Ao investigar esse assunto, os estudiosos gostam de destacar a primeira vez que encontramos uma lista completa de 27 livros. Sem nenhuma surpresa, a lista contida na famosa Carta Pascoal (367 d.C) de Atanásio é mencionada como a primeira vez que algo assim aparece na história da Igreja Cristã.
Como resultado, frequentemente ouvimos que o Novo Testamento foi um fenômeno tardio e que os cristãos não possuíam o Novo Testamento até o final do quarto século. No entanto, esse tipo de raciocínio é problemático em vários níveis. Em primeiro lugar, nós não avaliamos a existência do Novo Testamento apenas através da existência de listas. Se examinamos a maneira que certos livros foram usados pelos pais da igreja primitiva, fica evidente que existia um cânon operante muito antes do quarto século. De fato, lá pelo segundo século já existia uma coleção central de livros do Novo Testamento funcionando como Escrituras.
Em segundo lugar, existem razões para acreditar que a lista de Atanásio não é a mais antiga lista completa que possuímos. O Dr. Michael Kruger argumenta que, por volta de 250 d.C., Orígenes produziu uma lista completa contendo os 27 livros do Novo Testamento (mais de 100 anos antes de Atanásio). Em sua maneira tipicamente alegórica, Orígenes usou a história de Josué para descrever o cânon do Novo Testamento:
“Mas quando o Senhor Jesus Cristo veio – cuja chegada o filho de Num havia designado – ele enviou Seus sacerdotes, Seus apóstolos, carregando “trombetas de obra batida”, a instrução celestial e magnífica da proclamação. Primeiramente Mateus soou a trombeta sacerdotal em seu Evangelho; Marcos também; Lucas e João tocaram cada um suas trombetas sacerdotais. Até mesmo Pedro clama com trombetas em suas duas epístolas, assim como Tiago e Judas. Adicionalmente, João também soa a trombeta através de suas epístolas [e Apocalipse], e Lucas ao descrever os Atos dos Apóstolos. E por último vem aquele que disse “Porque tenho para mim, que Deus a nós, apóstolos, nos pôs por últimos” e que em catorze de suas epístolas, retumbando com trombetas, derruba as muralhas de Jericó e todos artifícios de idolatria e dogmas de filósofos…” (Hom. Jos. 7.1)
Como se pode ver na lista acima, todos os 27 livros do Novo Testamento são computados (Orígenes claramente identifica Hebreus como uma carta de Paulo). A única ambiguidade está numa questão de crítica textual e a citação a Apocalipse, no entanto temos grande evidência, provinda de outras fontes, de que Orígenes aceitava Apocalipse como Escritura (Eusébio, Hist. Eccl. 6.25.09).
É claro que algumas pessoas tem rejeitado esse argumento e objetado que essa lista apenas reflete as opiniões de Rufino de Aquileia, responsável por traduzir as “Homilias sobre Josué” de Orígenes para o Latim. No entanto, essa é uma suposição questionável. O Dr. Michael Kruger, em um artigo intitulado “Origen’s List of New Testament Books in Homiliae on Josuam 7.1: A Fresh Look” argumenta que Rufino é, como tradutor, muito mais confiável do que os antigos estudiosos supunham. Além disso, a confiabilidade da lista canônica de Orígenes encontra suporte no fato de que ela se encaixa com aquilo que Orígenes diz em outras obras. Por exemplo, Orígenes enumera todos os autores do Novo Testamento em suas “Homilias sobre Gênesis”, e isso coincide com a lista dos livros do Novo Testamento dada acima:
Isaque, portanto, também cava novos poços. Ou melhor, os servos de Isaque os cavam. Esses são: Mateus, Marcos, Lucas, João. Seus servos são Pedro, Tiago, Judas; o apóstolo Paulo é seu servo. Todos esses cavam os poços do Novo Testamento (Hom. Gen. 13.2).
Pode-se ver rapidamente que a lista de autores (novamente em seu clássico estilo alegórico) coincide com a lista de livros. Apesar de Rufino também ter traduzido as Homílias sobre Gênesis, será que devemos realmente pensar que ele mudou ambas passagens precisamente da mesma maneira? Parece bem mais provável que elas combinam simplesmente pelo fato de elas refletirem as verdadeiras opiniões de Orígenes.
Nossas suspeitas são confirmadas quando comparamos as duas passagens de Orígenes com a lista de livros canônicos do próprio Rufino. Se Rufino fosse culpado de adulterar a lista de Orígenes para coincidir com a sua, seria de se esperar que encontrássemos muitas similaridades estruturais entre elas. No entanto, isso é precisamente o que não encontramos. Na verdade, a lista de Rufino difere da de Orígenes em várias maneiras.
No final das contas, temos razões históricas suficientes para aceitar a lista de Orígenes como genuína. E se esse é o caso, então temos evidência de que (a) os cristãos já estavam fazendo listas muito antes do que estávamos supondo (e portanto se importavam com quais livros ficariam “dentro” e “fora”); e (b) que as fronteiras do Novo Testamento eram, ao menos para pessoas como Orígenes, mais estáveis do que tipicamente se supõe.
Além dos ótimos pontos levantados pelo Dr. Kruger, temos outra evidência de que o Cânon de 27 livros é anterior à Carta Pascoal de Atanásio. Everett Ferguson escreve o seguinte:
“No entanto, pode-se notar que, de acordo com Agostinho, os donatistas cismáticos, que surgiram graças a conflitos resultantes de diferentes respostas ao comando de entregar as Escrituras (na perseguição diocletiana do quarto século), não possuiam Cânon diferente das igrejas católicas da África do Norte… Cresc. 1.37; cf. a definição desses em Unit. Eccles. 19:51: ‘As Escrituras Canônicas da Lei e dos Profetas as quais são adicionadas os Evangelhos, as Epístolas Apostólicas, os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse de João.'” (Lee McDonald e James Sanders, edd., The Canon Debate [Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2002])
Portanto, podemos concluir que o Novo Testamento não é um fenômeno tardio como os secularistas querem que seja. Orígenes não oferece sua lista como uma inovação ou como algo que poderia ser considerado como controverso. Para falar a verdade, ele menciona essa lista no contexto de um sermão de uma maneira bem natural. Ao menos para Orígenes, parece que o conteúdo do Novo Testamento já estava definido.
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Fonte: What is the earliest compilation of the Canon of the New Testament
Adaptação: Erving Ximendes
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