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FRANCISCO DE ASSIS - O DUX DA TERCEIRA ERA
Na primeira parte desse trabalho, publicada há algumas semanas, procurei resumir um pouco da situação conflituosa que marcou a Baixa Idade Média e verificar o conflito entre uma ordem “natural” e a influência “sobrenatural” da Igreja, bem como os efeitos disso na ordem civil antes da Reforma Protestante. Em seguida, voltei a atenção para a obra do monge cistercience Joaquim de Fiori, que representou uma ruptura com a Filosofia da História de Agostinho, e como sua interpretação milenarista influenciou o pensamento de figuras importantes, seja imperadores, papas ou poetas como Dante Alighieri. É útil ressaltar que presentemente buscamos apresentar uma visão panorâmica do processo que conduziu à Revolução Civil, da qual a “divinização do estado” (assunto central no texto escrito por Olavo de Carvalho para o Diário do Comércio) é apenas uma das etapas, que será tratada objetivamente em breve. Por ora, mostraremos um personagem importante para a difusão das ideias de Fiori no pensamento Ocidental, que é Francisco de Assis, e uma ala de seus seguidores, os Franciscanos Espirituais. Em "História das Ideias Políticas – v. II, Idade Média até Tomás de Aquino," Eric Voegelin diz:
Em outras palavras, sem Francisco de Assis, a obra de Joaquim de Fiori não teria sido tão influente.
Do meu ponto de vista, vê-se pouco cristianismo genuíno em Francisco de Assis, ao passo que sobeja certo tipo de ascetismo pagão. Talvez seja correto compreender que o monge de Assis subverteu a “tradição” ascética do monasticismo cristão. Ao contrário do neoplatonismo predominante, que buscava uma experiência contemplativa na fuga transcendente do mundo, Francisco almejava a ascensão espiritual na relação dos homens com a Criação – natureza, animais e outros seres humanos – e em sua interpretação do ideal de pobreza. Francisco não buscava Deus fora do mundo, mas na experiência dentro dele.
O cristianismo começou a ser atacado pelo platonismo desde muito cedo. O gnosticismo, tema recorrente – e controverso – na obra de Voegelin, foi uma desastrada tentativa de síntese entre o platonismo e o cristianismo. Nessa heresia, o pecado não era visto como uma ofensa moral a Deus, mas como um problema estrutural da natureza, da carne (que, na concepção gnóstica, identifica-se essencialmente com o corpo) e do mundo material. Segundo essa visão, o mundo material seria a fonte do sofrimento, e o mundo espiritual, ou da Razão, o mundo superior. O ascetismo era a alternativa óbvia, de modo que a carne seria maltratada em favor do espírito. Ascetas eram comuns no Império Romano e sua influência na igreja primitiva é notável em personagens como a “santa" Melania, por exemplo. Melania não se banhava! Para ela, tal ato equivalia a “mimar a carne”, a qual se configurava, nas palavras dela, uma "fonte de prejuízo” [Robert T. Meyer, “Palladius: The Lausiac History”, p. 136]. Nem mesmo quando os médicos lhe recomendavam o banho por questões de saúde individual, ela não tomava. Macário de Alexandria tentava – creiam – não dormia! O eremita dormia ao relento com o intuito de não ceder ao sono. Em outra ocasião, ele se dirigiu a um pântano a fim de permitir que os insetos picassem seu corpo, uma vez que havia decidido punir a si mesmo por ter matado um mosquito. Quando um asceta de Tebas chamado Doroteu foi perguntado, "O que você está fazendo, Padre, matando seu corpo desta maneira?," ele respondeu, "Ele me mata; eu o mato". A auto-mortificação suicida era erroneamente denominada de santificação. O corpo, a “carne”, era o inimigo da santificação, devendo, pois, ser flagelado, enfaixado de espinhos e degradado no intuito de sobrelevar a "espiritualidade".
Em seu livro “Flight From Humanity”, R. J. Rushdoony desnuda toda a loucura do ascetismo influenciado pelo dualismo platônico:
Desde o terceiro século, depois de Plotino, o neoplatonismo evoluiu dentro do cristianismo através das ordens monásticas, que tentaram organizar as práticas dos primeiros ascetas. No começo, o monasticismo fortaleceu-se principalmente como uma resposta dialética à conversão do Império Romano ao cristianismo. Desconfiados do novo status do cristianismo no Império, muitos cristãos começaram a fugir para desertos. Com o tempo, essas ordens foram se organizando, filtrando as aberrações comportamentais mais flagrantes e hereges, sendo aceitas oficialmente dentro do corpo da Igreja. Todas as boas obras realizadas pelas ordens monásticas no Ocidente, especialmente a da Ordem Beneditina, são dignas de nota. Francisco de Assis é um herdeiro desse processo, ao mesmo tempo em que introduziu duas significativas mudanças nele: um misticismo naturalista e uma substituição da transcendência espiritual pelo ideal de pobreza. Ele não apenas herdou as práticas ascéticas, como talvez as tenha aprofundado um pouco.
Sobre o primeiro caso, Voegelin reconhece que
Evidentemente, o termo “naturalismo” não é adequado quando comparado ao naturalismo racionalista, mas não é esse o caso. Falamos aqui de um misticismo naturalista com pretensa roupagem cristã. Irônica mas não surpreendentemente, Celano e São Boaventura, posteriores a Francisco, usaram seu treinamento intelectual no cristianismo neoplatônico para tentar explicar o naturalismo-místico de Francisco, ignorando que seu panorama intelectual do misticismo era contrário à experiência mística catalisada pelo meio ambiente natural, o que na verdade teria prevenido o naturalismo do monge de Assis. Eles deixaram-se levar, entretanto, pela impressão de que as experiências de Francisco, seu “amor” pelos animais e pelos elementos da natureza – tudo isso mascarado pelo seu rigor ascético extremado, já característico das ordens monásticas –, eram realmente uma aplicação mais concreta e literal das ideias que eles aprenderam intelectualmente. O próprio Celano admitiria que algumas atitudes de Francisco diante dos animais não eram usuais. Em certa ocasião, tendo sido presenteado com um peixe, Francisco devolveu-o à água, chamando o peixe de “irmão”. “Ele abraçou todas as coisas com um sentimento inaudível de devoção, falando a elas do Senhor e admoestando-as a louvarem-nO,” escreveu Celano em uma biografia sobre o santo de Assis. Celano e Boaventura acreditavam tratar-se de uma nova forma de experimentar a filosofia agostiniana, em vez de uma banalização dela [ver Roger D. Sorrell, “St. Francis and Innovation in Western Christian Attitudes towards the Environment”, p. 90-92]. Foi assim que o “naturalismo” franciscano foi incorporado à tradição.
