O propósito da salvação em 1 Pedro - 1/5

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Por Leonardo Dâmaso

O propósito da salvação
(1 Pedro 1.13-25)

Introdução

Após tecer um louvor de agradecimento a Deus, e, ao mesmo tempo, discorrer com virtude sobre a obra da salvação em Cristo Jesus através de uma série de afirmações indicativas (vs.3-12), Pedro, dessa vez, relaciona a santidade na vida cristã como evidência e finalidade da salvação. Se outrora o apóstolo afirmou a nossa salvação expondo algumas das principais doutrinas da graça, tais como: eleição, expiação, regeneração, santificação (vs.2-3), agora ele nos chama através de uma série de imperativos (exortações) para viver esta salvação na vida prática (1.13-25). Além de explicar para quê o cristão foi salvo, estas doutrinas da graça são, também, a base do chamado a um estilo de vida em obediência.

O esboço homilético desta seção pode ser dividido em três pontos, ou seja, o propósito da salvação consiste em: 1 Uma vida em santidade (1.13-16). 2 Uma vida com reverência (1.17-21). 3 Uma vida em amor (1.22-25).         

1. Uma vida em santidade (1.13-16)

Tendo recebido o dom da salvação em Cristo Jesus (vs.9), os destinatários de Pedro bem como os cristãos em geral não devem desprezar este inefável presente sendo negligentes na salvação. Como filhos de Deus, devemos viver em conformidade com a sua vontade, que consiste numa vida em obediência a sua Palavra (veja Mc 3.35; Jo 9.31; 1Pe 2.15). A realidade da salvação deve se expressar em santidade vivida. 

1.13 Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios e esperai inteiramente na graça que vos está sendo trazida na revelação de Jesus Cristo.

Pedro, através de uma série de imperativos (exortações), instrui os seus leitores e a todos os cristãos em como viver uma vida que glorifica a Deus. Para vivermos em santidade é necessário:

a) Dispormos a mente. A preposição por isso é uma conclusão afirmativa que antecede o tema da obra da salvação tratado nos versículos 3-12. Pedro, agora, liga a salvação com a santidade (vs.13), e, desse modo, tomando por base esta salvação que é recebida pela fé em Jesus Cristo (vs.5), exorta-nos a cingir o nosso entendimento. A expressão cingindo o vosso entendimento, ou como é na tradução literal do grego – “cingindo os lombos do vosso entendimento”1 é uma metáfora que, na época de Pedro, no século 1, era facilmente compreendida por todas as pessoas. Porém, hoje, no mundo moderno, é necessária uma explicação mais acurada do seu significado. 
  
Cingir os lombos, na antiguidade, era um hábito dos orientais. A túnica, uma roupa comum e usada na época, era uma peça larga e comprida, semelhante a um vestido longo que cobre todo o corpo. Era colocada sob o manto ou a capa e usada com um cinto sob a cintura. Esse tipo de roupa, sem o cinto, atrapalhava a pessoa a exercer algum tipo de trabalho que exigisse movimentos longos e intensos em alguma atividade física que era preciso certa agilidade. Sendo assim, para ter uma boa mobilidade e evitar empecilhos, a pessoa cingia os lombos (ou quadris), isto é, colocava o cinto sobre a túnica. Em outras palavras, a expressão moderna e equivalente para nós, hoje, seria dizer: Vamos “arregaçar as mangas ou tirar o casaco”, que indica algum trabalho ou atividade física que fôssemos exercer.

A palavra entendimento, no grego διάνοία (dianoia), se refere à mente; “significa pensar em algo e tirar as conclusões apropriadas”.2 Portanto, Pedro utiliza e aplica esta metáfora do cingir os lombos dizendo aos seus leitores e a todos os cristãos que eles devem estar com a sua mente preparada e disposta para agir colocando em prática aquilo que ouviram, ou seja, tudo o que foi dito anteriormente sobre a salvação (vs.3-12).

Aplicação prática

O entendimento, aqui, se refere ao modo pelo qual nos relacionamos com Deus através da mente que irá convergir na nossa conduta. Em vista disso, a nossa mente deve estar disciplinada e livre de qualquer coisa que possa servir de obstáculo para, assim, vivermos uma vida cristã pautada nas Escrituras e que glorifique ao Senhor. A nossa mente precisa estar subjugada aos preceitos de Deus para que possamos compreender a sua vontade para a nossa vida, discernindo entre o certo e errado, entre a verdade e a heresia, e não aos preceitos que norteiam o mundo e a vida de muitos “ditos” cristãos, como, por exemplo, o evangelho caracterizado pelo materialismo e a preocupação exacerbada com a estabilidade e a satisfação pessoal na vida.

