Com alguma precisão o século 20 poderia ser chamado de um século de anarquia teológica. Há muito liberais e sectários rejeitaram muitos dos princípios fundamentais da ortodoxia cristã. Porém, mais recentemente, acadêmicos evangélicos professos têm defendido versões revisionistas de numerosas doutrinas. Uma revisão da doutrina de Deus tem sido defendida por proponentes do “teísmo aberto”. Uma revisão da escatologia tem sido advogada por adeptos do preterismo pleno. Versões revisadas das doutrinas da justificação e do Sola Fide foram defendidas por proponentes de diversas “novas perspectivas” sobre Paulo. Frequentemente os revisionistas afirmam estar reafirmando uma visão mais clássica. Entretanto, os críticos geralmente têm sido rápidos em apontar que as revisões, na verdade, são distorções.
Ironicamente, surgiu no protestantismo uma doutrina similarmente revisionista do Sola Scriptura, mas, ao contrário, da doutrina revisionista do Sola Fide, a doutrina revisionista do Sola Scriptura causou pouca controvérsia entre os herdeiros da Reforma. Uma das razões pelas quais houve pouca controvérsia a respeito dessa doutrina revisionista é que, gradualmente, ela vem suplantando a doutrina da Reforma por séculos. De fato, em muitos segmentos do mundo evangélico a doutrina revisionista é, de longe, a visão que predomina agora. Muitos afirmam que esta doutrina revisionista é a doutrina da Reforma. Contudo, como as doutrinas revisionistas do Sola Fide, a doutrina revisionista do Sola Scriptura é realmente uma distorção da doutrina da Reforma.
A adoção da doutrina revisionista do Sola Scriptura nas igrejas protestantes resultou em inúmeros problemas bíblicos, teológicos e práticos. Esses problemas se tornaram o centro da atenção nos últimos anos, já que inúmeros protestantes se converteram ao catolicismo romano e à ortodoxia oriental, alegando que a sua conversão se deveu, em grande parte, à conclusão de que a doutrina do Sola Scriptura era indefensável. Os apologistas católicos e ortodoxos orientais rapidamente aproveitaram a situação, publicando inúmeros livros e artigos dedicados à crítica da doutrina do Sola Scriptura. No entanto, uma questão que nem os convertidos nem os apologistas parecem entender é que a doutrina que eles estão criticando e rejeitando é a doutrina revisionista do Sola Scriptura, e não a doutrina clássica da Reforma. Para entender a diferença, é preciso algum contexto histórico.
Observações Históricas
Parte da dificuldade em compreender a doutrina reformada do Sola Scriptura se deve ao fato de que o debate histórico muitas vezes é enquadrado, de modo simplista, em termos de “Escritura versus tradição”. É dito que os protestantes ensinam “somente as Escrituras”, enquanto os católicos romanos ensinam “Escritura mais tradição”. No entanto, essa não é uma imagem acurada da realidade histórica. O debate deve ser entendido realmente em termos de conceitos concorrentes acerca da relação entre a Escritura e a tradição, e há mais de dois desses conceitos na história da igreja. Para entender a doutrina reformada do Sola Scriptura devemos entender o contexto histórico de forma mais precisa.
O debate da Reforma sobre o Sola Scriptura não ocorreu num vácuo. Foi a continuação de um longo debate medieval a respeito do relacionamento entre a Escritura e a tradição e sobre o significado da própria “tradição”. Nos primeiros quatro séculos, os pais da igreja ensinaram uma visão bem consistente da autoridade. A única fonte da revelação divina e a norma doutrinária autorizada foram entendidas como o Antigo Testamento, juntamente com a doutrina apostólica, que havia sido colocada por escrito no Novo Testamento. A Escritura deveria ser interpretada na e pela igreja dentro do contexto da regula fidei (regra de fé), mas nem a igreja nem a regula fidei foram consideradas como fontes secundárias suplementares de revelação. A igreja era a intérprete da revelação divina na Escritura, e a regula fidei era o contexto hermenêutico, mas somente as Escrituras eram a Palavra de Deus. Heiko Oberman (1930–2001) denominou este conceito de revelação única “Tradição 1”.[i]
As primeiras sugestões de um conceito de tradição de duas fontes, um conceito segundo o qual a tradição é entendida como uma segunda fonte de revelação que complementa a revelação bíblica, apareceu no 5º século, nos escritos de Basílio e de Agostinho. Oberman descreve esse conceito de tradição de duas fontes como “Tradição 2” (O professor Oberman tinha muitos dons. Aparentemente, a habilidade de cunhar rótulos atraentes não era um deles). Não é absolutamente correto que ou Basílio ou Agostinho ensinaram a visão das duas fontes, mas o fato de que isso é insinuado nos seus escritos garantiu que essa posição seria encontrada na Idade Média. Isso levaria tempo, porém, durante a maior parte da Idade Média a visão dominante era a Tradição 1, a posição da igreja primitiva. O início de um movimento forte em direção à Tradição 2 não começou com seriedade até o século 12. A mudança decisiva foi alcançada no século 14, nos escritos de Guilherme de Occam. Ele foi um dos primeiros teólogos medievais, senão o primeiro, a abraçar explicitamente a visão de duas fontes da revelação. A partir do século 14, então, testemunhamos o desenvolvimento paralelo de dois pontos de vista opostos: Tradição 1 e Tradição 2. É no contexto desse debate medieval em curso que a Reforma ocorreu.