Essa mudança promovida pela Ordem Franciscana se deve ao fato de seu fundador jamais ter recebido educação intelectual na juventude, de maneira que absorveu a atitude do cristianismo neoplatônico anterior em relação à natureza (que, nessa concepção, foi estruturada numa cuidadosa categorização dos níveis da Criação, abarcando e coerindo suas diferenças significativas, ao mesmo tempo em que se promovia a “intelectualização” da experiência mística) e ao processo de ascensão espiritual. Sendo a ascensão espiritual neoplatônica um descendente direto do ideal pagão de vida contemplativa, o monasticismo anterior à fundação da Ordem dos Frades Menores buscava uma vida de transcendência espiritual.
No segundo caso, a renúncia da vida, do mundo, do bem-estar e do status social por Francisco não foi uma renúncia da vida no mundo em busca da transcendência, como no monasticismo pregresso, mas uma tentativa de encontrar Deus através da “santa” pobreza. Eis o padrão ascético franciscano. Se Cristo havia sido pobre, segue-se que ele também deveria ser; nesse sentido, compartilhar o sofrimento de Cristo seria uma forma de estar com Ele. Uma famosa pintura de Bartolome Esteban Murillo mostra Francisco abraçando Cristo na cruz. A verdadeira identidade e a verdadeira santidade seriam encontradas na pobreza, e o sofrimento e a humanidade de Cristo, mais do que sua divindade, tornaram-se foco de atenção [ver “Franciscans at Prayer”, de Timothy J. Johnson].
Uma evidência disso é apontada por Leo Steinberg, em “The Sexuality of Christ in Renaissance Art and in Modern Oblivion”, obra que demonstra como a tendência de representar Cristo como um bebê nu com seus órgãos sexuais expostos nas artes sacras cresceu depois de Francisco. O Franciscanismo, a propósito, difundiu a imagem do presépio, onde Cristo é retratado como infante. O caráter educativo da arte tinha o interesse de mostrar que Cristo havia passado por todos os sofrimentos humanos – como um pobre bebê numa manjedoura cercado de animais – a fim de causar compadecimento. Os artistas da época, entretanto, não sentiam mais um imperativo para representar a divindade de Cristo, já demasiadamente consolidada na Alta Idade Média, e por esse motivo, a nova perspectiva ganhou o interesse teológico e o aval da Igreja.
Essa identificação entre pobreza e santidade ganhou ainda uma estreita relação com a busca pela suposta perfeição evangélica. Em um famoso escrito, a "Regra não Bulada", ou Primeira Regra, Francisco cita no capítulo 1, por exemplo: "Se queres ser perfeito, vai e vende tudo (cfr. Lc 18,22) que tens, e dá aos pobres e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me" (Mt 19:21). A Regra da Ordem Franciscana Secular [OFS] traz explicitamente o termo “perfeição da caridade” no item 2 do capítulo 1, como o objetivo dos leigos na vida secular.
Lamentavelmente, a visão de Cristo esposada por Francisco é questionável pelo simples fato de Jesus e os apóstolos terem recebido dinheiro [Lc 8:2-3], ao passo que o monge se negava a receber. Facilmente se depreende do contexto de Mateus 19, citado por Francisco na “Regra Não Bulada”, que Cristo estava usando um discurso retórico para trazer à tona a idolatria do jovem rico aos bens materiais quando, em seguida, diz aos discípulos que “é impossível” para o homem salvar-se (Mt 19:26). Se Francisco tivesse mais intimidade com a Escritura, teria que levar em consideração que foi o próprio Deus quem enriqueceu Abraão, José, Davi, Salomão e tantos outros servos.
A personalidade de Francisco era impactante e possuidora de um apelo estético incrivelmente forte, embora possa ser reconhecida como excêntrica e suspeita. Justo Gonzales, em "História Ilustrada do Cristianismo – Volume I" relata uma versão do encontro entre Francisco e o papa Inocêncio III. O contraste entre ambos deve ter sido deveras curioso. De um lado, um homem no auge do papado, o papa mais poderoso da História. No outro, um mendigo. Segundo Gonzales, Inocêncio disse:
– “Vestido como estás, mais pareces porco que ser humano. Vai viver com teus irmãos."
Em resposta, Francisco não se mostrou ofendido. Antes, saiu em busca de uma pocilga. Em seguida, retornando à presença de Inocêncio III, ajoelhou-se e disse:
– “Senhor, fiz o que me mandaste."
O papa viu naquilo uma grande virtude e o monge começou a ser aceito. Voegelin afirma que Francisco produziu uma "ambiguidade constante", "ao mesmo tempo uma força e uma fraqueza [...] o fato de ter elaborado a ideia de uma vida em conformidade com Cristo".