O materialismo é uma avidez desenfreada pelo consumismo, e a preocupação exacerbada com a estabilidade e a satisfação pessoal na vida, além de serem o lema da sociedade secular, tem sido também o lema da igreja evangélica em sua maioria. O “evangelho” mundano que tais “cristãos” creem apresenta o seguinte slogan: Eu tenho que ter isso e aquilo de qualquer maneira! Portanto, vou lutar e trabalhar sobremaneira para conquistar tudo o que eu desejo ter neste mundo profetizando e barganhando com Deus! Ou: Eu só serei feliz se tiver dinheiro, uma namorada (o), uma esposa (o) e saúde!  

Todavia, o materialismo é pecado, mas a motivação pela estabilidade e satisfação pessoal não são pecado em si. No entanto, esta motivação se torna pecado quando depositamos toda a nossa esperança e as colocamos como prioridade em nossa vida em detrimento de Deus, que é a nossa prioridade (1Cor 15.19; Cl 3.1-3). O evangelho mundano caracterizado pelo materialismo e a preocupação exacerbada pela estabilidade e satisfação pessoal têm corrompido e desvirtuado a mente de muitos cristãos. Portanto, conforme a ideia no grego, era como se Pedro dissesse: Não permita que qualquer coisa tire o foco da sua mente em relação a compreender e obedecer a Palavra de Deus!

Para vivermos em santidade é necessário:

b) Sermos sóbrios. Se os cristãos devem cingir o entendimento no sentido de estar com a mente preparada, disciplinada e disposta para viver a salvação que ouviram na vida prática, Pedro prossegue exortando-os que, agora, eles devem ser sóbrios3 (4.7; 5.8).  

No grego, a expressão sede sóbrios νήφοντες (nephontes), literalmente “sendo sóbrios”, é um particípio presente ativo que, traduzido como um imperativo, seria como se eu dissesse que “estou sóbrio ou tenho autocontrole”. Esta palavra descreve uma pessoa que tem domínio próprio tanto em relação à bebida alcoólica, evitando, assim, a embriaguez e, de modo geral, a qualquer tipo de êxtase frenético que extraia a pessoa da racionalidade. Entretanto, aqui, de forma mais ampla, se refere à pessoa que não está “embriagada” por coisa alguma estando com a mente lúcida.4 Ser sóbrio, portanto, além de ser constante, firme e perseverante no pensamento acerca da esperança da salvação em Cristo Jesus, significa, também, “ser calmo, estável e controlado” 5 (veja a mesma ideia em 2Tm 4.5; 1Ts 5.6, 8). 

Aplicação prática

John MacArhtur acentua que o cristão sóbrio é responsável de modo correto por suas prioridades e não se deixa embriagar pelas distrações do mundo.Não obstante, é bem verdade que o falso evangelho mundano que corrobora o materialismo e a preocupação exacerbada pela estabilidade e satisfação pessoal e todas as suas outras “falsas doutrinas” são um tipo de "droga" que tem entorpecido muitos cristãos verdadeiros, os quais são cristãos incautos e sem discernimento espiritual.
   
Os prazeres mundanos como a bebida alcoólica, a pornografia, a fornicação (o sexo fora do casamento), o adultério, a desonestidade, a mentira, as baladas e as orgias são, também, "drogas" que tem entorpecido muitas pessoas nas quais, algumas, são até cristãos verdadeiros que, enfraquecidos pelas negligencias e omissões, se desviaram do evangelho.

O cristão verdadeiro que está entorpecido pelo falso evangelho pode ter o seu entendimento elucidado pelo Espírito Santo para o conhecimento do verdadeiro evangelho e ser liberto da "droga" chamada falso evangelho. O cristão desviado e entorpecido pelos prazeres mundanos pode, também, ser resgatado e restaurado por Deus à sobriedade sendo introduzido novamente à comunhão da igreja. Certamente o Senhor não abandona os seus! Ele cuida de nós!

Para vivermos em santidade é necessário:

c) Esperarmos na graça. Depois de instar os cristãos acerca da necessidade de serem vigilantes e equilibrados, estando com a mente livre de qualquer perturbação e inclinada para a salvação em Cristo Jesus, Pedro, dessa vez, acentua que eles devem também depositar toda a esperança que possuem na graça que será entregue quando Jesus Cristo se revelar. 

