Posteriormente, em meados de 1536 – 1537, Calvino elabora uma espécie de Catecismo que posteriormente receberia o nome de “Instrução e Confissão de Fé, Segundo o Uso da Igreja de Genebra”. Segundo muitos estudiosos do pensamento calvinista, essa obra possuía um caráter mais didático em relação a outros catecismos, pois a mesma não era composta de perguntas e respostas, mas sim de um modo que Calvino julgou acessível aos fiéis. Ainda em 1539, João Calvino elabora aquele que seria conhecido como o Saltério de Genebra, onde traduzira alguns salmos (19 inicialmente). Esta obra fora iniciada por Calvino, mas concluída por Thèodore de Bèze e outros expoentes da cultura musical francesa desse período. O Saltério de Genebra “tornou-se um dos livros mais importantes da reforma” LEITH (1997, apud MAIA, 2000, p. 59). Esta obra teve “um verdadeiro ‘dom de línguas’, já que foi traduzido para o alemão, holandês, italiano, espanhol, boêmio, polonês, latim, hebraico, malaio, tamis, inglês etc., e usado por católicos, luteranos e outras denominações” LEITH (1997, apud MAIA, 2000, p. 60)
Com estas obras, Calvino não só nos mostra sua preocupação com a correta liturgia cristã, mas também seu zelo e cuidado no manuseio para com as Escrituras Sagradas. Assim o faz por conta da pesada herança litúrgica medieval cuja qual estava recebendo. Este corpus litúrgico produzido por João Calvino circulou nas igrejas de Genebra e de Estrasburgo guiando suas respectivas liturgias. Calvino era um homem que tinha receio que as atenções humanas no decorrer da liturgia do culto cristão fossem desviadas do que realmente é mais importante, a saber: as Escrituras Sagradas. A salmodia exclusiva é outro bom exemplo do cuidado e zelo bíblico-litúrgico deste reformador; entendia que o livro de salmos era uma espécie de anatomia de todas as partes da alma, uma espécie de compêndio teológico mais que salutar à igreja. Nada mais justo que cantá-los de forma congregacional. Calvino era um apreciador da harpa (instrumento musical), mas optava pela liturgia da antiga sinagoga judaica. Ou seja, sem o acompanhamento instrumental. Possuía o receio de que quaisquer outras cousas, que não fosse a essência das Sagradas Escrituras, atraísse mais atenção de quem estava cultuando. Assim, imaginemos que se um salmo era cantado com muito floreio musical, ênfase harmônica ou vocal etc., e a beleza de sua harmonia melódica chamasse mais atenção que sua letra em específico, isso seria um pecado grave para com as Escrituras Sagradas no entendimento deste reformador. Calvino nos fala sobre isso:
“Nem contudo, aqui condenamos a voz ou o canto, se não que antes, muito os recomendamos, desde que acompanhem o afeto da alma. Ora, assim exercitam a mente na cogitação de Deus e a retêm atenta, a qual, como é escorregadia e versátil, facilmente se afrouxa e a variadas direções se distrai, a menos que seja de variados adminículos sustentada. Ademais, como em cada parte de nosso corpo, uma a uma, deve luzir, de certo modo, a glória de Deus, convém especialmente seja a língua, que foi criada peculiarmente para declarar e proclamar o louvor de Deus, adjudicada e devotada a este ministério, quer cantando quer falando [...]” (CALVINO, As Institutas da Religião Cristã, III.20.31.)
Para Calvino havia um “elemento central no culto” e este não podia ser outro que não fosse a Palavra de Deus. Esta ideia fora propagada até na organização e na construção das igrejas reformadas na Europa: “As igrejas Reformadas simbolizaram isso nos edifícios que ergueram durante a Reforma, ao colocar o púlpito à frente e no centro do templo” REID (1976, apud MAIA, 2000, p 57). Um bom material para se saber com mais detalhes e informações acerca do culto histórico dos reformados, a expansão do Saltério Genebrino nas mais diversas línguas que fora traduzido, e até a possibilidade de fazer downloads dos salmos cantados, encontra-se no site Westminster hoje (em espanhol) cujo link está disponível aqui. O site reproduziu uma série de sete Artigos do Pastor John Sawtelle sobre o tema.
Conhecido como o “exegeta da reforma”, assim pela riqueza hermenêutica vista em seus comentários, como também por sua forma peculiar de expor as Escrituras Sagradas, Calvino possuía um zelo admirável pela Bíblia. Havia em seu entendimento uma regra sacra: “Que esta seja nossa regra sacra: não procurar saber nada mais se não o que as Escrituras nos ensinam. Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igualmente impeçamos nossa mente de avançar sequer um passo a mais" (CALVINO, Exposição de Romanos (9.14), p. 330). Assim como o salmista no Salmo 139:6, João Calvino entendia que o homem possui um limite intelectual no que tange à interpretação das Escrituras Sagradas e do Deus ali revelado. Ou seja, o limite é justamente até onde Deus quis se revelar. Após isso, a mente humana, além de não ter como, não deve querer avançar. João Calvino conseguia transitar entre a erudição e a espiritualidade sem se manter polarizado em um dos dois de forma extremada. Conseguia entregar às suas ovelhas um alimento sólido, consubstanciado e extraído dos mais finos recursos exegéticos, mas com o compromisso de que todos pudessem compreendê-lo. Afinal, esta deve ser a função principal de todo e qualquer teólogo – traduzir a teologia para a linguagem popular sem que esta sofra mutilações. Não era em vão que lhe recaía outro epíteto, a saber: “Príncipe dos Expositores”. De certa forma, Calvino: “Fugia [...] e de certos refinamentos exegéticos que quando muito só servem para revelar erudição, mas não contribuem para esclarecer o texto e edificar o povo de Deus” CALVINO (1959, apud MAIA, 2000, p. 39).