“Quando [Francisco] ataca o "mundo", o ‘mundus’ ou o ‘saeculum’, utiliza um vocabulário evangélico, mas nem sempre com o significado evangélico. O homem não é chamado a arrepender-se porque o reino de Deus está próximo, mas porque a vida de pobreza e obediência é aconselhada como constituição permanente do mundo [supostamente] em conformidade com a vida do salvador." [História das Ideias Políticas – v. II, p. 160]
É claro que Voegelin também não possui um conceito bíblico da pobreza, e guarda uma visão errônea acerca da vida de Cristo. Mas deixaremos para discutir sua (in)consistência teológica mais adiante. O fato é que Francisco criou um ambiente no qual as riquezas eram vistas como fonte de certa espécie de mal; e, ademais, sua ordem espalhou-se pela Europa rapidamente. A pobreza era "santa", ao passo que a propriedade era uma fonte de concupiscência. Ser pobre, seguindo a falsa interpretação de Mateus 19, era uma obrigação evangélica. “Quando tiveres um saltério, quererás também um breviário. E quando tiveres um breviário te ostentarás no púlpito como um prelado,” disse Francisco a um de seus discípulos [Gonzales, “História Ilustrada do Cristianismo - Vol I”, p. 403]. Uma frase que poderia ser dita por qualquer monge budista, aliás [por sinal, as semelhanças entre a vida de Francisco de Assis e de Buda são notáveis]. A obsessão de Francisco pela pobreza, em certa ocasião, fez com que ele obrigasse um de seus discípulos a colocar uma moeda de ouro entre os dentes e enfiá-la no esterco, dizendo-lhe que esse era o lugar que cabia ao ouro [Gonzales, “História Ilustrada do Cristianismo – v. I”, p. 404].
Mas Francisco não rejeitava apenas as posses; rejeitava também a própria erudição. Ele proibia seus seguidores de procurar instrução, porque, segundo sua concepção, ela provoca orgulho. Francisco era anti-intelectualista. Antes dos estudos serem vistos como algo desejável, a ausência deles tornou-se um escudo para a preservação da virtude. Na experiência franciscana, a pureza do coração e o fruto do Espírito não são alcançados pela ação do Espírito Santo através da graça, mas sim por meio da castração psíquica e do abandono dos prazeres que provocam desejos. Inclui-se aí, como os gnósticos, a prática de autoflagelação (como muitos outros “santos” e papas católicos romanos) e o uso de uma roupa feita com pelos de cabra ou material pontiagudo (cilício) que provocam desconforto na pele; tudo isso no intuito de “mortificar” a própria carne. Nisso vemos mais claramente os resquícios da influência gnóstica explicada por Rushdoony em “Flight From Humanity,” que sobreviveu nas ordens monásticas até os dias de hoje.
Espantosamente, Francisco é reconhecido como um “grande santo”, e talvez a figura mais importante do cristianismo depois do próprio Senhor Jesus. Dante disse que ele foi “uma luz sobre o mundo”. Para a Igreja Católica Romana, foi uma espécie de "reformador.” Já para Voegelin, o “pobrezinho de Assis” criou um “Cristo intramundano”, concepção que é fortalecida diante de sua visão da humanidade de Cristo e sua interpretação da pobreza. Opinião parecida é esposada por Leff, em “The making of the myth”, quando diz que “o conceito de Cristo como homem tornou-se o mais poderoso desafio a uma igreja divina”. Sua Ordem era ao mesmo tempo uma tentativa de retornar a essa suposta vida evangélica e uma forma de protesto contra uma Igreja enriquecida e toda a "futilidade" da cultura ao seu redor. A criação de comunidades nas quais buscar-se-ia a “perfeição da caridade” em conflito com a sociedade da época seria uma tendência inevitável. Voegelin escreveu:
A crise, contudo, tomou uma forma mais consistente depois de sua morte, e seu estopim foi exatamente uma discussão interna sobre o rigorismo da Ordem; a disputa por mudanças na Regra foi o ponto de ebulição para os Franciscanos Espirituais (inspirados por Joaquim de Fiori) tumultuarem a Igreja.
Fica a pergunta: por que os católicos romanos que citam Voegelin a fim de atacar a Reforma não mencionam tudo isso que abordamos?
Notas:
1. Em “Francis of Assisi: Christian Mysticism at the Crossroads”, Ewert H. Cousins explica que Francisco representa um divisor de águas na história do cristianismo ocidental e, depois dele, a experiência das religiões ocidentais seguem em duas correntes: (1) o neoplatonismo místico especulativo – absorvendo o misticismo naturalista –, que alcançou o cume nos místicos de Rhineland; (2) e a corrente devocional que fluiu de Francisco – com seu foco na humanidade e na paixão de Cristo –, que propagou-se amplamente pelas pessoas e tornou-se a forma característica da sensibilidade Ocidental pelos séculos por vir. [Citado por Roger D. Sorrell em “St. Francis and Nature: Tradition and Innovation in Western Christian Attitudes towards the Environment”, p. 89.]
2. Com relação aos famosos estigmas de Francisco de Assis, aos quais Voegelin parece dar demasiada credibilidade, os mais céticos acreditam terem sido na verdade um sintoma de hanseníase, na época era conhecida como lepra. Em estágios avançados, ela pode conduzir à cegueira, e Francisco de Assis, dois anos depois de manifestar os “estigmas”, morreu cego e todos reconhecem seu estado de saúde debilitado. Ele foi o primeiro “santo” na história do cristianismo a receber os supostos estigmas, depois dele tais marcas tornaram-se convenientemente comuns.
OS FRANCISCANOS ESPIRITUAIS
Francisco havia se esforçado para impedir que seu ideal ascético na Regra da Ordem fosse abrandado. Mas com o crescimento dos “frades menores”, seu modelo foi provando-se cada vez mais impossível.