O verbo esperar, no grego έλπίσατε (elpisate), significa, basicamente “colocar a esperança”. É uma forma verbal de esperança έλπίδα (elpis) que, no versículo 3, declara que os cristãos, a partir da regeneração, já recebem a salvação, porém, de modo parcial. Esta salvação parcial, contudo, é apenas o prelúdio daquilo que ainda é esperado, ou seja, a salvação na sua plenitude no qual o versículo 5 aborda. Todavia, o verbo esperar, aqui, é seguido pelo advérbio τελειος (teleios), que pode ser interpretado de duas maneiras:  

1. Enfatizando o verbo esperar conforme traduziu a ARA por esperai inteiramente. 2. Como uma indicação ao modo pelo qual os cristãos devem viver esta esperança, isto é, com maturidade e integridade (veja o uso do advérbio τελειος (teleios) também em Tg 1.2-4). Embora estas duas interpretações sejam possíveis, contudo, seria melhor entendermos o advérbio τελειος (teleios) como uma ênfase no verbo esperar, no qual se harmoniza perfeitamente com o contexto geral da carta (3.5). Desse modo, Pedro exorta os cristãos a esperar inteiramente, que significa “depositar a esperança”. 

Logo, vemos que esta esperança descrita não consiste em uma pessoa, mas em um objeto, ou seja, “na graça”. Esta graça que nos versículos 2 e 10 está no tempo presente, não obstante aqui, é sinônimo da salvação futura (vs.4, 9). Deus, portanto, está “trazendo a graça para os cristãos na revelação de Jesus Cristo”.

A expressão revelação de Jesus Cristo ARA é uma repetição da última parte do versículo ,e tem o mesmo sentido aqui como uma referencia não a primeira vinda de Cristo, mas a sua segunda vinda em glória (1Cor 1.7-8). A obra da redenção dos pecadores eleitos será concluída quando Jesus voltar. A plenitude da salvação chegará através do livramento da presença do pecado pela glorificação do corpo e da alma. Portanto, “olhar para a volta de Cristo fortalece a fé e a esperança em tempos difíceis e concede mais da graça de Deus (Tt 2.10-13)”7    

Não obstante, a seguir, nos versos 14-16, observamos que Pedro amplia o tema da santidade na vida cristã começando uma nova série de imperativos (exortações) baseados em três pontos. Senão vejamos:

a) Um solene aviso acerca do perigo à santidade.

1.14 Como filhos da obediência, não vos amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância.           

Pedro, aqui, tece uma advertência aos seus leitores históricos e a todos os cristãos. O apóstolo assevera que, uma vez que foram eleitos para a salvação em Cristo Jesus por Deus Pai (vs.2), regenerados pelo Espírito Santo para a esperança da salvação futura e uma vida em santidade (vs.3, 13), os cristãos, todavia, não devem retornar ao estilo de vida que tinham no passado quando não conheciam o evangelho, o qual era caracterizado pela prática do pecado. Sendo assim, Pedro diz o que estes cristãos “devem fazer” (imperativo positivo). Vejamos então:

i. Os cristãos devem ser obedientes. A expressão filhos da obediência “é um linguajar semita (hebraico). Significa algo como: pessoas que são cunhadas integralmente pela obediência”(veja os exemplos similares em Lc 10.6; Ef 5.8; 2Ts 2.3).  

Geralmente, os filhos obedientes “são os filhos de uma pessoa que faleceu e deixou um testamento para que recebam a herança. Os cristãos são chamados de filhos, não por nascimento, mas por adoção. Entre os gregos e romanos do século 1, a prática da adoção era bem comum. Um filho adotivo desfrutava dos mesmos privilégios que o filho natural, até mesmo a ponto de dividir a herança”. Em vista disso, Pedro chama os seus destinatários e todos os cristãos de filhos da obediência, ou, em outra tradução, de “filhos obedientes” a fim de esboçar o conceito de santidade a eles. Portanto, ser filho da obediência é viver uma vida que desemboque em obediência, que pode ser definida simplesmente como fazer a vontade de Deus (1.2).

