Será que o Sola Scriptura requer que acreditemos na existência de uma “tradição” (ou “regra de fé”) a qual devemos apelar para ter a interpretação correta da Bíblia? Não há dúvidas de que os escritores cristãos primitivos utilizavam esse termo, e muitos são rápidos em usar esse fato com alegria. Mas quando examinamos o seu significado, descobrimos que a maioria das referências são destinadas ou a um esboço fundamental das crenças cristãs sobre Deus e Cristo, ou a crenças sobre práticas e ritos que não eram doutrinários ou dogmáticos por natureza. Ireneu definiu “tradição” nos seguintes termos:
Todos esses declararam que existe um Deus, criador dos céus e da terra, anunciado pela lei e pelos profetas; e um Cristo, o Filho de Deus. Se alguém não concorda com essas verdades, esse alguém despreza os companheiros do Senhor; mais ainda, despreza o próprio Cristo, Senhor; sim, despreza também o Pai, e permanece auto-condenado, resistindo e opondo sua própria salvação, como é o caso de todos os hereges. (Alexander Roberts e James Donaldson, The Ante-Nicene Fathers, 1:414-415)
Obviamente, o conteúdo dessa “tradição” não é extra-bíblico: as Escrituras claramente ensinam essas coisas. Tertuliano, mais tarde, deu uma versão expandida:
Agora, no que diz respeito a esta regra de fé (para que possamos, a partir deste ponto, reconhecer o que é que defendemos), você deve saber aquilo que prescreve a crença de que existe um só Deus, e que Ele não é outro senão o Criador do mundo, que produziu todas as coisas a partir do nada por meio de Sua própria Palavra; que essa Palavra é chamada de Seu Filho, e, sob o nome de Deus, foi visto em diversas maneiras pelos patriarcas, ouvido durante todas as épocas pelos profetas, enfim levado pelo Espírito e pelo poder do Pai para a Virgem Maria, se fazendo carne em seu ventre, e, tendo nascido dela, se revelando como Jesus Cristo; daí em diante Ele pregou a nova lei e a nova promessa do reino dos céus, operou milagres; tendo sido crucificado, ressuscitou ao terceiro dia; tendo subido aos céus, Ele sentou-se à direita do Pai; enviou, ao invés de si mesmo, o poder do Espírito Santo para liderar os que crêem; virá com glória para levar os santos ao gozo da vida eterna e das promessas celestiais, e para condenar os ímpios ao fogo eterno, após a ressurreição de ambas essas classes ter acontecido, em conjunto com a restauração de sua carne. Esta regra, como será provado, foi ensinada por Cristo, e não levanta entre nós qualquer questão além daquelas que as heresias introduzem, e que fazem os homens hereges. (Tertuliano, Prescrição contra os hereges, 13)
Mas, novamente, tudo isso pode ser derivado a partir do texto inspirado e não existe como uma revelação separada das Escrituras. Se quando alguém fala de “tradição apostólica” e de “interpretar as Escrituras sob a luz da regra de fé”, tudo o que esse alguém quer dizer é que existem certas coisas inegociáveis que são fundamentais para uma compreensão adequada da Palavra de Deus e da fé cristã, dificilmente existirá alguma discussão. Tudo o que se precisa fazer para enxergar essa verdade é notar as relativamente poucas tentativas feitas pelos estudiosos mórmons para fornecer comentários exegéticos sobre os textos das Escrituras, especialmente a literatura neo-testamentária, e a impossibilidade de realizar tal tarefa sob a luz do politeísmo. Deve-se entender os esboços mais básicos da verdade cristã para investigar mais profundamente a revelação das Escrituras, e se alguém começa com erros nesse ponto, os esforços restantes serão em vão. Se isso é tudo o que alguém quer dizer por “regra de fé”, então isso é completamente compreensível.
Na verdade, poderíamos dar um passo adiante e dizer que a regra de fé representa o resumo da doutrina apostólica que existiu até mesmo durante a época em que os documentos do Novo Testamento estavam sendo escritos. Essa regra de fé coincide com o texto pela razão óbvia de que os apóstolos foram os autores de ambos, apesar de termos que notar que seus testemunhos registrados nas Escrituras são mais claros (e mais específicos) que a regra de fé. É eminentemente lógico assumir que a medida em que o Novo Testamento estava sendo escrito, um resumo da verdade cristã já era conhecido e já circulava entre as igrejas; no entanto, é aqui que vemos novamente a sabedoria de Deus nos meios que Ele usa para conceder as Escrituras. Em contraste com a confiança e a verificabilidade dos manuscritos bíblicos escritos, a transmissão oral da tradição é inerentemente sujeita à corrupção (e essa acontece muito rápido).
