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A falta de clareza que presentemente domina a teologia pode ser reduzida, em larga medida, a certas circunstâncias na área da filosofia. Evidentemente, a teologia, como uma ciência especial, terá ainda problemas suficientes para solucionar, mesmo que os equívocos na filosofia sejam diminuídos. Mas, nesse caso, as questões remanescentes serão formuladas de maneira consideravelmente mais clara e serão, portanto, mais fáceis de serem respondidas.
Creio, portanto, que também a teologia possui um grande interesse no pensamento basilar na filosofia. Mas somente podemos esperar algo da filosofia quando ela compreender o sentido da Reforma e a busca por sua salvação num retorno às Sagradas Escrituras. Um esforço assim intenso em prol de um retorno às Escrituras já se encontrava presente na filosofia de séculos anteriores: pensemos nos Pais da Igreja, especialmente Agostinho, e, posteriormente, Bradwardine; pensemos também nos Reformadores e, dentre eles, chamemos um pelo nome: Calvino!
Assim como Bradwardine, Calvino foi chamado um “novo Agostinho”. Todavia, tal título se encaixa menos no Reformador genebrino do que em Bradwardine, pois, mais profundamente do que os outros – ainda mais profundamente do que Agostinho –, Calvino penetrou no mundo do pensamento das Sagradas Escrituras, de forma que, ainda hoje, nos é vantajoso reportamos a ele. O que é o calvinismo? Por calvinismo devemos entender uma glorificação acrítica das obras escritas por Calvino durante sua vida ou uma repetição literal daquilo que ele pensou?
E aquele que pensa assim possui o direito de recusar o título de “calvinista” a todos que pensam diferentemente do grande Reformador com relação ao primeiro ou último ponto? Evidentemente não. Devemos, pelo contrário, distinguir entre aquilo que em Calvino se deduz imediatamente de seus princípios e aquilo que somente faz sentido com as emergências de sua época e vida. Analisemos primeiramente os princípios de Calvino. Com isto, nos referimos aos pensamentos que não se contradizem, mas que conduzem todo o edifício de sua obra de vida. Com relação a isso, devemos mencionar, em primeiro lugar, o reconhecimento das Sagradas Escrituras como a Palavra de Deus.
Em suas Institutas e no Livro de Ordem Eclesiástica, nas suas controvérsias e comentários, em seus sermões e cartas: em tudo, em suma, o fim de todas as objeções se dá com a invocação da mais alta jurisdição: as Escrituras Sagradas. E ainda hoje esse “princípio formal” da Reforma permanece absolutamente válido para todo aquele que deseja ser designado como calvinista. De semelhante modo, também é de grande importância para a reforma da filosofia. Isto significa que não adotamos, juntamente com a filosofia atual, uma postura crítica com relação à Palavra de Deus e uma posição mais flexível contra a filosofia tradicional, mas, pelo contrário, que ao mesmo tempo em que nos curvamos perante a autoridade das Sagradas Escrituras, devemos investigar com total liberdade tudo aquilo que permanece no tocante à sua veracidade – e isto também com relação ao nosso próprio trabalho. Se tomarmos isso a sério, então, por toda parte, a proposição do problema muda e consequentemente também a resposta. Mas o reconhecimento das Sagradas Escrituras como a Palavra de Deus somente pode apresentar conteúdo substancial ao responder esta questão: “O que dizem as Escrituras?” A resposta calvinista para tal indagação pode ser resumida brevemente nos seguintes pontos:
1. As Escrituras Sagradas ensinam a soberania imediata do Deus que Se revelou na Sua Palavra sobre todas as coisas em todas as relações e todas as áreas; e, em conformidade com isso, as Escrituras distinguem claramente Deus, o soberano, e aquilo que foi criado por Ele.
2. Concebe a religião como unio foederalis (uma unidade pactual) que chega ao conhecimento da família humana mediante a revelação da Palavra também já antes da Queda.
3. De semelhante modo, a resposta calvinista também afirma isto a respeito das circunstâncias após a Queda:
a) a depravação total da humanidade;
b) a morte como punição do pecado;
c) a revelação da graça do Deus soberano no Mediador.
Passemos agora aos pontos fundamentais da filosofia comparados com as Escrituras, isto é, aquelas concepções básicas que levam em conta as Sagradas Escrituras no estudo de todos seus tópicos. No desenvolvimento de seus elementos primordiais, a filosofia pode sutilmente se desviar da resposta calvinista acerca dos principais conteúdos da Bíblia. A filosofia, quando contrastada com as Escrituras, pode, pois, nos ensinar primeiramente a soberania imediata daquele Deus que Se revelou em Sua Palavra, soberania que está acima de todas as coisas – em cada relação e em cada domínio – e também distinguir claramente, de acordo com essa Palavra, Deus como o soberano e aquilo que foi por Ele criado.
1. Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção para esta sub-cláusula: “que Se revelou em Sua Palavra”. Ora, isto não é supérfluo, pois a filosofia não jogou com nenhuma outra palavra tanto quanto o fez com o termo “Deus”. Por vezes, tal expressão indica uma unidade arquetípica; depois, Deus foi novamente identificado com a forma do mundo, etc. etc. etc. Foi particularmente na Idade Média que mais houve equívocos neste ponto, quando vários cristãos buscaram combinar o pensamento pagão com a filosofia contrastada com as Escrituras. Consequentemente, é necessário declarar explicitamente: quando alguém crê que é preciso sustentar, na filosofia, uma concepção acerca de Deus que difere daquele ensinada nas Escrituras, segue-se que esse “deus” é um outro que não o Deus das Sagradas Escrituras, de modo que a filosofia desse indivíduo não é calvinista.
2. Por virtude dessa Revelação escrita, a filosofia contrastada com as Escrituras aceita que Deus criou o céu e a terra, sustentando-os, nesse meio tempo, por meio da Palavra de Seu poder. Portanto, crê-se nele como o fundamento fixo (“hipóstase”) de todas as coisas, e distinguindo-O nitidamente das coisas visíveis e invisíveis que, tanto no céu quanto na terra, se encontram estabelecidas neste “firmamento”.
3. O que é soberania? Essa questão é iluminada, no melhor dos casos, mediante uma analogia da relação entre um monarca absolutista e seus súditos. No que tange aos seres humanos, esse relacionamento deve ser rejeitado e visto como inaceitável, justamente pelo fato de que se encontra enraizado numa concepção que deifica o monarca como o criador do Estado ou como o filho do deus daquela terra. Um soberano humano tal como esse formula uma lei e acredita estar acima dela. No entanto, apenas Deus é o criador de todas as coisas e de cada realidade. Somente Ele pode estabelecer leis reais ao cosmos – somente Ele é o verdadeiro soberano. Ora, entre Deus e o cosmos, existe um verdadeiro “limite”, que, obviamente, não pode ser espacial, dado que a espacialidade pertence ao âmbito da criação, e um limite espacial somente pode separar uma coisa no cosmos de outra coisa que também se encontra no mesmo cosmos, de maneira que esta está situada fora daquela coisa. Todavia, aqueles que creem que Deus se encontra fora do cosmos dessa maneira acima não fariam jus à confissão de Sua imanência. Contudo, ainda assim a palavra “limite” nos é útil, já que possui outro sentido: implica aqui em algo que torna possível uma clara distinção, sem que nos sejamos levados a pensar em termos de espacialidade. É esse o sentido presente quando dizemos: “O limite entre Deus e cosmos é a lei”. Tudo aquilo que se encontra acima da lei do cosmos é soberano sobre ele. Tal predicado, portanto, se aplica somente ao Deus das Escrituras. Tudo que pertence ao cosmos se encontra sob a lei de Deus e está sujeito a Ele, isto é, sujeito ao Senhor.
4. Dificilmente será necessário explanar a expressão “sobre todas as coisas”. Qualquer um que a utilize está aberto para o reconhecimento das diferenças entre as coisas e configurações no cosmos. Simultaneamente, tal expressão contradiz todo aquele que venha a invocar essas diferenças com o intuito de afirmar: “Eis aqui algo que não está sujeito ao SENHOR”. Por exemplo, quando aqueles calvinistas que honravam a monarquia disputavam o dito monarquista princeps legibus solutus est, isto é, “o príncipe se encontra acima da lei”, tal fato se deu de acordo com sua confissão: “Deus legibus solutus est” (em vernáculo: “Deus se encontra acima da lei”). Tais calvinistas, portanto, desse modo, absolutamente não negavam a autoridade do monarca; todos aqueles com certo conhecimento histórico se lembram de que especialmente Calvino distingue nitidamente entre reforma e revolução. O poder do soberano não é, de fato, divinamente soberano, todavia, nada impede que os poderosos deste mundo, que foram colocados para governar sobre os cristãos, sejam reconhecidos, contanto que não proíbam estes de servirem a Deus, em obediência à Sua Palavra.
