essa tinha tetos com vigas aparentes, lareiras de pedra, e era sem cruzes ou outros símbolos religiosos que pudessem causar desconforto às pessoas. Então o pastor decidiu parar de usar linguagem teológica. “Se usarmos as palavras redimir ou converter vão pensar que estamos falando em títulos financeiros” Parou de pregar sobre inferno e maldição eterna e passou a tópicos mais positivos. E a igreja cresceu, cresceu muito. “Reina o espírito de colocar as pessoas acima da doutrina” falou efusivamente um membro. “A igreja aceita totalmente as pessoas como são, sem qualquer espécie de faça e não faça”.[120] Abandonando assim sua doutrina e sua autoridade moral, e ajustando seu ensino às exigências do mercado, a igreja embarcou numa peregrinação ao pós-modernismo. 

Em lugar da pregação que conduz à convicção do pecado e à salvação através da cruz de Jesus Cristo, as igrejas pregam a mensagem do “sinta-se bem” que visa consolar e alegrar as pessoas. Há quem descreva a cultura pós-modernista como uma “cultura terapeuta”, na qual o sentimento de bem-estar social, e não a verdade, é o valor controlador.[121] A igreja dos nossos dias também enfrenta a tentação de substituir pela teologia a terapia.

Visto como o pensamento pós-moderno se impacienta com as crenças espirituais transcendentes, o enfoque muda para o aqui e agora, para o que se sente e se toca. As pessoas têm pouco interesse no céu; querem a saúde e a prosperidade já. Como os pós-modernistas são orientados ao poder, serão atraídos a igrejas de poder que prometem milagres para resolver todos os problemas, força política, crescimento geométrico nos números, e um sucesso atrás do outro.[122] (Lutero estava pensando em algo semelhante quando contrastou a “teologia da glória” baseada no poder e orgulho, com a “teologia da cruz” baseada em nossa própria humilhação e o sofrimento de Jesus Cristo).[123]

Colson critica severamente as teologias da “religião do relax” e a capitulação à cultura popular do “McIgreja”. O consumismo na igreja, ele afirma, “dilui a mensagem, altera o caráter da igreja, perverte o evangelho, e desfaz a autoridade da igreja”.[124]

Ainda mais sério do que o consumismo da igreja (embora geralmente o acompanhe), a própria teologia evangélica em alguns lugares tem se rendido à ideologia pós-modernista. Essa nova teologia, conforme desenvolvida por teólogos acadêmicos e conforme evidenciada em inúmeras livrarias e púlpitos evangélicos, já foi descrita como uma megamudança que se desvia do protestantismo clássico para um entendimento completamente diferente (e essencialmente pós-modernista) do evangelho.[125]

A teologia da megamudança tenta amaciar as arestas duras da ortodoxia bíblica e acomodar os valores e mentalidade da sociedade contemporânea. Michael Horton explica a nova teologia através de uma série de contrastes:

Onde o cristianismo clássico frisa a transcendência de Deus e sua imutabilidde, onipotência e onisciência, o novo modelo frisa a imanência de Deus, que é dinâmico, é capaz de alteração, e está em parceria com sua criação. O cristianismo clássico vê toda a raça humana como implicada na Queda de Adão. Sendo assim, somos todos corrompidos e condenados. O pecado é uma condição. Mas o novo modelo nega a queda universal. Não somos culpados pelo pecado de Adão, exceto na medida em que seguimos o mau exemplo moral de Adão. O pecado é um ato.
O cristianismo clássico ensina que nosso problema é nossa condenação, que todos nos achamos debaixo da ira de Deus. O novo modelo ensina que nosso problema é essencialmente a ignorância—não sabemos o quanto Deus nos ama.
O cristianismo clássico nos ensina que não há salvação à parte da fé na obra expiatória de Jesus Cristo. O novo modelo ensina que muitos são salvos à parte da fé em Cristo, que o Espírito Santo pode trazer salvação mesmo a pessoas que não conhecem Cristo, o qual é apresentado menos como nosso sacrifício do que como nosso exemplo.
O cristianismo clássico ensina que nosso estado eterno é a imortalidade ou no céu ou no inferno. O novo modelo ensina que os maus são aniquilados, mas que a não ser isso, o céu estará aberto para todos.[126]

O novo modelo reflete diversos princípios pós-modernistas: pouca atenção a absolutos; falta de confiança em transcendência; preferência por “mudança dinâmica” sobre “verdade estática; o desejo de pluralismo religioso para que pessoas de outras culturas e religiões sejam salvas; atenção restrita à idéia da autoridade de Deus sobre nós; o espírito de tolerância, sentimentos calorosos, e a psicologia pop. Apesar de todos seus pensamentos bonitos, porém, a teologia da megamudança é uma facada que atinge a raiz de qualquer fé que se possa chamar de evangélica—a boa nova que Jesus Cristo morreu sobre a cruz para expiar a culpa de nossos pecados e oferecer-nos o dom gratuito da salvação. O próprio evangelho está em perigo.

Os teólogos dessa megamudança entendem a morte de Cristo na cruz como sendo a forma que Deus usou para nos mostrar o quanto nos ama. Por essa ótica, Cristo não expia nossos pecados, visto que nossos pecados nada mais são do que nossos atos individuais. Jesus não é nosso sacrifício; ao contrário, ele é nosso exemplo. Ele mostra como devemos amar uns aos outros. Sua morte na cruz nos faz ter pena dele, e quando reconhecemos o quanto ele sofreu, isso nos faz sentir o amor de Deus. Motiva-nos a mudar nossa vida e amar os outros.