Em particular, um exemplo impressionante disso é fornecido naquilo que pode muito bem ser a primeira instância documentada de um escritor cristão, especificamente afirmando ter informação proveniente não das Escrituras, mas via “tradição” oral dos apóstolos. Quando Ireneu procurava refutar os argumentos gnósticos do segundo século, ele fez uma referência a um elemento particular de um de seus (dos gnósticos) argumentos, e, sendo bem franco, ele se perdeu por completo. O argumento dos gnósticos era irrelevante, e sua resposta foi errante; ao tentar refutá-los, Ireneu postulou que Jesus tinha mais de cinquenta anos quando Ele morreu no Calvário; ele também afirmou que como Cristo veio salvar tanto bebês quanto crianças, jovens, adultos e velhos, então Ele também tinha que passar por todos esses estágios da vida. Como Ireneu pode demonstrar que Jesus tinha essa idade ao morrer na cruz? Insistindo que ele havia sido informado disso por aqueles que conheciam os apóstolos:
Todos estão de acordo que trinta anos é a idade de homem ainda jovem, idade que se estende até aos quarenta; dos quarenta aos cinqüenta declina na senilidade. Era nesta idade que nosso Senhor ensinava, como o atesta o Evangelho e todos os presbíteros da Ásia que se reuniram em volta de João, o discípulo do Senhor, que ficou com eles até os tempos de Trajano, afirmam que João lhes transmitiu esta tradição. Alguns destes presbíteros que viram não somente João, mas também outros apóstolos e os ouviram dizer as mesmas coisas, testemunham isso tudo. Em quero mais devemos acreditar: nestes presbíteros ou em Ptolomeu, que nunca viu os apóstolos e sequer em sonhos seguiu algum deles? (Ireneu, Contra Heresias, 2:22:5)
Note o que Ireneu afirma, pois a história da igreja está cheia desse tipo de erro. Não existe razão textual alguma para acreditar que Jesus tinha mais de cinquenta anos de idade, ainda assim Ireneu afirma “o Evangelho” como parte dos fundamentos de sua compreensão. Ele rapidamente põe mais peso ao dizer “e todos os anciãos”. Ele apoia essa afirmação ao insistir que “todos os presbíteros da Ásia que se reuniram em volta de João, o discípulo do Senhor,” transmitiram essa informação, mas como isso não parecia ser o suficiente, ele expande a alegação até João, de forma que esse conceito da idade Jesus seja creditado como vindo “também dos outros apóstolos”. Ireneu escreveu dentro de um século depois da morte de João, ainda assim será que hoje alguém acredita que não apenas João mas o resto dos apóstolos ensinaram a seus seguidores que Jesus estava em Sua sexta década de vida quando Ele morreu? Ninguém acredita nos argumentos de Ireneu, pois eles não são fundamentados textualmente; no entanto, não acreditar nisso significa ou que Ireneu estava mentindo quando escreveu essas palavras ou que a “tradição oral” pode ser corrompida muito rapidamente.
Duas lições podem ser aprendidas com Ireneu nesse ponto.
Primeiro, em referência à ideia de que existe uma “regra de fé” originada nos apóstolos, as únicas bases possíveis para aceitar tal conceito seria primeiro vê-lo como meramente um resumo dos ensinamentos apostólicos, e nós obteríamos esse resumo através de todo o espectro dos escritos cristãos primitivos, não de uma fonte em particular. Isso é basicamente o que observamos; os exemplos mais antigos são bem básicos, breves, e com o tempo vão se expandindo. Obviamente, essas expansões estão sujeitas a suspeita, mas também vemos uma preocupação que essa regra de fé vem de todo o espectro das igrejas antigas, não apenas de uma única igreja ou de um único grupo de igrejas. Quanto mais amplo o testemunho, mais sólida é a fundação sobre a qual a regra de fé está.
Segundo, parece impossível evitar a conclusão de que se uma suposta tradição apostólica pode ser corrompida em menos de um século, como podemos levar a sério as afirmações de Roma de que seus dogmas marianos, e em particular crenças como a Imaculada Conceição e Assunção Corporal (crenças que por séculos sequer foram mencionadas em suas formas modernas na história de igreja e que não foram definidas dogmaticamente até poucos anos atrás) são realmente apostólicas em sua origem e forma? Certamente, para alguém ter qualquer base significativa para chamá-las de “apostólicas”, esse alguém deve ver esses dogmas como revelação divina de mesma categoria das Escrituras.
Autor: James R. White
Fonte: Scripture Alone: Exploring the Bible's Accuracy, Authority and Authenticity. Paperback – October 1, 2004.
Tradução: Erving Ximendes
Via: Olhai e Vivei
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