A Alma do Mundo — A experiência do sagrado contra o ataque dos ateísmos contemporâneos. Autor: Roger Scruton. Rio de Janeiro. Ed. Record, 2017.
Confesso que essa foi a publicação que mais aguardei neste ano. Roger Scruton é um dos meus filósofos contemporâneos favoritos. Meu contato com os textos do filósofo se deram ainda na faculdade, quando comecei a ler sobre conservadorismo. Desde então tenho acompanhado suas publicações.
Scruton dispensa apresentações, é simplesmente um dos mais importantes filósofos do nosso tempo. Ícone do pensamento político e filosófico conservador; livros como “O que é Conservadorismo” e “Como ser um Conservador” são títulos que foram publicados no Brasil e tem sido fundamentais para um estudo sério do conservadorismo.
Diante de um massivo interesse no Brasil pelo conservadorismo, Scruton é matéria importante. Ninguém, de fato, terá uma madura compreensão do conservadorismo em nosso tempo sem ler Roger Scruton. As posições de Scruton dialogam com uma crença teísta, não necessariamente cristã em todos os momentos, como ele mesmo diz na introdução do livro. Há diálogos com cristianismo, judaísmo, islamismo e também com a sabedoria oriental. Mas, deve-se frisar, tais diálogos do autor não são uma assinatura comprometedora com qualquer religião. Isso também nos deve ficar claro, por exemplo: muitos conservadores dialogam com o cristianismo, defendendo que sua cosmovisão foi necessária para a formação do Ocidente (Vide “A Criação do Ocidente” de Christopher Dawson), mas, não necessariamente abraçam a fé cristã, como cristãos confessos.
Ler a “Alma do Mundo” foi uma experiência interessante. O trabalho do autor nesse texto é profundamente metafísico e desenvolve e relembra muito do que ele já disse em outros de seus trabalhos filosóficos. O livro é uma abordagem a experiência do sagrado. Algo necessário e inevitável para a existência. Scruton se valerá de campos da filosofia como: epistemologia, filosofia da mente, filosofia da arte, filosofia da religião, teologia, filosofia da música, filosofia política, filosofia do direito e arquitetura.
O livro é fruto de uma série de palestras que Scruton ministrou na Faculdade de Teologia da Universidade de Cambridge em 2011. O autor, então, nos diz o que quer com o livro:
Minha intensão foi alinhavar uma série de discussões filosóficas sobre mente, arte, música, política, e direito para definir o que está em risco nos debates contemporâneos a respeito da natureza e do fundamento da crença religiosa (p. 7).
A discussão que Scruton nos traz é de grande importância e profundidade filosófica. O leitor que não tiver certa familiaridade com tais campos da filosofia pode ter dificuldades de entender os conceitos e argumentos desenvolvidos pelo autor. Algumas leituras introdutórias a filosofia da mente podem ajudar muito a entender a questão do Eu-Você debatida pelo filósofo. A divisão de Scruton para a elaboração dos argumentos — em minha opinião — é magistral. O campo metafísico que é o grande cenáculo no qual se dá os poderosos argumentos do autor, favorece uma visão teísta do mundo. Por esse motivo considero “A Alma do Mundo” uma ferramenta muito útil para quem gosta de ler sobre cosmovisão.
Vejo meus argumentos como uma maneira de dar espaço, em alguma medida, a uma visão religiosa de mundo, mesmo que eu evite a defesa ou prática da doutrina de uma fé em especial. Aqui ou ali faço algumas referências; mas, em sua maioria, o modo de raciocinar é informal, e as alusões a outros escritores são mais no estilo de uma conversa do que propriamente no estilo de um pesquisador, (ibdem).
O autor diz em vários momentos que sua obra é uma continuação de “O Rosto de Deus”[i]. Mas, as obras são independentes. Mesmo dizendo Scruton, que seu raciocínio é informal, isso não quer dizer que é simplista, pelo contrário, em vários momentos o livro é denso e requer do leitor paciência e interação dos campos que estão sendo trabalhados pelo filósofo.
O livro está dividido em oito capítulos que transcorrerão pelos campos filosóficos ditos anteriormente, para o leitor que já habitualmente lê Scruton, muito do que o livro argumenta já foi dito em outras obras como: Beleza, Desejo Sexual, Coração Devotado à Morte. Estes são apenas alguns exemplos, e todos foram publicados em português.
Quando digo que a obra de Scruton é solidamente metafísica, quero dizer que as grandes questões levantadas para entender a estrutura ontológica do mundo, ou sua realidade vai além do físico, isso se propõe na fala do autor que acredita que “Se existe algo como (nas palavras de Eliot) ‘o ponto de intersecção do eterno com o tempo’, isso não pode ser descoberto pela física”, (p.170).