5. É preciso expandir ainda mais esse pensamento com a seguinte adição: [Deus é soberano, sobre todas as coisas] “em cada domínio”. O cosmos possui outras diferenças individuais além daquelas anteriormente mencionadas entre “uma” e “outra” coisa. Um das variações diz respeito às áreas nas quais uma e a mesma coisa agem. A filosofia pagã geralmente tentou forçar essa rica diversidade num esquema de umas poucas distinções. Calvino, todavia, seguiu um curso de pensamento totalmente diferente. O mundo é obra de Deus, portanto, a criação é muito mais rica do que julga nossa percepção. Tendo isto como ponto de partida, Calvino demoliu todas as construções que somente conduziam a representações enviesadas. Desse modo, ele não apenas rejeitou a distinção católico-romana entre natureza e graça, mas também reconheceu – transcendendo, assim, a doutrina luterana deveras reducionista das estruturas sociais (“família”, “estado” e “igreja”) – a vida econômica em sua singularidade.
O reconhecimento da variegada multiplicidade das criaturas e o conhecimento de que elas, sem exceção, estão sob a lei de Deus, são a fonte da concepção calvinista de liberdade, que renuncia qualquer esforço revolucionário, e que mantém rigorosamente puros os ricos conteúdos dessa concepção. Em primeiro lugar, a liberdade cristã – a libertação do pecado, que nos impede de, em todas as áreas, servir a Deus de acordo com Sua Palavra. Relacionado mas ainda assim distinto disso, se encontra a liberdade que temos em mente quando falamos de igrejas livres, comunidades livres e universidades livres. Os alicerces dessa segunda liberdade se encontram enraizados na percepção de que aquela vida que foi liberta por Cristo do poder do pecado não pode negligentemente desprezar a rica diversidade presente na criação de Deus.
Mesmo num estado cuja população consistisse somente de cristãos, o poder dos oficiais civis deve ser distinguido do poder dos oficiais da igreja constituída. Se não levarmos em conta essa distinção, então um oficial de determinada área intervém reguladoramente na área do outro, e, subsequentemente, sua regulação sempre envolve uma distorção. E uma vez que justamente tal variedade é obra de Deus, é possível compreender, pois, que o calvinista experimenta sua libertação em Cristo também no reconhecimento dessa riqueza e na sua luta contra a estreiteza de mente que, por fim, termina na tiranização de uma área da vida por oficiais de outra área. Essa foi a luta do Dr. A. Kuyper pela soberania das próprias esferas [soberania das esferas].
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Autor: Dirk H. Th. Vollenhoven A falta de clareza que presentemente domina a teologia pode ser reduzida, em larga medida, a certas circunstâncias na área da filosofia. Evidentemente, a teologia, como uma ciência especial, terá ainda problemas suficientes para solucionar, mesmo que os equívocos na filosofia sejam diminuídos. Mas, nesse caso, as questões remanescentes serão formuladas de maneira consideravelmente mais clara e serão, portanto, mais fáceis de serem respondidas.
Creio, portanto, que também a teologia possui um grande interesse no pensamento basilar na filosofia. Mas somente podemos esperar algo da filosofia quando ela compreender o sentido da Reforma e a busca por sua salvação num retorno às Sagradas Escrituras. Um esforço assim intenso em prol de um retorno às Escrituras já se encontrava presente na filosofia de séculos anteriores: pensemos nos Pais da Igreja, especialmente Agostinho, e, posteriormente, Bradwardine; pensemos também nos Reformadores e, dentre eles, chamemos um pelo nome: Calvino!
Assim como Bradwardine, Calvino foi chamado um “novo Agostinho”. Todavia, tal título se encaixa menos no Reformador genebrino do que em Bradwardine, pois, mais profundamente do que os outros – ainda mais profundamente do que Agostinho –, Calvino penetrou no mundo do pensamento das Sagradas Escrituras, de forma que, ainda hoje, nos é vantajoso reportamos a ele. O que é o calvinismo? Por calvinismo devemos entender uma glorificação acrítica das obras escritas por Calvino durante sua vida ou uma repetição literal daquilo que ele pensou?
E aquele que pensa assim possui o direito de recusar o título de “calvinista” a todos que pensam diferentemente do grande Reformador com relação ao primeiro ou último ponto? Evidentemente não. Devemos, pelo contrário, distinguir entre aquilo que em Calvino se deduz imediatamente de seus princípios e aquilo que somente faz sentido com as emergências de sua época e vida. Analisemos primeiramente os princípios de Calvino. Com isto, nos referimos aos pensamentos que não se contradizem, mas que conduzem todo o edifício de sua obra de vida. Com relação a isso, devemos mencionar, em primeiro lugar, o reconhecimento das Sagradas Escrituras como a Palavra de Deus.