Depois da morte de seu fundador, o Franciscanismo dividiu-se em dois partidos: os Franciscanos Espirituais e os Franciscanos Conventuais. Enquanto a ala dos Espirituais queria manter fielmente a regra da pobreza, a ala Conventual queria abrandá-la, para que pudessem aceitar algumas propriedades e ingressarem nas universidades, semelhantemente aos monges dominicanos. Nesse momento, os Espirituais assumiram a profecia de Joaquim de Fiori para si, e viram, nos outros Franciscanos e na Igreja como um todo, uma falsa hierarquia que seria deixada para trás na Nova Era do Espírito. Se a perfeição cristã está no ascetismo da pobreza absoluta, a transigência dos Franciscanos Conventuais e da Igreja, já enriquecida e desmoralizada, seria uma força retrógrada contra a Terceira Era e contra a “evolução” do processo histórico.
Timothy George, professor de história da Igreja e doutor em teologia pela Harvard University, escreveu sobre o assunto:
Os Franciscanos Espirituais foram uma das maiores forças dissidentes da Baixa Idade Média. Para Voegelin, o próprio ideal de vida de Francisco, falsamente confundido com o Evangelho, era, em si, revolucionário.
“O movimento era cada vez mais dirigido contra a organização feudal da sociedade, incluindo a igreja sacramental. Quando o movimento encontrava apoio das massas, adotava a forma de fundações sectárias, criando atritos com a Igreja, […] o ideal de pobreza, juntamente com outros conselhos evangélicos, estava destinado a ser o símbolo da revolução." [História das Ideias Políticas – v. II, pg. 161]
Parte desse movimento foi abrandado, como explica Voegelin, através de sua oficialização e submissão à Igreja. Por um momento Voegelin questiona quais teriam sido as implicações caso isso não tivesse acontecido. São Boaventura assumiu a Ordem e conseguiu reconciliar a maior parte dos franciscanos com a Igreja, mas o conflito foi inevitável.
Como vimos, o padrão moral anti-intelectualista e de pobreza absoluta começou a criar um conflito com a Igreja rica e perpassada por escândalos, enraizando essa moral alternativa avessa às autoridades constituídas e às classes abastadas. A riqueza era vista com desconfiança por eles. A moral Franciscana apenas reforçou o apelo pelos pobres, materialmente falando, e sofredores deste mundo.
Agora, podemos perceber muitas semelhanças entre o Franciscanismo e o movimento socialista: a tensão escatológica, um conceito de justiça materialmente avesso à propriedade – embora seja diferente do socialismo de Karl Marx – e uma revolta contra as instituições. Há, pois, alguma relação entre o Franciscanismo e o movimento socialista? O próprio Voegelin o admite.
"[...] a substância cristã se enfraquecia cada vez mais; no grande processo de "desespiritualização" do cristianismo, [...] agora vemos a vida de Cristo ser discutida sob a ótica da propriedade privada ou comunal. [...] nem a indiferença escatológica à propriedade dos primeiros cristãos é uma forma de comunismo, como a maior parte dos franciscanos a considerava em função do ideal de pobreza intramundana da ordem. Não obstante, este debate representou na história das ideias o começo da discussão sobre "comunismo" dos primeiros cristãos ainda em andamento" [Voegelin, “História das Ideias Políticas – v. III, Idade Média Tardia”, p. 136]
Quando, portanto, Thomas Muntzer, o revolucionário dissidente do luteranismo citado por Engels em “The Peasent War in Germany”, uniu-se aos hussitas radicais formando um movimento anabatista combatido por Lutero nas Guerras Camponesas, ele já estava inserido dentro de um contexto avesso ao direito de propriedade.
Diante de tudo isso, é mister que reconheçamos todas as consequências de más interpretações bíblicas. Francisco de Assis é resultado de uma cultura na qual a teologia era questionável, e, mais do que isso, só existia superficialmente entre as massas, através de ritualismos que são incompreensíveis até para a maioria dos católicos romanos de hoje.
Atualmente, o papa Francisco I causa não pequena controvérsia dentro do Catolicismo Romano, sendo acusado de socialista por muitos conservadores católicos brasileiros. Entretanto, é preciso reconhecer que Bergoglio não está distante de uma linha que já existe dentro do Catolicismo Romano desde a Baixa Idade Média, e muitos de seus posicionamentos não são incoerentes com a Doutrina Social da Igreja Romana.
Joaquim de Fiori, impulsionado pelos Franciscanos, representou uma grande descontinuidade em relação à tradição agostiniana. A segunda descontinuidade radical contra Agostinho veio com a obra do filósofo católico romano Tomás de Aquino, a qual modificaria a filosofia da Igreja de Roma para sempre. Pra compreendermos melhor a filosofia tomista e suas consequências, precisaremos fazer uma breve exposição da obra do filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd na próxima parte da nossa exposição.
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Continua em breve...
FRANCISCO DE ASSIS - O DUX DA TERCEIRA ERA
Na primeira parte desse trabalho, publicada há algumas semanas, procurei resumir um pouco da situação conflituosa que marcou a Baixa Idade Média e verificar o conflito entre uma ordem “natural” e a influência “sobrenatural” da Igreja, bem como os efeitos disso na ordem civil antes da Reforma Protestante. Em seguida, voltei a atenção para a obra do monge cistercience Joaquim de Fiori, que representou uma ruptura com a Filosofia da História de Agostinho, e como sua interpretação milenarista influenciou o pensamento de figuras importantes, seja imperadores, papas ou poetas como Dante Alighieri. É útil ressaltar que presentemente buscamos apresentar uma visão panorâmica do processo que conduziu à Revolução Civil, da qual a “divinização do estado” (assunto central no texto escrito por Olavo de Carvalho para o Diário do Comércio) é apenas uma das etapas, que será tratada objetivamente em breve. Por ora, mostraremos um personagem importante para a difusão das ideias de Fiori no pensamento Ocidental, que é Francisco de Assis, e uma ala de seus seguidores, os Franciscanos Espirituais. Em "História das Ideias Políticas – v. II, Idade Média até Tomás de Aquino," Eric Voegelin diz:
“São Francisco não teria sido visto pelos espirituais como a figura decisiva de uma nova época na história cristã se as profecias de Joaquim não fornecessem o padrão simbólico para a sua interpretação; e as profecias de Joaquim não poderiam ter exercido a forte influência que exerceram no século XIII e em Dante a menos que o aparecimento de São Francisco confirmasse a previsão do ‘dux’ de uma nova era" [Voegelin, “História das Ideias Políticas – v. II, Idade Média até Tomás de Aquino”, p. 157].
