Falando a verdade em amor: o uso de Zacarias 8.16 em Efésios 4.25

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Introdução

Um dos pecados mais explícitos e persistentes das redes sociais é a falta de amor nas palavras. A incessante jogatina de ideias teológicas entre aqueles que professam a fé cristã tornam aquilo que deveria ser um diálogo bíblico em um horrível e irracional vale tudo. Num combate onde os fins justificam os meios, a única regra é vencer, custe o que custar.

Esta compulsiva necessidade de superioridade e de ter sempre razão em tudo está tão longe da ética cristã revelada por Jesus e seus apóstolos, como o ocidente está longe do oriente. 

Por esta razão, a exortação do apóstolo Paulo na carta aos Efésios, sobre a ética cristã de falar a verdade, mas falar com amor, faz-se urgente para esta geração de cristãos cibernéticos.

O objetivo deste artigo é esclarecer o texto de Efésios 4.25 que diz: “Pelo que deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo, pois somos membros uns dos outros”, através da análise de seu contexto e de seu pano de fundo veterotestamentário (Zacarias 8).

1. Análise contextual

1.1 O contexto do Novo Testamento: Efésios 4.25

Na primeira metade da carta de Paulo aos Efésios, aprendemos que seus leitores originais, e todos os cristãos genuínos de todas as eras, são chamados pelo Deus trino para um destino que transcende qualquer imaginação. Esse destino é revelado no amor do Pai por nós antes da fundação do mundo, na morte e ressurreição do Seu Filho Jesus Cristo, para nos livrar do destrutivo relacionamento quebrado entre o Criador e a criatura, causado pela rebelião humana; e no dom do Espírito Santo, garantindo que Ele não apenas iniciou sua obra em nós, mas irá completa-la.[1]
 

A ressurreição de Jesus inaugurou a nova criação e, pela fé Nele, somos unidos a Ele e passamos a fazer parte dessa nova criação, formando uma nova humanidade. A cruz não trouxe apenas paz entre nós e Deus, mas também trouxe a reconciliação dos relacionamentos humanos quebrados (2.11-18). A doxologia inicial dessa carta mostra que Paulo entendia que tudo isso era bênçãos de Deus às nações através de Abraão.[2]

Paulo, então, explica na segunda metade da carta (cap. 4-6) como nós, que fomos chamados por Deus, devemos cumprir Seu plano/propósito em termos práticos da nossa vida cotidiana, enquanto ainda estamos neste mundo que ainda não foi entregue ao julgamento.[3]


Em primeiro lugar, Paulo foca na unidade intrínseca para a comunidade da nova humanidade (4.1-6). Em segundo lugar, ele mostra a diversidade nessa comunidade como um dom do Cristo ressurreto para nos capacitar a crescer e amadurecer (4.7-16). O alvo dessa nova humanidade é se tornar como Cristo, o primeiro homem da nova criação.[4]

Assim como os Rabis judaicos discutiam o comportamento exigido pela Torá, Paulo descreve (4.17-6.20) a conduta ou o “halakah cristão”.[5] Um esboço mais amplo dessa seção começa em 4.17-24, ordenando seus leitores a se despojarem da antiga humanidade e se revestirem da nova e termina em 5.6-14 falando sobre a mudança das trevas para a luz. Paulo, então, passa a ensinar sobre os relacionamentos internos e externos a essa nova comunidade. Ele fala sobre o relacionamento entre marido e esposa (5.15-33), pais e filhos (6.1-4), senhores e servos (6.5-9) e o nosso relacionamento com nosso inimigo e com a guerra espiritual (6.10-20).

Resumo de 4.1-6.20: O que o chamado cristão significa em termos práticos.


         1. Unidade, diversidade, e maturidade no corpo de Cristo (4.1-16)

         2. Vida de acordo com a comunidade da nova criação (4.17-5.14)
             A. Da antiga para a nova humanidade (4.17-24)
             B. Instruções específicas (4.25-5.5)
             A. Das trevas para a luz (5.6-14)

         3. Relacionamentos dentro da comunidade da nova criação (5.15-6.9)

         4. Relacionamentos fora da comunidade: poderes das trevas e guerra
         espiritual (6.10-20)


1.2 O contexto do Antigo Testamento: Zacarias 8.16.

O profeta Zacarias escreveu para os judeus que estavam retornando para sua terra natal após anos de exílio na Babilônia. O livro começa com um chamado ao arrependimento e uma promessa de que se o povo abandonasse seus pecados e retornasse para Deus, Ele se voltará para eles (Zc. 1.3).

Uma série de visões noturnas apocalípticas (caps. 1-6) desvenda com detalhes o retorno de YHWH. Infelizmente não temos espaço aqui para analisarmos a macroestrutura quiásmica dessas visões, mas um breve resumo nos será proveitoso. Essas visões são anúncios proféticos de um retorno do Exílio, muito maior do que apenas deixar a babilônia e voltar para Jerusalém. Seus pecados serão perdoados, a aliança quebrada será renovada, a cidade de Deus será restaurada e o templo reconstruído, aonde Deus virá mais uma vez para habitar com Seu povo como Rei.[6] 

Os capítulos 7-8 coroam o motif da restauração, trazendo-o a um clímax. A perícope se move do jejum exílico para uma festa na Sião restaurada.