O evangelismo, conforme esse modelo, não compreende proclamar o juízo de Deus contra os pecadores e sua oferta graciosa da salvação pela fé em Jesus Cristo. Pelo contrário, o evangelismo simplesmente instrui as pessoas sobre o quanto Deus as ama. Deus realmente não quer castigar ninguém; ele quer que todos se sintam bem sobre si mesmos, que vivam uma vida plena e sejam felizes. Aqueles que se afastam de Deus irão perder toda essa vida abundante, embora o Espírito Santo possa bem trazê-los ao Céu mesmo se nunca tiverem conhecido a Cristo.

Embora essa teologia transforme Deus num terapeuta caloroso e indistinto, é essencialmente um ensino de moralismo e desespero, enfocado em obras humanas. Seu otimismo facilitado não dá consolo a almas atormentadas e não inclui nenhuma provisão eficaz para o perdão do pecado. “Pois se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu Cristo em vão!” insiste o livro de Gálatas (2:21), o qual avisa solenemente contra tentar agradar os homens criando algum outro evangelho (1:6-10).

Michael Horton, crítico penetrante dessa teologia pseudo-evangélica, elucidou bem essa inversão centrada no humano:

Antes, Deus existia para sua própria felicidade, mas o novo deus existe para a nossa. Em lugar de pecadores terem que ser justificados diante de um deus bom e santo, nós mesmos somos agora os bons que exigimos que Deus se justifique diante de nós. Por que deveríamos acreditar nele? Como crer nele me fará mais feliz e mais realizado do que crer em Karma ou no mais recente carro de trio elétrico ideológico?[127]

É simplesmente grotesca a arrogância e superficialidade daqueles que desejariam se chegar diante de Deus exigindo satisfação ao consumidor, tratando o Santo de Israel como se ele fosse uma mera escolha dentre muitas opções.

Horton olha de frente o fato de que a revelação de Deus poderá não ser aquilo que queremos ou gostamos:

Vejamos. Há muita coisa que encontramos na Bíblia de que não gostamos nem um pouquinho. Há muito na mensagem cristã que nos ofende. Deus deve existir para cuidar que eu receba o que quero; para que eu seja feliz. O papel da cruz é mostrar às pessoas o quanto Deus nos ama e quer que imitemos o amor e compaixão de Cristo. Está lá para levantar nossa estima própria e mostrar o quanto nós valemos. Mas como o inferno pode fazer as pessoas felizes? Como pode reformar as pessoas? É que justamente nesses nossos dias, parece que não estamos fazendo as perguntas que a Bíblia responde.
Segundo a Escritura a pergunta universal não é “Como posso eu ser feliz?” e sim “Como posso eu ser salvo?[128]

 [Continua nos próximos dias...]

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Notas:
[112] George Gallup, Jr., and Robert Bezilla, "U.S. Religious Composition Changes; Fervor Constant", Princeton Religion Research Center (1993), Religious News Service, em Reporter: News for Church Leaders, agosto 1993, 16. As estatísticas sobre americanos que afirmam ser cristãos são extraídas de uma pesquisa da Gallup citada por Charles Colson, The Body (Dallas: Word Publishing, 1992), 46.
[113] George Barna, The Barna Report: What Americans Believe (Ventura CA: Regal, 1991), 292-294. 3. Bill Hall, "Is the Church Growth Movement ReallyWorking?" em Power Religion: The Selling Out of the Evangelical Church, ed. Michael Horton (Chicago: Moody Press, 1992), 142-143.
[114] Ver a discussão de Colson sobre esse ponto, The Body, 31.
[115] Leith Anderson, A Church for the Twenty-First Century (Minneapolis: Bethany House, 1992), 20.
[116] Idem, 21.
[117] Leith Anderson deu esse exemplo numa oficina, "Facing the Future", na convenção da Evangelical Press Association, 12 maio 1993, St. Paul, MN.
[118] Barna, Barna Report, 83-85, 292-294.
[119] Colson, The Body, 43-44.
[120] Ver Roger Lundin, The Culture of Interpretation: Christian Faith and the Postmodern World (Grand Rapids,MI: Eerdmans, 1993), 5-6.
[121] Sobre as várias manifestações da mentalidade de poder na igreja, ver Michael Horton, ed., Power Religion: The Selling Out of the Evangelical Church (Chicago: Moody Press, 1992).
[122] Ver, por exemplo, Alister E. McGrath, Luther's Theology of the Cross (Oxford: Basil Blackwell, 1985).
[123] Colson, The Body, 44-47. O termo "hot-tub religion" vem de J. I. Packer.
[124] Ver Robert Brow, "The Evangelical Megashift", Christianity Today, 19 fevereiro 1990, 12-14.
[125] "Theology at a Glance", Modern Reformation, janeiro/fevereiro 1993, 33.
[126] Michael S. Horton, "How Wide Is God's Mercy" Modern Reformation, janeiro/fevereiro 1993, 8.
[127] Michael S. Horton, "What is theMegashift?" Modern Reformation, janeiro/fevereiro 1993, 1.
[128] Ernest Gellner, Postmodernism, Reason and Religion (London: Routledge, 1992), 96.

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