Em outras palavras, sem Francisco de Assis, a obra de Joaquim de Fiori não teria sido tão influente.
Do meu ponto de vista, vê-se pouco cristianismo genuíno em Francisco de Assis, ao passo que sobeja certo tipo de ascetismo pagão. Talvez seja correto compreender que o monge de Assis subverteu a “tradição” ascética do monasticismo cristão. Ao contrário do neoplatonismo predominante, que buscava uma experiência contemplativa na fuga transcendente do mundo, Francisco almejava a ascensão espiritual na relação dos homens com a Criação – natureza, animais e outros seres humanos – e em sua interpretação do ideal de pobreza. Francisco não buscava Deus fora do mundo, mas na experiência dentro dele.
O cristianismo começou a ser atacado pelo platonismo desde muito cedo. O gnosticismo, tema recorrente – e controverso – na obra de Voegelin, foi uma desastrada tentativa de síntese entre o platonismo e o cristianismo. Nessa heresia, o pecado não era visto como uma ofensa moral a Deus, mas como um problema estrutural da natureza, da carne (que, na concepção gnóstica, identifica-se essencialmente com o corpo) e do mundo material. Segundo essa visão, o mundo material seria a fonte do sofrimento, e o mundo espiritual, ou da Razão, o mundo superior. O ascetismo era a alternativa óbvia, de modo que a carne seria maltratada em favor do espírito. Ascetas eram comuns no Império Romano e sua influência na igreja primitiva é notável em personagens como a “santa" Melania, por exemplo. Melania não se banhava! Para ela, tal ato equivalia a “mimar a carne”, a qual se configurava, nas palavras dela, uma "fonte de prejuízo” [Robert T. Meyer, “Palladius: The Lausiac History”, p. 136]. Nem mesmo quando os médicos lhe recomendavam o banho por questões de saúde individual, ela não tomava. Macário de Alexandria tentava – creiam – não dormia! O eremita dormia ao relento com o intuito de não ceder ao sono. Em outra ocasião, ele se dirigiu a um pântano a fim de permitir que os insetos picassem seu corpo, uma vez que havia decidido punir a si mesmo por ter matado um mosquito. Quando um asceta de Tebas chamado Doroteu foi perguntado, "O que você está fazendo, Padre, matando seu corpo desta maneira?," ele respondeu, "Ele me mata; eu o mato". A auto-mortificação suicida era erroneamente denominada de santificação. O corpo, a “carne”, era o inimigo da santificação, devendo, pois, ser flagelado, enfaixado de espinhos e degradado no intuito de sobrelevar a "espiritualidade".
Em seu livro “Flight From Humanity”, R. J. Rushdoony desnuda toda a loucura do ascetismo influenciado pelo dualismo platônico:
"Alcançar a perfeição significava abandonar cada evidência da criatura, cada elemento dos desejos e das necessidades corporais, e tornar-se puro espírito em uma carne virtualmente morta. Isto, em umas poucas ocasiões, significou castração real (uma prática pagã comum), mas era, em todas as vezes, uma forma de castração psíquica. O objetivo era tornar-se – de acordo com a concepção grega e estoica de Deus – impassível. O monge Díocles explicou que ‘o desejo era bestial, mas a raiva era demoníaca’. O fato de Cristo ter Se irado mais de uma vez não era considerado."
Desde o terceiro século, depois de Plotino, o neoplatonismo evoluiu dentro do cristianismo através das ordens monásticas, que tentaram organizar as práticas dos primeiros ascetas. No começo, o monasticismo fortaleceu-se principalmente como uma resposta dialética à conversão do Império Romano ao cristianismo. Desconfiados do novo status do cristianismo no Império, muitos cristãos começaram a fugir para desertos. Com o tempo, essas ordens foram se organizando, filtrando as aberrações comportamentais mais flagrantes e hereges, sendo aceitas oficialmente dentro do corpo da Igreja. Todas as boas obras realizadas pelas ordens monásticas no Ocidente, especialmente a da Ordem Beneditina, são dignas de nota. Francisco de Assis é um herdeiro desse processo, ao mesmo tempo em que introduziu duas significativas mudanças nele: um misticismo naturalista e uma substituição da transcendência espiritual pelo ideal de pobreza. Ele não apenas herdou as práticas ascéticas, como talvez as tenha aprofundado um pouco.
Sobre o primeiro caso, Voegelin reconhece que
“São Francisco foi um grande naturalista, um fato que fica obscurecido por sua completa espiritualização dos sofredores e da natureza silenciosa” [p. 165].
Evidentemente, o termo “naturalismo” não é adequado quando comparado ao naturalismo racionalista, mas não é esse o caso. Falamos aqui de um misticismo naturalista com pretensa roupagem cristã. Irônica mas não surpreendentemente, Celano e São Boaventura, posteriores a Francisco, usaram seu treinamento intelectual no cristianismo neoplatônico para tentar explicar o naturalismo-místico de Francisco, ignorando que seu panorama intelectual do misticismo era contrário à experiência mística catalisada pelo meio ambiente natural, o que na verdade teria prevenido o naturalismo do monge de Assis. Eles deixaram-se levar, entretanto, pela impressão de que as experiências de Francisco, seu “amor” pelos animais e pelos elementos da natureza – tudo isso mascarado pelo seu rigor ascético extremado, já característico das ordens monásticas –, eram realmente uma aplicação mais concreta e literal das ideias que eles aprenderam intelectualmente. O próprio Celano admitiria que algumas atitudes de Francisco diante dos animais não eram usuais. Em certa ocasião, tendo sido presenteado com um peixe, Francisco devolveu-o à água, chamando o peixe de “irmão”. “Ele abraçou todas as coisas com um sentimento inaudível de devoção, falando a elas do Senhor e admoestando-as a louvarem-nO,” escreveu Celano em uma biografia sobre o santo de Assis. Celano e Boaventura acreditavam tratar-se de uma nova forma de experimentar a filosofia agostiniana, em vez de uma banalização dela [ver Roger D. Sorrell, “St. Francis and Innovation in Western Christian Attitudes towards the Environment”, p. 90-92]. Foi assim que o “naturalismo” franciscano foi incorporado à tradição.