Após delinear o que os cristãos devem fazer, Pedro, agora, diz o que eles “não devem fazer” (imperativo negativo). Senão vejamos:

ii.  Os cristãos não devem se amoldar novamente aos desejos que tinham no passado. Embora os primeiros destinatários históricos de Pedro fossem uma mescla de Judeus e gentios (1.3, 12, 14, 18, 22-23, 25; 2.9-10; 4.3), todavia, o apóstolo relembra aqui especificamente o estilo de vida dos cristãos gentios no passado antes da conversão, a fim de avisá-los do perigo de retornar a este velho estilo de vida que Deus não se agrada. Diferente dos judeus, que conheciam a lei moral, estes gentios eram pagãos e ignorantes quanto ao conhecimento da vontade de Deus revelada nas Escrituras. Por essa razão, tinham o seu modus vivendi (modo de viver) conduzido pelas mais variadas paixões9 ou “desejos pecaminosos”.

No grego, a expressão não vos amoldeis σνσχηματιςόμενοι (syschematizomenoi) é, literalmente, “não vos amoldando”, podendo ser traduzida como “não se deixem conformar” 10 ou, trivialmente, como uma exortação a “não entrar no esquema”. Esta expressão “significava assumir a forma de alguma coisa, a partir de um molde no qual se era encaixado”.11 Contudo, uma vez que foram libertos da escravidão do pecado (Ef 2.1-3), Pedro adverte estes cristãos gentios a não entrarem novamente no antigo esquema do mundo caracterizado por uma vida regida pelos prazeres carnais (veja com exemplo Êx 20.13-17).

Aplicação prática

Os cristãos foram salvos para a obediência, por isso os salvos são filhos obedientes. Como os filhos herdam a natureza dos pais, precisamos viver em santidade, pois nosso Pai é santo.

Como filhos obedientes, não podemos retroceder nem cair nas mesmas práticas indecentes que marcavam nossa conduta quando vivíamos prisioneiros do pecado. Naquele tempo, os desejos e as paixões constituíam o esquema determinante da nossa vida e a nossa norma de conduta. É incoerente, incompatível e inconcebível um salvo amoldar-se às paixões de sua velha vida12 (veja Ef 4.22-25, 28-29, 31). Que não sigamos o mau exemplo de homens ímpios e desobedientes. Antes, sejamos corajosos o bastante para rejeitar o padrão de vida que eles gostariam de impor-nos por seu exemplo e influência.13 

____________
Notas:
1. A ARC traduziu literalmente a expressão no grego.
2. Ênio Mueller. 1 Pedro – Introdução e Comentário, pág 98.
3. O imperativo “sede sóbrio” não é um chamado à sobriedade, mas uma metáfora para manter a mente alerta e serena (Bob Utley. Comentário Bíblico de Marcus e 1, 2 Pedro, pág 222).
4. A palavra grega νήφοντες (nephontes) era comumente usada no âmbito religioso na época de Pedro, especificamente para as religiões de mistério para descrever as pessoas que se mantinham voltados para a salvação eterna enquanto que as outras pessoas que eram apegadas as prazeres deste mundo eram consideradas “embriagadas”.
5. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico Expositivo. Novo Testamento 2, pág 511.
6. Bíblia de Estudo MacArthur. Notas de Rodapé, pág 1730.
7. Warren Wiersbe. Comentário Bíblico Expositivo. Novo Testamento 2, pág 511.
8. Uwe Holmer. Comentário Esperança. 1 Pedro, pág 21
9. σνσχηματιςόμενοι (me syschematizomenoi) é um particípio presente passivo que, influenciado pelo verbo principal “sede” γενήθητε, no versículo 15, no qual é um imperativo aoristo ativo, é traduzido como um imperativo.
10. Ênio Mueller. 1 Pedro – Introdução e Comentário, pág 101.
11. A palavra grega traduzida pela ARA por “paixões” é έπθυμία (epthymia), que é comumente descrita como “um anseio por algo que é proibido”. Denota um “forte desejo pela lúxúria”, podendo ser traduzida como “concupisciências” ARC ou, literalmente do grego como “desejos”, conforme a NVI e a Almeida Século 21 traduziram. Pessoalmente, para melhor entendimento, prefiro a tradução da BJC em virtude do acréscimo do adjetivo “mau”, ficando, assim, traduzido como “maus desejos”.
12. Hernandes Dias Lopes. 1 Pedro, pág 48-49.
13. Russel Norman Champlin. O Novo Testamento Interpretado – Vol 6. 1 Pedro, pág 104.

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