Quando o contexto medieval é mantido em vista, o debate da Reforma sobre o Sola Scriptura se torna muito mais claro. Os reformadores não inventaram uma doutrina completamente nova. Eles deram continuidade a um debate ocorrendo há séculos. Eles afirmaram a Tradição 1 em seu contexto histórico particular para combater os resultados da Tradição 2 dentro da Igreja Católica Romana. Os reformadores magisteriais argumentaram que a Escritura era a única fonte de revelação, que ela deve ser interpretada na igreja e pela igreja, e que ela deve ser interpretada no contexto da regula fidei. Eles insistiram em retornar à doutrina antiga e, à medida que a Tradição 1 se tornou cada vez mais identificada com sua causa protestante, Roma reagiu se movendo para a Tradição 2, e, eventualmente, a adotou oficialmente no Concílio de Trento. (Roma já desenvolveu uma visão que Oberman chamou de “Tradição 3”, na qual o “Magisterium do momento” é entendido como a única verdadeira fonte de revelação, mas essa questão está além do escopo deste breve ensaio).
Ao mesmo tempo em que os reformadores magisteriais estavam advogando um retorno à Tradição 1 (Sola Scriptura), vários reformadores radicais pediam a rejeição da Tradição 1 e da Tradição 2, e a adoção de uma compreensão completamente nova da Escritura e da tradição. Eles argumentaram que a Escritura não era apenas a única autoridade infalível, mas que era a única autoridade. A autoridade verdadeira, mas subordinada, da igreja e da regula fidei, foi completamente rejeitada. De acordo com essa visão (Tradição 0), não existe um sentido real no qual a tradição tenha qualquer autoridade. Em vez disso, o crente individual não exige nada além do Espírito Santo e da Bíblia.[ii]
Nos Estados Unidos, durante o século 18, essa visão individualista da reforma radical foi combinada com o racionalismo do Iluminismo e o populismo da nova democracia, para criar uma versão radical da Tradição 0, que quase suplantou a doutrina da Reforma do Sola Scriptura (Tradição 1). Esta nova doutrina, que pode ser denominada “solo” Scriptura, em vez de Sola Scriptura, ataca a autoridade subordinada e legítima da igreja e dos credos ecumênicos da igreja. Infelizmente, muitos de seus adeptos acreditam erroneamente e ensinam aos outros que é a doutrina de Lutero e Calvino.
A Doutrina Reformada do Sola Scriptura
Para resumir a doutrina reformada do Sola Scriptura ou a doutrina da Reforma da relação entre a Escritura e a tradição, podemos afirmar que a Escritura deve ser entendida como a única fonte da revelação divina. É a única norma inspirada, infalível, final e autoritativa de fé e prática. Deve ser interpretada na e pela igreja, e deve ser interpretada dentro do contexto hermenêutico da regra de fé. Como observa Richard Müller, a doutrina reformada do Sola Scriptura nunca quis dizer, “toda a teologia deve ser construída de novo pelo exegeta solitário que enfrenta o texto nu, sem referência à tradição e interpretação da igreja”.[iii] Que esta é a doutrina reformada da Escritura, tradição e autoridade pode ser demonstrada por um exame dos escritos dos reformadores, sendo que apenas uma amostragem será mencionada aqui.