É muito importante que se destaque a real preocupação dos reformadores como um todo no que concerne à ênfase do “Sola Scriptura”, bem como a disponibilização das Escrituras Sagradas para a população em geral. Por isso a forte atividade de tradução da Bíblia para os respectivos e diversos idiomas dos países em que a reforma se deu com maior ênfase. Logo, essa era uma preocupação de todos os reformadores, uma vez que a Bíblia fora oculta por muitos anos dos olhares do povo em geral.
A teologia de João Calvino pode, de fato, ser reconhecida como sistemática, mas também bíblica ao mesmo tempo. Tendo em vista que o trabalho do “Exegeta da Reforma” se concentrou mais em comentar o Livro Sagrado, sua teologia é bíblica. Porém, Calvino também é conhecido como um grande sistematizador das Escrituras Sagradas. Não adentraremos aqui nas nuances da complexidade da expressão “Teologia Bíblica”, uma vez que tudo que se extraí da Bíblia é bíblico, logo a Teologia Sistemática também é bíblica, pois fora extraída da Bíblia. Acreditamos que a expressão de Geerhardus vos, em seu livro “Teologia Bíblica; Antigo e Novo Testamento”, direcionada às Escrituras Sagradas como sendo “A História da Revelação Especial” seja mais adequada. Mas, discussões à parte, queremos destacar que, como poucos, Calvino consegue unir em sua teologia pontos aparentemente opostos e marcados pela tensão – Teologia Bíblica e Teologia Sistemática é um deles.
A Teologia Exegética era, de fato, uma marca na vida de Calvino, mas que de forma única conseguia unir isso à sua teologia prática. Ele não era um teólogo puramente teórico e sem a parte prática da coisa em si. Ele conseguia converter teoria em prática e prática em teoria. E, como já falamos, conseguia transitar entre o erudito e o espiritual, e o produto disso era visto na sua teologia prática. Um bom exemplo sobre este caráter minimizador de tensões visto na teologia de Calvino é sua posição acerca da Ceia do Senhor junto aos oficiais de sua Igreja em Genebra. É sabido que na alta idade média havia o costume de se celebrar a Ceia do Senhor apenas em caráter anual – uma única vez –, mas João Calvino combate essa ideia com ênfase no costume primitivo da igreja cristã que corriqueiramente desfrutavam de momentos de comunhão “junto à mesa” (Atos 2: 44-47). O epicentro da tensão na Igreja de Genebra recai entre Calvino, que entende que a Ceia do Senhor deve ser semanalmente realizada, e os oficiais da igreja que entendem que a Ceia do Senhor deveria ser ministrada apenas quatro vezes por ano e em datas específicas. Esta tensão, se fosse em dias atuais, com toda convicção, teríamos o assunto resolvido pelo víeis da tirania ou do terrorismo proféticos que são realizados por alguns líderes que fazem de suas igrejas verdadeiros quartéis militares. Porém, a tensão entre João Calvino e seus oficiais na Igreja de Genebra foi resolvida por meio da condução do Espírito Santo, que concedeu a Calvino uma estratégia salutar para resolução da problemática. O “Exegeta da Reforma” fez acordos entre as mais diversas igrejas vizinhas em relação à data da Ceia do Senhor, conseguiu variar estas datas entre cada igreja da cidade e proporcionar que houvesse culto de Ceia semanalmente – não na sua igreja em específico –, mas entre as igrejas da cidade. Com isso, avisava aos membros de sua própria igreja que eles deveriam visitar as outras igrejas nos cultos de Ceia especificamente, e assim estimular a comunhão entre os irmãos e as igrejas vizinhas junto à mesa de Cristo. Com isso, João Calvino conseguiu estabelecer seu ideal de que a Ceia do Senhor fosse ministrada semanalmente, sem desavenças ou perseguições. Seu trabalho sempre foi em prol do crescimento harmônico do corpo de Cristo.
Percebemos em tudo isso que João Calvino era, de fato, um servo de Deus no sentido mais estrito da palavra. Um homem que possuía um zelo imenso pelas Escrituras Sagradas. Um homem a ser estudado e entendido, um exemplo de erudição e espiritualidade isento de polarizações e extremismos nessas áreas. Um reformador que transitava entre os mais refinados recursos exegéticos, mas que tudo isso desembocava numa teologia prática piedosa e que sempre apontava para um alvo cristocêntrico. Dizem que reformar dar mais trabalho que construir. Com certeza, reformar a igreja foi um trabalho árduo, mas também exitoso e que custou tempo, dedicação e a vida de muitos homens comprometidos com Deus. As bases foram refeitas e postas – Sola Scriptura, Sola Christus, Sola Gratia, Sola Fide e Sola Deo Glória – devemos permanecer sempre sobre o alicerce desta tradição.
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Bibliografia:
• CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. São Paulo, CEP, 1985
• CALVINO, João. Comentário de Romanos, Editora Fiel, Edição Virtual Autorizada (Biblioteca de Calvino)
• MAIA; LEMBO; QUADROS; GOUVEIA. O Pensamento de João Calvino. São Paulo, Mackenzie, 2000
• MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São Paulo, Cultura Cristã, 2004
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Autor: Thiago Azevedo
Divulgação: Bereianos
1 comentários:
Artigo esclarecedor e instrutivo.
ResponderLouvado seja Deus.
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