Continua nos dizendo o autor:
Crenças verdadeiras e percepções verídicas são crenças e percepções que ligam o organismo ao seu ambiente de maneira correta, para assim dar informações confiáveis sobre as suas causas, (p. 18).
Fica perceptível nessa citação que Scruton defende que as crenças são transcendentais e, assim também, fundamentais para a compreensão da realidade. Não há como ter uma correta percepção do mundo sem uma ontologia que estruturalmente é transcendente e imanente.
Ilusões e falsas crenças exemplificam “correntes desviantes” e devem ser explicadas de alguma outra maneira que não seja por referência aos objetos representados nelas próprias — como os sonhos são explicados, por exemplo. Por esse ponto de vista, a nossa ontologia consiste de todos os itens que são citados na verdadeira explicação das nossas crenças. Elas não contém as criaturas dos nossos sonhos ou os personagens da ficção nem contém deuses e os espíritos que assombram nossas vidas, por mais que nos sejam queridos e por mais impossível que possa ser nos libertar da crença na sua existência, (p. 18).
Scruton nos adverte sobre a crise que se instaura no mundo irreligioso, isso resultará numa série de problemas que desembocarão num caos social e cultural, isso como fator originado na crise religiosa do homem. A verdadeira religião, então, promoverá uma correta relação com a realidade e, isso por meio do que é sagrado.
A verdadeira questão para a religião no nosso tempo não é como extirpar o sagrado, mas como redescobri-lo, para que o momento da intersubjetividade pura, no qual nada de concreto aparece, mas no qual tudo fica suspenso no aqui e no agora, possa existir na forma pura e dirigida por Deus. Apenas quando estivermos certos de que esse momento da presença verdadeira existe no ser humano que experimenta, podemos então fazer a pergunta se isso é ou não uma revelação verdadeira — um momento não apenas da fé, mas de conhecimento e de um dom da graça, (p.33).
Então, uma correta percepção ontológica do humano, que não desprezará, mas, talvez o substitua por falsas crenças e ilusões — a questão que venha limitar o humano a mero presente (imanência) e ignorar a questão transcendente. Como diz o autor:
Seria de extrema ajuda, neste ponto do nosso raciocínio, registrar um protesto contra aquilo que Mary Midgley chama de esquema do “nada além”. Existe um hábito disseminado de declarar as realidades emergentes como algo que são “nada além” de um animal humano; a lei é “nada além” de relações de poder; o amor sexual é “nada além” do que a estratégia genética dominante descrita por Maynard Smith; a Mona Lisa é “nada além” do que pigmentos espalhados em uma tela; a Nona Sinfonia é “nada além” do que uma sequência de sons afinados com timbres variados. E por aí vai. Livrar-se desse hábito é, a meu ver, a verdadeira meta da filosofia. E, se conseguirmos nos livrar dele quando estamos lidando com as coisas pequeninas — sinfonias, quadros, pessoas -, conseguiremos nos livrar disso quando lidarmos também com as grandes coisas: notavelmente, quando lidamos com o mundo como um todo. E, então, podemos concluir que isso é tão absurdo de se dizer como se o mundo não fosse nada além da ordem da natureza, assim como a física o descreve, e afirmar que a Mona Lisa é nada além do que pigmentos espalhados. Chegar a essa conclusão é o primeiro passo para a busca por Deus, (pp. 50,51).
Esse argumento de Scruton a favor da importância do sagrado como fator preponderante para uma conservação da existência humana não apenas como algo limitado ao físico, mas, que possui realidade integral na espiritualidade, solidifica o que já dissemos: Scruton magistralmente se vale de vários campos filosóficos para argumentar que sem a metafísica o sagrado é aniquilado. é com o sagrado que a metafísica é melhor compreendida. Isso ocorre como uma circularidade na argumentação, mas, sim comprova que sem uma realidade que vai além do físico, não temos justificativa para a beleza, para o amor, para amizade, para a música, para a arte. Mas, isso vai também para as relações humanas que nos mostram transcendência e não apenas imanência.
Acho coerente o pensamento de Scruton que reverbera Burke, quando afirma que se as relações humanas forem reduzidas a meros contratos sociais, temos uma quebra, de fato, do que envolve a figura do sagrado na existência humana.
O “Vínculo Transcendente” de que trata Scruton em “A Alma do Mundo” é coerente a questão da Lebenswelt como um conceito de transcendência que é presente na realidade das coisas, não reduzindo-as a imagem em si, mas, considerando questões metafísicas ou, podemos dizer, transcendentais que envolvem a realidade.
Dada essa questão Scruton aponta que as relações humanas devem se dar dentro de um contexto de aliança ou votos, pontuando a importância de uma herança de fontes anteriores e velada ou conservada também para posteridade.