Martinho Lutero é bem conhecido pela sua declaração na Dieta de Worms: “A menos que eu seja convencido pela Escritura e por uma razão simples, não aceito a autoridade dos papas e dos concílios, porque eles se contradizem. A minha consciência é cativa à Palavra de Deus”. Muitos apontam para essa afirmação como prova de que Lutero rejeitou a Tradição 1, o ensino da igreja primitiva. Mas outros fatores devem ser considerados antes de se chegar a tal conclusão, ou seja, o contexto histórico dessa afirmação e o fato de que Lutero afirmou e escreveu muito mais sobre o assunto. A título de um pequeno exemplo, numa carta de 1532, enviada ao duque Alberto da Prússia sobre a doutrina da presença real de Cristo na Ceia do Senhor, Lutero escreveu o seguinte:
Além disso, esse artigo foi claramente crido e sustentado desde o início da Igreja Cristã até esta hora — um testemunho de toda a Igreja Cristã que, se não tivéssemos nada além, deveria ser suficiente para nós. Pois é perigoso e terrível ouvir ou acreditar em qualquer coisa contra o testemunho unido, contra a fé e a doutrina de toda a santa Igreja Cristã, uma vez que tal tem sido sustentado há cerca de mil e quinhentos anos, unanimemente, desde o início, em todo o mundo. Quem quer que duvide disso é o mesmo que acreditar em nenhuma Igreja Cristã, e condena, portanto, não só toda a Igreja Cristã como uma heresia maldita, mas também a Cristo e a todos os apóstolos e profetas.[iv]
O erudito luterano de segunda geração, Martin Chemnitz (1522–1586), escreve em linhas semelhantes em sua obra Examination of the Council of Trent:
Isso também é certo, que ninguém deve confiar em sua própria sabedoria na interpretação da Escritura, nem mesmo das passagens claras… Nós também, com gratidão e reverência, utilizamos os labores dos pais que, por meio dos seus comentários, esclareceram de forma proveitosamente muitas passagens da Escritura. E nós confessamos que somos grandemente confirmados pelos testemunhos da igreja antiga na verdadeira e sólida compreensão da Escritura. Não aprovamos se alguém inventa para si mesmo um significado que entra em conflito com toda a antiguidade, e para o qual, claramente, não existem testemunhos da igreja.[v]
Outro dos reformadores magisteriais que abordou esta questão foi João Calvino. Na edição de 1559 das suas Institutas da Religião Cristã, por exemplo, ele escreve:
Desta forma, abraçamos e reverenciamos de bom grado os santos concílios antigos, como os de Nicéia, Constantinopla, Éfeso I, Calcedônia e outros, que se preocupavam em refutar erros, na medida em que se relacionam com os ensinamentos da fé. Porque eles não contêm nada além da exposição pura e genuína das Escrituras, que os santos pais aplicaram com prudência espiritual, para esmagar os inimigos da religião que se levantaram.[vi]
E ainda:
De fato, admitimos de bom grado, se houver alguma discussão sobre alguma doutrina, que o melhor remédio e o mais seguro é que um sínodo de bispos verdadeiros seja convocado, onde a doutrina em questão poderá ser examinada.[vii]
Para resumir a visão protestante tradicional, as palavras do teólogo reformado do século 19, Charles Hodge (1797–1878) são apropriadas:
Novamente, os protestantes admitem que, como existiu uma ininterrupta tradição da verdade do protoevangelium até o fim de Apocalipse, houve um fluxo de ensino tradicional que atravessa a Igreja Cristã desde o dia de Pentecostes até o presente. Esta tradição é até agora uma regra de fé que nada contrário a ela pode ser verdade. Os cristãos não ficam isolados, cada um segundo o seu próprio credo. Eles constituem um corpo, tendo um credo comum. Rejeitar esse credo, ou qualquer de suas partes, é a rejeição da comunhão dos cristãos, incompatível com a comunhão dos santos ou a adesão ao corpo de Cristo. Em outras palavras, os protestantes admitem que existe uma fé comum da Igreja, que nenhum homem tem a liberdade de rejeitar e que nenhum homem pode rejeitar e ser cristão.[viii]
A Doutrina Revisionista do “Solo” Scriptura
Em contraste com a doutrina da Reforma do Sola Scriptura, a doutrina revisionista do “Solo” Scriptura é marcada pelo individualismo radical e pela rejeição da autoridade da Igreja e dos credos ecumênicos. Se compararmos as declarações feitas pelos defensores da doutrina do “Solo” Scriptura com as afirmações dos cristãos reformados acima, a diferença se tornará evidente imediatamente. Também é importante observar a origem desta doutrina no início dos Estados Unidos. Como observa Nathan O. Hatch, os primeiros americanos a empurrar o direito de julgamento privado contra a Igreja e os credos foram ministros pouco ortodoxos.[ix]
O ministro liberal Simeon Howard (1733–1804), por exemplo, aconselhou os pastores a “deixar de lado todo o apego aos sistemas humanos, toda a parcialidade aos nomes, concílios e igrejas, e a perguntar honestamente, o que dizem as Escrituras?” Em seu próprio esforço para derrubar o cristianismo ortodoxo, Charles Beecher (1815–1900) denunciou o “poder do credo” e defendeu “a Bíblia, toda a Bíblia e nada além da Bíblia”. O ministro universalista A. B. Grosh (morto em 1884) declarou de maneira semelhante: “Na fé religiosa temos apenas um Pai e um Mestre, e a Bíblia, a Bíblia, é o nosso único livro credal reconhecido”.