Em suas Institutas e no Livro de Ordem Eclesiástica, nas suas controvérsias e comentários, em seus sermões e cartas: em tudo, em suma, o fim de todas as objeções se dá com a invocação da mais alta jurisdição: as Escrituras Sagradas. E ainda hoje esse “princípio formal” da Reforma permanece absolutamente válido para todo aquele que deseja ser designado como calvinista. De semelhante modo, também é de grande importância para a reforma da filosofia. Isto significa que não adotamos, juntamente com a filosofia atual, uma postura crítica com relação à Palavra de Deus e uma posição mais flexível contra a filosofia tradicional, mas, pelo contrário, que ao mesmo tempo em que nos curvamos perante a autoridade das Sagradas Escrituras, devemos investigar com total liberdade tudo aquilo que permanece no tocante à sua veracidade – e isto também com relação ao nosso próprio trabalho. Se tomarmos isso a sério, então, por toda parte, a proposição do problema muda e consequentemente também a resposta. Mas o reconhecimento das Sagradas Escrituras como a Palavra de Deus somente pode apresentar conteúdo substancial ao responder esta questão: “O que dizem as Escrituras?” A resposta calvinista para tal indagação pode ser resumida brevemente nos seguintes pontos:
1. As Escrituras Sagradas ensinam a soberania imediata do Deus que Se revelou na Sua Palavra sobre todas as coisas em todas as relações e todas as áreas; e, em conformidade com isso, as Escrituras distinguem claramente Deus, o soberano, e aquilo que foi criado por Ele.
2. Concebe a religião como unio foederalis (uma unidade pactual) que chega ao conhecimento da família humana mediante a revelação da Palavra também já antes da Queda.
3. De semelhante modo, a resposta calvinista também afirma isto a respeito das circunstâncias após a Queda:
a) a depravação total da humanidade;
b) a morte como punição do pecado;
c) a revelação da graça do Deus soberano no Mediador.
Passemos agora aos pontos fundamentais da filosofia comparados com as Escrituras, isto é, aquelas concepções básicas que levam em conta as Sagradas Escrituras no estudo de todos seus tópicos. No desenvolvimento de seus elementos primordiais, a filosofia pode sutilmente se desviar da resposta calvinista acerca dos principais conteúdos da Bíblia. A filosofia, quando contrastada com as Escrituras, pode, pois, nos ensinar primeiramente a soberania imediata daquele Deus que Se revelou em Sua Palavra, soberania que está acima de todas as coisas – em cada relação e em cada domínio – e também distinguir claramente, de acordo com essa Palavra, Deus como o soberano e aquilo que foi por Ele criado.
1. Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção para esta sub-cláusula: “que Se revelou em Sua Palavra”. Ora, isto não é supérfluo, pois a filosofia não jogou com nenhuma outra palavra tanto quanto o fez com o termo “Deus”. Por vezes, tal expressão indica uma unidade arquetípica; depois, Deus foi novamente identificado com a forma do mundo, etc. etc. etc. Foi particularmente na Idade Média que mais houve equívocos neste ponto, quando vários cristãos buscaram combinar o pensamento pagão com a filosofia contrastada com as Escrituras. Consequentemente, é necessário declarar explicitamente: quando alguém crê que é preciso sustentar, na filosofia, uma concepção acerca de Deus que difere daquele ensinada nas Escrituras, segue-se que esse “deus” é um outro que não o Deus das Sagradas Escrituras, de modo que a filosofia desse indivíduo não é calvinista.
2. Por virtude dessa Revelação escrita, a filosofia contrastada com as Escrituras aceita que Deus criou o céu e a terra, sustentando-os, nesse meio tempo, por meio da Palavra de Seu poder. Portanto, crê-se nele como o fundamento fixo (“hipóstase”) de todas as coisas, e distinguindo-O nitidamente das coisas visíveis e invisíveis que, tanto no céu quanto na terra, se encontram estabelecidas neste “firmamento”.