Essa mudança promovida pela Ordem Franciscana se deve ao fato de seu fundador jamais ter recebido educação intelectual na juventude, de maneira que absorveu a atitude do cristianismo neoplatônico anterior em relação à natureza (que, nessa concepção, foi estruturada numa cuidadosa categorização dos níveis da Criação, abarcando e coerindo suas diferenças significativas, ao mesmo tempo em que se promovia a “intelectualização” da experiência mística) e ao processo de ascensão espiritual. Sendo a ascensão espiritual neoplatônica um descendente direto do ideal pagão de vida contemplativa, o monasticismo anterior à fundação da Ordem dos Frades Menores buscava uma vida de transcendência espiritual.
No segundo caso, a renúncia da vida, do mundo, do bem-estar e do status social por Francisco não foi uma renúncia da vida no mundo em busca da transcendência, como no monasticismo pregresso, mas uma tentativa de encontrar Deus através da “santa” pobreza. Eis o padrão ascético franciscano. Se Cristo havia sido pobre, segue-se que ele também deveria ser; nesse sentido, compartilhar o sofrimento de Cristo seria uma forma de estar com Ele. Uma famosa pintura de Bartolome Esteban Murillo mostra Francisco abraçando Cristo na cruz. A verdadeira identidade e a verdadeira santidade seriam encontradas na pobreza, e o sofrimento e a humanidade de Cristo, mais do que sua divindade, tornaram-se foco de atenção [ver “Franciscans at Prayer”, de Timothy J. Johnson].
Uma evidência disso é apontada por Leo Steinberg, em “The Sexuality of Christ in Renaissance Art and in Modern Oblivion”, obra que demonstra como a tendência de representar Cristo como um bebê nu com seus órgãos sexuais expostos nas artes sacras cresceu depois de Francisco. O Franciscanismo, a propósito, difundiu a imagem do presépio, onde Cristo é retratado como infante. O caráter educativo da arte tinha o interesse de mostrar que Cristo havia passado por todos os sofrimentos humanos – como um pobre bebê numa manjedoura cercado de animais – a fim de causar compadecimento. Os artistas da época, entretanto, não sentiam mais um imperativo para representar a divindade de Cristo, já demasiadamente consolidada na Alta Idade Média, e por esse motivo, a nova perspectiva ganhou o interesse teológico e o aval da Igreja.
Essa identificação entre pobreza e santidade ganhou ainda uma estreita relação com a busca pela suposta perfeição evangélica. Em um famoso escrito, a "Regra não Bulada", ou Primeira Regra, Francisco cita no capítulo 1, por exemplo: "Se queres ser perfeito, vai e vende tudo (cfr. Lc 18,22) que tens, e dá aos pobres e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me" (Mt 19:21). A Regra da Ordem Franciscana Secular [OFS] traz explicitamente o termo “perfeição da caridade” no item 2 do capítulo 1, como o objetivo dos leigos na vida secular.
Lamentavelmente, a visão de Cristo esposada por Francisco é questionável pelo simples fato de Jesus e os apóstolos terem recebido dinheiro [Lc 8:2-3], ao passo que o monge se negava a receber. Facilmente se depreende do contexto de Mateus 19, citado por Francisco na “Regra Não Bulada”, que Cristo estava usando um discurso retórico para trazer à tona a idolatria do jovem rico aos bens materiais quando, em seguida, diz aos discípulos que “é impossível” para o homem salvar-se (Mt 19:26). Se Francisco tivesse mais intimidade com a Escritura, teria que levar em consideração que foi o próprio Deus quem enriqueceu Abraão, José, Davi, Salomão e tantos outros servos.
A personalidade de Francisco era impactante e possuidora de um apelo estético incrivelmente forte, embora possa ser reconhecida como excêntrica e suspeita. Justo Gonzales, em "História Ilustrada do Cristianismo – Volume I" relata uma versão do encontro entre Francisco e o papa Inocêncio III. O contraste entre ambos deve ter sido deveras curioso. De um lado, um homem no auge do papado, o papa mais poderoso da História. No outro, um mendigo. Segundo Gonzales, Inocêncio disse:
– “Vestido como estás, mais pareces porco que ser humano. Vai viver com teus irmãos."
Em resposta, Francisco não se mostrou ofendido. Antes, saiu em busca de uma pocilga. Em seguida, retornando à presença de Inocêncio III, ajoelhou-se e disse:
– “Senhor, fiz o que me mandaste."
O papa viu naquilo uma grande virtude e o monge começou a ser aceito. Voegelin afirma que Francisco produziu uma "ambiguidade constante", "ao mesmo tempo uma força e uma fraqueza [...] o fato de ter elaborado a ideia de uma vida em conformidade com Cristo".