A versão radical americana do “Solo” Scriptura atingiu sua plena expressão nos escritos dos restauracionistas, ao aplicarem os princípios do populismo democrático ao cristianismo iluminista. Em 1809, o restauracionista Elias Smith (1769–1846) proclamou: “Aventure-se a ser tão independente nos assuntos da religião, como aqueles que respeitam o governo em que você vive”. Barton Stone (1772–1844) declarou que o passado deveria ser “consignado para o monte de lixo sobre o qual Cristo foi crucificado”. Alexander Campbell (1788–1866) tornou muito clara a sua visão individualista da Escritura, declarando: “Eu tenho me esforçado para ler as Escrituras como se ninguém as tivesse lido antes de mim e eu evito lê-las hoje, por meio dos meus próprios pontos de vista de ontem, ou de uma semana, assim como eu me coloco contra a influência de qualquer nome, autoridade ou sistema estrangeiro”. Como o teólogo reformado de Princeton, Samuel Miller (1769–1850), observou corretamente: “geralmente, os opositores mais fervorosos [dos credos] foram latitudinários e hereges”.[x]
Porque o “Solo” Scriptura Deve Ser Rejeitado
A doutrina revisionista do “Solo” Scriptura se tornou tão arraigada na igreja moderna que muitos cristãos protestantes hoje simpatizarão mais com os sentimentos dos clérigos liberais e sectários citados acima do que com o ensino dos reformadores. Entretanto, a doutrina do “Solo” Scriptura é tão problemática e perigosa hoje quanto nos séculos anteriores. Ela permanece antibíblica, ilógica e inviável. Aqui eu abordarei alguns dos problemas mais óbvios.
O problema fundamental com o “Solo” Scriptura é que isso resulta em autonomia. Isso resulta em que a autoridade final é colocada em algum lugar além da Palavra de Deus. Ela compartilha esse problema com a doutrina católica romana. A única diferença é que a doutrina católica romana coloca a autoridade final na igreja, enquanto o “Solo” Scriptura coloca a autoridade final em cada crente individual. Toda doutrina e prática é medida em relação a um padrão final, e esse padrão final é o julgamento pessoal do indivíduo sobre o que é e o que não é bíblico. O resultado é subjetivismo e relativismo. No entanto, o apelo dos reformadores à “Escritura somente” nunca pretendeu significar “somente eu”.
A própria Bíblia não ensina o “Solo” Scriptura. Cristo estabeleceu sua igreja com uma estrutura de autoridade e dá à sua igreja aqueles que são especialmente apontados para o ministério da Palavra (Atos 6.2–4). Quando disputas surgiram, os apóstolos não instruíram cada crente individual para ir para casa e decidir por si e para si mesmo o que era correto. Eles se reuniram num concílio (Atos 15.6–29). Mesmo o bem conhecido exemplo dos Bereianos não dá apoio ao “Solo” Scriptura (ver Atos 17.10,11; ver os versículos 1–9). Paulo não instruiu cada indivíduo bereiano a ir para casa e decidir por si e para si mesmo se o que ele estava ensinando era verdade. Em vez disso, os bereianos leram e estudaram as Escrituras do Antigo Testamento, dia a dia, com Paulo presente, para ver se o seu ensinamento sobre o Messias era verdadeiro.