3. O que é soberania? Essa questão é iluminada, no melhor dos casos, mediante uma analogia da relação entre um monarca absolutista e seus súditos. No que tange aos seres humanos, esse relacionamento deve ser rejeitado e visto como inaceitável, justamente pelo fato de que se encontra enraizado numa concepção que deifica o monarca como o criador do Estado ou como o filho do deus daquela terra. Um soberano humano tal como esse formula uma lei e acredita estar acima dela. No entanto, apenas Deus é o criador de todas as coisas e de cada realidade. Somente Ele pode estabelecer leis reais ao cosmos – somente Ele é o verdadeiro soberano. Ora, entre Deus e o cosmos, existe um verdadeiro “limite”, que, obviamente, não pode ser espacial, dado que a espacialidade pertence ao âmbito da criação, e um limite espacial somente pode separar uma coisa no cosmos de outra coisa que também se encontra no mesmo cosmos, de maneira que esta está situada fora daquela coisa. Todavia, aqueles que creem que Deus se encontra fora do cosmos dessa maneira acima não fariam jus à confissão de Sua imanência. Contudo, ainda assim a palavra “limite” nos é útil, já que possui outro sentido: implica aqui em algo que torna possível uma clara distinção, sem que nos sejamos levados a pensar em termos de espacialidade. É esse o sentido presente quando dizemos: “O limite entre Deus e cosmos é a lei”. Tudo aquilo que se encontra acima da lei do cosmos é soberano sobre ele. Tal predicado, portanto, se aplica somente ao Deus das Escrituras. Tudo que pertence ao cosmos se encontra sob a lei de Deus e está sujeito a Ele, isto é, sujeito ao Senhor.
4. Dificilmente será necessário explanar a expressão “sobre todas as coisas”. Qualquer um que a utilize está aberto para o reconhecimento das diferenças entre as coisas e configurações no cosmos. Simultaneamente, tal expressão contradiz todo aquele que venha a invocar essas diferenças com o intuito de afirmar: “Eis aqui algo que não está sujeito ao SENHOR”. Por exemplo, quando aqueles calvinistas que honravam a monarquia disputavam o dito monarquista princeps legibus solutus est, isto é, “o príncipe se encontra acima da lei”, tal fato se deu de acordo com sua confissão: “Deus legibus solutus est” (em vernáculo: “Deus se encontra acima da lei”). Tais calvinistas, portanto, desse modo, absolutamente não negavam a autoridade do monarca; todos aqueles com certo conhecimento histórico se lembram de que especialmente Calvino distingue nitidamente entre reforma e revolução. O poder do soberano não é, de fato, divinamente soberano, todavia, nada impede que os poderosos deste mundo, que foram colocados para governar sobre os cristãos, sejam reconhecidos, contanto que não proíbam estes de servirem a Deus, em obediência à Sua Palavra.
5. É preciso expandir ainda mais esse pensamento com a seguinte adição: [Deus é soberano, sobre todas as coisas] “em cada domínio”. O cosmos possui outras diferenças individuais além daquelas anteriormente mencionadas entre “uma” e “outra” coisa. Um das variações diz respeito às áreas nas quais uma e a mesma coisa agem. A filosofia pagã geralmente tentou forçar essa rica diversidade num esquema de umas poucas distinções. Calvino, todavia, seguiu um curso de pensamento totalmente diferente. O mundo é obra de Deus, portanto, a criação é muito mais rica do que julga nossa percepção. Tendo isto como ponto de partida, Calvino demoliu todas as construções que somente conduziam a representações enviesadas. Desse modo, ele não apenas rejeitou a distinção católico-romana entre natureza e graça, mas também reconheceu – transcendendo, assim, a doutrina luterana deveras reducionista das estruturas sociais (“família”, “estado” e “igreja”) – a vida econômica em sua singularidade.
O reconhecimento da variegada multiplicidade das criaturas e o conhecimento de que elas, sem exceção, estão sob a lei de Deus, são a fonte da concepção calvinista de liberdade, que renuncia qualquer esforço revolucionário, e que mantém rigorosamente puros os ricos conteúdos dessa concepção. Em primeiro lugar, a liberdade cristã – a libertação do pecado, que nos impede de, em todas as áreas, servir a Deus de acordo com Sua Palavra. Relacionado mas ainda assim distinto disso, se encontra a liberdade que temos em mente quando falamos de igrejas livres, comunidades livres e universidades livres. Os alicerces dessa segunda liberdade se encontram enraizados na percepção de que aquela vida que foi liberta por Cristo do poder do pecado não pode negligentemente desprezar a rica diversidade presente na criação de Deus.
Mesmo num estado cuja população consistisse somente de cristãos, o poder dos oficiais civis deve ser distinguido do poder dos oficiais da igreja constituída. Se não levarmos em conta essa distinção, então um oficial de determinada área intervém reguladoramente na área do outro, e, subsequentemente, sua regulação sempre envolve uma distorção. E uma vez que justamente tal variedade é obra de Deus, é possível compreender, pois, que o calvinista experimenta sua libertação em Cristo também no reconhecimento dessa riqueza e na sua luta contra a estreiteza de mente que, por fim, termina na tiranização de uma área da vida por oficiais de outra área. Essa foi a luta do Dr. A. Kuyper pela soberania das próprias esferas [soberania das esferas].
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Fonte: All of Life Redeemed
Tradução: Fabrício Tavares
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