“Quando [Francisco] ataca o "mundo", o ‘mundus’ ou o ‘saeculum’, utiliza um vocabulário evangélico, mas nem sempre com o significado evangélico. O homem não é chamado a arrepender-se porque o reino de Deus está próximo, mas porque a vida de pobreza e obediência é aconselhada como constituição permanente do mundo [supostamente] em conformidade com a vida do salvador." [História das Ideias Políticas – v. II, p. 160]
É claro que Voegelin também não possui um conceito bíblico da pobreza, e guarda uma visão errônea acerca da vida de Cristo. Mas deixaremos para discutir sua (in)consistência teológica mais adiante. O fato é que Francisco criou um ambiente no qual as riquezas eram vistas como fonte de certa espécie de mal; e, ademais, sua ordem espalhou-se pela Europa rapidamente. A pobreza era "santa", ao passo que a propriedade era uma fonte de concupiscência. Ser pobre, seguindo a falsa interpretação de Mateus 19, era uma obrigação evangélica. “Quando tiveres um saltério, quererás também um breviário. E quando tiveres um breviário te ostentarás no púlpito como um prelado,” disse Francisco a um de seus discípulos [Gonzales, “História Ilustrada do Cristianismo - Vol I”, p. 403]. Uma frase que poderia ser dita por qualquer monge budista, aliás [por sinal, as semelhanças entre a vida de Francisco de Assis e de Buda são notáveis]. A obsessão de Francisco pela pobreza, em certa ocasião, fez com que ele obrigasse um de seus discípulos a colocar uma moeda de ouro entre os dentes e enfiá-la no esterco, dizendo-lhe que esse era o lugar que cabia ao ouro [Gonzales, “História Ilustrada do Cristianismo – v. I”, p. 404].
Mas Francisco não rejeitava apenas as posses; rejeitava também a própria erudição. Ele proibia seus seguidores de procurar instrução, porque, segundo sua concepção, ela provoca orgulho. Francisco era anti-intelectualista. Antes dos estudos serem vistos como algo desejável, a ausência deles tornou-se um escudo para a preservação da virtude. Na experiência franciscana, a pureza do coração e o fruto do Espírito não são alcançados pela ação do Espírito Santo através da graça, mas sim por meio da castração psíquica e do abandono dos prazeres que provocam desejos. Inclui-se aí, como os gnósticos, a prática de autoflagelação (como muitos outros “santos” e papas católicos romanos) e o uso de uma roupa feita com pelos de cabra ou material pontiagudo (cilício) que provocam desconforto na pele; tudo isso no intuito de “mortificar” a própria carne. Nisso vemos mais claramente os resquícios da influência gnóstica explicada por Rushdoony em “Flight From Humanity,” que sobreviveu nas ordens monásticas até os dias de hoje.
Espantosamente, Francisco é reconhecido como um “grande santo”, e talvez a figura mais importante do cristianismo depois do próprio Senhor Jesus. Dante disse que ele foi “uma luz sobre o mundo”. Para a Igreja Católica Romana, foi uma espécie de "reformador.” Já para Voegelin, o “pobrezinho de Assis” criou um “Cristo intramundano”, concepção que é fortalecida diante de sua visão da humanidade de Cristo e sua interpretação da pobreza. Opinião parecida é esposada por Leff, em “The making of the myth”, quando diz que “o conceito de Cristo como homem tornou-se o mais poderoso desafio a uma igreja divina”. Sua Ordem era ao mesmo tempo uma tentativa de retornar a essa suposta vida evangélica e uma forma de protesto contra uma Igreja enriquecida e toda a "futilidade" da cultura ao seu redor. A criação de comunidades nas quais buscar-se-ia a “perfeição da caridade” em conflito com a sociedade da época seria uma tendência inevitável. Voegelin escreveu:
“A fissura torna-se omniosamente aberta na diferenciação franciscana entre a vida do leigo, em conformidade com Cristo, e a vida sacerdotal, em conformidade com a Igreja Romana. […] A pessoa de São Francisco e a ‘religio’ que ele fundou eram inconfundivelmente forças intramundanas em oposição ao ‘imperium’ […] A evocação de São Francisco foi o sintoma mais impressionante do processo em que o ’sacrum imperium’ se desintegrou.” [História das Ideias Políticas – v. II, p. 163, 166].
A crise, contudo, tomou uma forma mais consistente depois de sua morte, e seu estopim foi exatamente uma discussão interna sobre o rigorismo da Ordem; a disputa por mudanças na Regra foi o ponto de ebulição para os Franciscanos Espirituais (inspirados por Joaquim de Fiori) tumultuarem a Igreja.
Fica a pergunta: por que os católicos romanos que citam Voegelin a fim de atacar a Reforma não mencionam tudo isso que abordamos?
Notas:
1. Em “Francis of Assisi: Christian Mysticism at the Crossroads”, Ewert H. Cousins explica que Francisco representa um divisor de águas na história do cristianismo ocidental e, depois dele, a experiência das religiões ocidentais seguem em duas correntes: (1) o neoplatonismo místico especulativo – absorvendo o misticismo naturalista –, que alcançou o cume nos místicos de Rhineland; (2) e a corrente devocional que fluiu de Francisco – com seu foco na humanidade e na paixão de Cristo –, que propagou-se amplamente pelas pessoas e tornou-se a forma característica da sensibilidade Ocidental pelos séculos por vir. [Citado por Roger D. Sorrell em “St. Francis and Nature: Tradition and Innovation in Western Christian Attitudes towards the Environment”, p. 89.]
2. Com relação aos famosos estigmas de Francisco de Assis, aos quais Voegelin parece dar demasiada credibilidade, os mais céticos acreditam terem sido na verdade um sintoma de hanseníase, na época era conhecida como lepra. Em estágios avançados, ela pode conduzir à cegueira, e Francisco de Assis, dois anos depois de manifestar os “estigmas”, morreu cego e todos reconhecem seu estado de saúde debilitado. Ele foi o primeiro “santo” na história do cristianismo a receber os supostos estigmas, depois dele tais marcas tornaram-se convenientemente comuns.
OS FRANCISCANOS ESPIRITUAIS
Francisco havia se esforçado para impedir que seu ideal ascético na Regra da Ordem fosse abrandado. Mas com o crescimento dos “frades menores”, seu modelo foi provando-se cada vez mais impossível.