Em termos hermenêuticos, a doutrina do “Solo” Scriptura é incorrigível. Com o “Solo” Scriptura a interpretação da Escritura se torna subjetiva e relativa, não havendo possibilidade de resolução de diferenças. É indiscutível que existem numerosas interpretações diferentes de várias partes da Escritura. Os defensores do “Solo” Scriptura são informados de que essas diferentes interpretações podem ser resolvidas simplesmente por um apelo à Escritura. Mas como o problema das diferentes interpretações pode ser resolvido por um apelo a outra interpretação? Todos os apelos à Escritura são apelos às interpretações da Escritura. A única questão real é: qual interpretação? Pessoas com diferentes interpretações da Escritura não podem colocar uma Bíblia sobre uma mesa e pedir que ela resolva suas diferenças. Para que a Escritura funcione como uma autoridade, ela deve ser lida e interpretada por alguém. De acordo com o “Solo” Scriptura, esse alguém é cada indivíduo. Assim, em última análise, existem tantas autoridades finais quanto há intérpretes humanos. Isso é subjetivismo e relativismo descontrolado. Os defensores do “Solo” Scriptura condenam, com razão, a tirania hermenêutica de Roma, mas a solução para a tirania hermenêutica não é a anarquia hermenêutica.
A doutrina do “Solo” Scriptura também enfrenta problemas históricos devido ao fato de não poder ser reconciliada com a realidade existente nas primeiras décadas e séculos da igreja. Se o “Solo” Scriptura fosse verdadeiro, grande parte da igreja não teria tido nenhum padrão da verdade por muitos anos. No primeiro século não se podia caminhar até à livraria cristã local e comprar um exemplar da Bíblia. Os manuscritos tiveram de ser copiados à mão e não foram encontrados na casa de todos os crentes. Os primeiros livros do Novo Testamento nem sequer começaram a ser escritos até pelo menos dez anos após a morte de Cristo, e alguns não foram escritos até várias décadas depois de Cristo. Gradualmente, algumas igrejas obtiveram cópias de alguns livros, enquanto outras igrejas tinham cópias de outros. Demorou muitos anos até que o Novo Testamento, como o conhecemos, fosse reunido e disponibilizado como um todo. Mesmo assim, também foi copiado à mão, de maneira que não estava disponível na casa de cada cristão individual. Se o indivíduo sozinho deve julgar e avaliar tudo por si e para si mesmo, conferindo na Escritura, como os defensores do “Solo” Scriptura propõem, como isso poderia ter funcionado nas primeiras décadas da igreja antes da conclusão do Novo Testamento?
Um dos problemas mais autoevidentes relacionados à doutrina do “Solo” Scriptura é a questão do cânon. Se alguém diz que a Escritura é a única autoridade, é legítimo perguntar como, então, definimos o que é e o que não é “Escritura”. Os defensores do “Solo” Scriptura afirmam que a Escritura é autoritativa, mas não podem dizer com qualquer autoridade o que a Escritura é. O índice de livros na primeira página da Bíblia não é um texto inspirado escrito por um profeta ou por um apóstolo. Num sentido muito real, é um credo da Igreja declarando o que ela acredita ser o conteúdo da Escritura. Uma maneira de ilustrar o problema com o qual o “Solo” Scriptura se defronta, em conexão com o cânon, é simplesmente perguntar o seguinte: como o “Solo” Scriptura lidaria com um Marcião moderno? Por exemplo, como um proponente do “Solo” Scriptura argumenta com uma pessoa que afirmou que o verdadeiro Novo Testamento inclui apenas os livros de Lucas, Atos, Romanos e Apocalipse? Ele não pode apelar para a igreja, para a história ou para a tradição. Um adepto consistente do “Solo” Scriptura não teria como responder a essa visão, uma vez que, como um defensor tão consistente me disse numa correspondência pessoal, é direito e dever de cada cristão individual determinar por si e para si mesmo a canonicidade de cada livro bíblico. Esta é a única posição consistente para um proponente do “Solo” Scriptura, mas é autodestrutiva, pois destrói qualquer noção objetiva da Escritura. Por exemplo, se cada crente determina por si mesmo se Romanos, de fato, deve ser considerado um livro canônico e autoritativo, ninguém pode apelar à autoridade bíblica de Romanos.