E, então, o princípio de conservação não está ligado apenas ao passado, mas, ao presente e ao futuro. Defende Scruton que, “Em todas as sociedades duráveis, insisto, a ordem da aliança é sobrepujada por uma outra ordem, na qual as obrigações são transcendentes, os vínculos são sagrados e os contratos, dissolvidos em votos” (p.112).
Isso mostra que a cosmovisão não pode romper com o sagrado, de um ponto de vista teológico, a cosmovisão não pode romper com a estrutura da realidade estabelecida por Deus na ordem da existência.
No capítulo 6 em que Scruton trata sobre “Encarando a Terra”, o filósofo dedica tempo a questão arquitetônica como meio de expressão da identidade comunitária e individual. Bem como a importância dos templos no centro das cidades antigas como representação icônica da presença da divindade ali. Uma outra questão interessante que Scruton toca, como continuidade do seu livro “O Rosto de Deus”, é a descaracterização da beleza nas construções dos prédios. Mostrando que, a falta da beleza como fator expresso da identidade nas construções é resultado da supressão do rosto. Algo que deixa de existir no indivíduo e emerge para a sociedade.
Os prédios modernos não dialogam com o self, igualmente a adoção da não identidade humana caracterizada pelo contato com o divino, e este último pelo sagrado impõe a identidade como um ato criativo, e na verdade não haverá uma correta compreensão de si sem o contato com Deus. Defendendo a importância do mito de origem, Scruton mostra que a falta de rosto na arquitetura moderna, é um desdobramento do que vem acontecendo no indivíduo. Interessante notar uma alteração na filosofia da arte, que parte de uma questão antropológica — ou porque não dizer da filosofia da religião.
Nos diz Scruton:
Entre os conceitos mais interessantes que informam e estruturam o mundo humano está o do rosto. A ciência do ser humano não tem nenhuma utilidade verdadeira para os rostos. Claro que ela distingue todos os comportamentos do ser humano e sua disposição no espaço. Ela identifica que existe o reconhecimento do rosto e o seu oposto, isto é, a prosopagnosia. Mas ela não reconhece aquilo que torna os rostos tão importantes para nós, isto é, o fato de que eles são a forma e a imagem exteriores da alma, a lâmpada acesa em nosso mundo pelo sujeito que está oculto. É por meio do entendimento do rosto que começamos a ver como os sujeitos podem se conhecer no mundo dos objetos (p. 114).
A questão da identidade no rosto trabalhada por Scruton na questão da arquitetura nos explica porque vivemos num caos arquitetônico em que a arquitetura moderna nos furta a beleza que é identitária, é rosto.
Então, Scruton também nos presenteia com algo maravilhoso sobre o sagrado e beleza na música:
Certamente devemos reconhecer que há uma grande diferença entre uma cultura musical baseada na audição séria sobre longos movimentos que abrigam um pensamento musical sofisticado e uma cultura musical baseada na audição de melodias conhecidas e previsíveis, apoiadas em ritmos mecânicos e harmonias pré-fabricadas, que rapidamente se exaurem no seu potencial musical bastante esparso. A ascensão de uma nova cultura de massa não aconteceu somente no domínio da música. Grandes mudanças sociais e políticas podem ser observadas nessa transição, (p. 170).
A crítica do filósofo continua indo para a evasão da beleza no mundo, porque quando não há conservação do belo, haverá consequentemente separação do sagrado. Então as culturas de massa não apenas plantaram a falta de rosto, mas, a falta de verdadeira beleza, impondo uma cultura relativista que furta a humanidade de verdadeiro sentido.
Então ele vai dizer que
Estamos profundamente preocupados com as mudanças na prática musical, do mesmo modo que Moisés ficou preocupado quando desceu da montanha e, ao ver a idolatria das massas, jogou as tábuas da lei no chão. Esse foi talvez o primeiro protesto registrado contra a “cultura de massa”, (p.172).
O que promove a cultura de massa? Ídolos cegos, mudos e surdos. A cultura de massa promove idolatria. E a idolatria — não esqueçamos — é a tentativa de mudança de rosto do sagrado. Diz o decálogo que Deus proibiu a adoração a outros deuses (Êxodo 20.1–3), mas, qual o motivo? Primeiro porque somente Deus é o Deus verdadeiro, segundo porque o que nos diz Hebreus 1.3 clareia a proibição dos dez mandamentos, Jesus é a imagem exata de Deus e não estatuas. Parafraseio Scruton: a idolatria furta o rosto do sagrado, porque o substitui por rostos sem vida.
O livro é grandioso, o leitor precisará de paciência para compreender. Necessitará de uma percepção ontológica da matéria que o filósofo está tratando. A alma do mundo está no sagrado. O livro é uma defesa poderosa da filosofia.
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Nota:
[i] O Rosto de Deus, publicado em português pela É Realizações.
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Autor: Rev. Thomas Magnum de Almeida
Fonte: Medium
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