Depois da morte de seu fundador, o Franciscanismo dividiu-se em dois partidos: os Franciscanos Espirituais e os Franciscanos Conventuais. Enquanto a ala dos Espirituais queria manter fielmente a regra da pobreza, a ala Conventual queria abrandá-la, para que pudessem aceitar algumas propriedades e ingressarem nas universidades, semelhantemente aos monges dominicanos. Nesse momento, os Espirituais assumiram a profecia de Joaquim de Fiori para si, e viram, nos outros Franciscanos e na Igreja como um todo, uma falsa hierarquia que seria deixada para trás na Nova Era do Espírito. Se a perfeição cristã está no ascetismo da pobreza absoluta, a transigência dos Franciscanos Conventuais e da Igreja, já enriquecida e desmoralizada, seria uma força retrógrada contra a Terceira Era e contra a “evolução” do processo histórico.
Timothy George, professor de história da Igreja e doutor em teologia pela Harvard University, escreveu sobre o assunto:
"O poder de seus adeptos (franciscanos radicais) brotou de duas fontes: o ideal de Francisco da pobreza absoluta e a filosofia da história apresentada por Joaquim de Fiori, que eles aplicaram à sua própria ordem e época. Combinados, esses elementos resultaram numa crítica explosiva à igreja da época. [...] Os franciscanos espirituais (radicais), exacerbados por suas lutas com o papado, que se aliava aos franciscanos conventuais (seus oponentes) na discussão sobre a pobreza absoluta, identificaram-se como essa nova ordem. […] Por serem um movimento de protesto dentro da Igreja, os Espirituais foram irremediavelmente esmagados. A influência deles continuou em vários grupos sectários no sul da França e da Itália. [...] Francisco de Assis, que desejava consertar a igreja, deu à luz um movimento que desintegrou-a gravemente." [Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 40.]
Os Franciscanos Espirituais foram uma das maiores forças dissidentes da Baixa Idade Média. Para Voegelin, o próprio ideal de vida de Francisco, falsamente confundido com o Evangelho, era, em si, revolucionário.
“O movimento era cada vez mais dirigido contra a organização feudal da sociedade, incluindo a igreja sacramental. Quando o movimento encontrava apoio das massas, adotava a forma de fundações sectárias, criando atritos com a Igreja, […] o ideal de pobreza, juntamente com outros conselhos evangélicos, estava destinado a ser o símbolo da revolução." [História das Ideias Políticas – v. II, pg. 161]
Parte desse movimento foi abrandado, como explica Voegelin, através de sua oficialização e submissão à Igreja. Por um momento Voegelin questiona quais teriam sido as implicações caso isso não tivesse acontecido. São Boaventura assumiu a Ordem e conseguiu reconciliar a maior parte dos franciscanos com a Igreja, mas o conflito foi inevitável.
Como vimos, o padrão moral anti-intelectualista e de pobreza absoluta começou a criar um conflito com a Igreja rica e perpassada por escândalos, enraizando essa moral alternativa avessa às autoridades constituídas e às classes abastadas. A riqueza era vista com desconfiança por eles. A moral Franciscana apenas reforçou o apelo pelos pobres, materialmente falando, e sofredores deste mundo.
Agora, podemos perceber muitas semelhanças entre o Franciscanismo e o movimento socialista: a tensão escatológica, um conceito de justiça materialmente avesso à propriedade – embora seja diferente do socialismo de Karl Marx – e uma revolta contra as instituições. Há, pois, alguma relação entre o Franciscanismo e o movimento socialista? O próprio Voegelin o admite.
"[...] a substância cristã se enfraquecia cada vez mais; no grande processo de "desespiritualização" do cristianismo, [...] agora vemos a vida de Cristo ser discutida sob a ótica da propriedade privada ou comunal. [...] nem a indiferença escatológica à propriedade dos primeiros cristãos é uma forma de comunismo, como a maior parte dos franciscanos a considerava em função do ideal de pobreza intramundana da ordem. Não obstante, este debate representou na história das ideias o começo da discussão sobre "comunismo" dos primeiros cristãos ainda em andamento" [Voegelin, “História das Ideias Políticas – v. III, Idade Média Tardia”, p. 136]
Quando, portanto, Thomas Muntzer, o revolucionário dissidente do luteranismo citado por Engels em “The Peasent War in Germany”, uniu-se aos hussitas radicais formando um movimento anabatista combatido por Lutero nas Guerras Camponesas, ele já estava inserido dentro de um contexto avesso ao direito de propriedade.
Diante de tudo isso, é mister que reconheçamos todas as consequências de más interpretações bíblicas. Francisco de Assis é resultado de uma cultura na qual a teologia era questionável, e, mais do que isso, só existia superficialmente entre as massas, através de ritualismos que são incompreensíveis até para a maioria dos católicos romanos de hoje.
Atualmente, o papa Francisco I causa não pequena controvérsia dentro do Catolicismo Romano, sendo acusado de socialista por muitos conservadores católicos brasileiros. Entretanto, é preciso reconhecer que Bergoglio não está distante de uma linha que já existe dentro do Catolicismo Romano desde a Baixa Idade Média, e muitos de seus posicionamentos não são incoerentes com a Doutrina Social da Igreja Romana.
Joaquim de Fiori, impulsionado pelos Franciscanos, representou uma grande descontinuidade em relação à tradição agostiniana. A segunda descontinuidade radical contra Agostinho veio com a obra do filósofo católico romano Tomás de Aquino, a qual modificaria a filosofia da Igreja de Roma para sempre. Pra compreendermos melhor a filosofia tomista e suas consequências, precisaremos fazer uma breve exposição da obra do filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd na próxima parte da nossa exposição.
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Continua em breve...
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Autor: Vitor Barreto
Divulgação: Bereianos
Leia também:
A Gênese da Revolução Civil - Uma Refutação a Olavo de Carvalho (Parte 1)
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1 comentários:
Parabéns, o texto é muito bem embasado e muito instrutivo.
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