A questão do cânon não é o único problema teológico causado pelo “Solo” Scriptura. Outro sério problema é o fato de que a adoção de “Solo” Scriptura destrói a possibilidade de se ter qualquer definição objetiva do que o cristianismo é e do que não é. “Solo” Scriptura destrói os próprios conceitos de ortodoxia e heresia. Se a autoridade dos credos ecumênicos é rejeitada e se cada crente individual determina todas as questões de doutrina por si e para si mesmo, então, as definições de ortodoxia e heresia são completamente relativas e subjetivas. Um homem julga a doutrina da Trindade como bíblica. Outro a julga como antibíblica. Um julga o teísmo como bíblico. Outro julga como não bíblico. O mesmo é verdade em relação a todas as outras doutrinas. Cada homem define o cristianismo como parecer correto aos seus próprios olhos.
Finalmente, deve-se perceber que o “Solo” Scriptura ignora a realidade. A Bíblia simplesmente não caiu do céu sobre o nosso colo. Não poderíamos nem mesmo ler a Bíblia por nós mesmos, se não fosse pelo trabalho de muitos outros, incluindo arqueólogos, linguistas, escribas, críticos textuais, historiadores, tradutores e muitos mais. Se o “Solo” Scriptura fosse verdadeiro, seria possível dar manuscritos antigos não traduzidos em hebraico e em grego de textos bíblicos, apócrifos e pseudoepígrafos a um membro de uma tribo isolada em algum lugar da terra, e sem a assistência de ninguém, esse indivíduo deveria poder aprender as línguas hebraica e grega, ler os vários manuscritos, determinar quais deles são canônicos e, então, adquirir uma compreensão ortodoxa da fé cristã. No entanto, a razão pela qual isso não é possível é porque o “Solo” Scriptura não é verdadeiro. É uma distorção antibíblica da verdade.
A doutrina revisionista do “Solo” Scriptura tem sido uma fonte de grande prejuízo para a causa de Cristo. Os reformadores magisteriais estavam corretos ao rejeitarem as primeiras versões que surgiram no ensino de alguns radicais. Os herdeiros contemporâneos dos reformadores magisteriais devem segui-los aqui. A luta deve ser combatida em duas frentes. Devemos rejeitar não apenas a doutrina católica romana (seja a doutrina de duas fontes da Tradição 2 ou a doutrina sola ecclesia da Tradição 3), que coloca a autoridade autônoma final na igreja. Também devemos rejeitar a doutrina revisionista do “Solo” Scriptura, que coloca a autoridade autônoma final nas mãos de cada indivíduo.
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Notas:
[i] Heiko Oberman. The Dawn of the Reformation. Edinburgh, UK: T&T Clark, 1986. p. 280.
[ii] Cf. Alister McGrath. Reformation Thought. Oxford, UK: Blackwell, p. 144.
[iii] Richard A. Müller. Post-Reformation Reformed Dogmatics. Vol. 2. Grand rapids, MI: Baker, 1993. p. 51.
[iv] Phillip Schaff. The Principle of Protestantism. Philadelphia: United Church Press, 1964. pp. 116–117, nota de rodapé.
[v] Martin Chemnitz. Examination of the Council of Trent. St. Louis: Concordia Publishing House, 1971. pp. 208–209.
[vi] John Calvin. The Institutes of Christian Religion. 4.9.8.
[vii] Ibid. 4.9.13.
[viii] Charles Hodge. Systematic Theology. Vol. 1. pp. 113–114.
[ix] Conferir o pano de fundo para o surgimento da doutrina do “Solo” Scriptura em Nathan O. Hatch. “Sola Scriptura and Novus Ordo Seclorum”, In: N. Hatch e Mark Noll (Eds.). The Bible in America. pp. 59–78.
[x] Samuel Miller. The Utility and Importance of Creeds and Confessions. Greenville, SC: A Press, 1991. p. 15.
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Autor: Keith A. Mathison
Fonte: “Solo Scriptura: The Difference a Vowel Makes.” Modern Reformation 16/2 (March/April 2007), pp. 25-29
Tradução: Rev. Alan Rennê Alexandrino Lima, em 22/09/2017.
Divulgação: Bereianos
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2 comentários
Nesse assunto, eu sempre concordei com a ideia do texto, mas uma dúvida sempre me pegou: o segundo concílio de Nicéia, no qual foi estabelecido e formalizado o culto a imagens que em geral é condenado por nós protestantes. Ou seja, durante esses séculos a posição praticamente unânime foi a do culto as imagens e a nossa posição reformada ficou marginalizada praticamente desaparecida até que foi reavivada na reforma. Para mim, isso talvez seja um exemplo de que nem sempre a unanimidade corresponde a verdade.
ResponderMuito bom. Parabéns pelo post!
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