Mike Butterworth demonstrou a unidade estrutural quiásmica dessa seção (caps. 7-8):

A v.2: Betel envia homens para suplicar o favor do Senhor.
B v.3: Questão sobre jejum.
vv. 5-7: O que está por traz do jejum? Lembrar das palavras dos profetas anteriores, quando a cidade era próxima.
C vv. 9-10: Decisões judiciais que são justas, mostrar compaixão e fidelidade. Não fazer mal contra o próximo.
D vv. 11-14: Eles não ouviram as palavras dos profetas anteriores. Portanto, veio grande ira da parte do Senhor e o povo foi exilado e a nação devastada.
E vv 2-8a: Tenho grande zelo e zelo por Sião com grande indignação... Habitarei no meio de Jerusalém. Promessa de benção para o remanescente do povo. Salvarei meu povo.
E vv. 9-13: Fortalecei as mãos. Promessa de benção para o remanescente do povo. Era maldição para as nações, porém Eu vos salvarei. Não temais, mas fortalecei as mãos.
D’ vv. 14-15 Vos castiguei porque me provocaram a Ira, mas resolvi esses dias fazer-te o bem; Não temas.
C’ vv. 16-17 Decisões judiciais que são justas. Fale a verdade com o seu próximo. Não planejar o mal contra o próximo.
B’ vv. 18-19 Os jejuns se transformarão em festas. Amai a verdade e a paz.
vv. 20-23 Muitos virão suplicar o favor do Senhor. Benção fluirá para as nações através dos judeus.[7]

A estrutura em quiasmo é construída para enfatizar o “centro” da perícope, portanto a mensagem central desses capítulos se encontra em 8.2-13, ou seja, a promessa de benção para o remanescente do povo.

Podemos notar ainda outro quiasmo menor, nos versos que nos interessam mais para a exegese de Efésios 4.25. Em 8.16-17 o quiasmo se desenvolve da seguinte maneira: Geral, particular, particular, geral; ABBA, compostos por quatro imperativos, sendo dois positivos (v.16) e dois negativos (v.17). A estrutura é a seguinte:


          A v.16 Mandamento geral.

          B Mandamentos positivos particulares
             1 Falar a verdade
             2 honestidade nos tribunais

          
B’ v.17 Mandamentos negativos particulares
             1 Não planejar o mal contra o próximo
             2 Não amar o falso juramento

           
A’ Sumário geral.[8]


Zacarias não profetizou em um vácuo. Ele utilizou os profetas anteriores a ele, especialmente Isaías. Seria extremamente enriquecedor para nossa exegese se analisássemos o uso de Isaías, tanto em Zacarias 8 como na carta aos Efésios, mas extrapolaria em muito nosso espaço aqui.

2. O uso de Zacarias 8.16 em Efésios 4.25.

Existe uma profunda ligação tipológica e histórico-salvífico entre Zc. 8 e Ef. 4. Em Zacarias “falar a verdade ao próximo” é a primeira de uma série de admoestações, de uma seção exortativa (8.16-19). Zacarias 8 é precedido pela promessa de uma nova Jerusalém (8.1-15). Os imperativos do verso 16 são dirigidos diretamente para o remanescente do povo. Eles habitarão em Sião, que será chamada de “cidade da Verdade” (v.3) por causa da presença de YHWH (Sião como o centro da revelação Divina (8.20-23) para onde todas as nações irão peregrinar é um cumprimento da expectativa profética de Is. 2.2-4). O povo de YHWH será caracterizado pela verdade, justiça e santidade, portanto o “próximo”, que no contexto é um membro da comunidade, deve esperar ser tratado com fidelidade.[9]

Efésios 4.25 se vale dessa primeira exortação para se dirigir a nova comunidade de Cristo, o novo homem, que é criado segundo Deus em verdadeira justiça e santidade (4.24). Nessa nova comunidade escatológica, o “próximo” (companheiro cristão) tem o direito a verdade. Aquilo que foi profetizado sobre o futuro povo escatológico de Deus em termos de nova Jerusalém, é usado por Paulo para se referir ao novo homem, a nova comunidade de Deus em Cristo.

Portanto, “falar a verdade ao próximo” é apenas o topo do iceberg em termos da função que Zacarias 8 desempenha na mente de Paulo, o que está em linha com a tradição exegética de seu tempo, onde a citação de um texto traz todo o seu contexto junto.

Conclusão

O fundamento para falarmos a verdade é o fato dos cristãos serem membros uns dos outros (4.25). Ou seja, somos mutuamente dependentes uns dos outros. E é exatamente por esse motivo que devemos falar (ou seguir) a verdade em (com) amor (4.15).

Portanto, a nova comunidade de Cristo é marcada pelo ensino da verdade e sim pela confrontação do erro, do pecado e da heresia com a verdade do evangelho. Mas isso não deve ser feito com arrogância, ódio ou inveja. O amor é a principal característica do povo escatológico de Deus, onde todos são renovados e habitados pelo Espírito de Cristo, ao passo que a ausência dessa virtude coloca em cheque a veracidade da participação dessa pessoa dentro do povo de Deus, ou no mínimo assina a imaturidade dessa pessoa.

Labutemos pela verdade com amor, para a glória de Deus na edificação de Sua Igreja.

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Notas:
[1] Peter Gentry e Stephen Wellum, Kingdom through Covenant – A biblical-theological understanding of the Covenants (2012). p. 565.
[2] Cf. Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Ibid. p. 574.
[7] Mike Butterworth, Structure and the book of Zechariah, JSOTSup. 130 (1992) pp. 149-165.
[8] Clark, D. J., & Hatton, H. A. (2002). A handbook on Zechariah (p. 214). New York: United Bible Societies.
[9] O’Brien, P. T. (1999). The letter to the Ephesians (p. 338). Grand Rapids, MI: W.B. Eerdmans Publishing Co.

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Autor: Willian Vitor Orlandi, membro da Igreja Batista da Graça em Indaiatuba, SP, onde auxilia na área de pregação, EBD e catequese. Cursando teologia no Seminário Martin Bucer em São José dos Campos, SP. Casado com Vitória Guedes Orlandi.
Divulgação: Bereianos
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