Muitas tentativas tem sido feitas para associar, de alguma forma, a escravidão no Antigo Testamento com a escravidão no Ocidente Moderno. Através de uma análise histórica, mostraremos porque isso é falho.
Os historiadores abandonaram o uso (até então comum) do termo “escravidão” na descrição das diversas formas de relação entre mestre e servo manifestas no mundo antigo. Existiram poucas sociedades escravistas no mundo antigo (com Roma e Grécia sendo duas das maiores), e a nação antiga de Israel parece estar fora dessa classificação (em legislação, não em prática).
Um exemplo recente aparece na discussão sobre a cultura hitita:
“Guberbock menciona ‘escravos no sentido mais estrito’, aparentemente se referindo a escravos fiduciários como aqueles da antiguidade clássica. Essa caracterização pode ser verdadeira para escravos domésticos cujos mestres poderiam tratá-los como bem entendessem ao eles cometerem algum erro, mas essa opção é menos provável, já que eles eram capazes de ter propriedades e pagar dotes de noivado. O significado de ‘servo’ parece mais apropriado, ou talvez a designação de ‘escravo semi-livre’. Enquadra toda e qualquer pessoa que está sujeita a ordens ou dependentes de outro mas que, ainda assim, tem algum independência dentro de sua própria esfera de atividades.” (1.632) [1]
Estudiosos de Antropologia Cultural são ainda mais sensíveis quanto a isso, e apontam que a escravidão do Novo Mundo era de certa forma única, historicamente falando:
“Os estudiosos discordam entre si na definição de ‘escravidão’. O termo tem sido usado várias vezes para um ampla variedade de instituições, incluindo a escravidão para plantação, o trabalho forçado, o trabalho penoso de confeitarias e fábricas, o trabalho infantil, a prostituição semi-voluntária, o casamento por dotes, a adoção de crianças por pagamento e também a barriga de aluguel. […] Um problema similar ocorre quando olhamos para outras culturas. […] Essas características são geralmente derivadas da experiência ocidental mais recente de escravidão, aquela dos EUA e da América Latina. A imagem ocidental atual de escravidão foi construída atropeladamente das representações dessa experiência nas obras abolicionistas de literatura do século XIX. […] De uma perspectiva mais inter-cultural e histórica, no entanto, a escravidão no Novo Mundo foi uma conjunção única de características. […] Em resumo, a maior parte dos tipos de escravidão não exibiam os três elementos que foram dominantes no Novo Mundo: escravos como propriedades e comodidades; seu uso exclusivo ao trabalho; e sua falta de liberdade…” (4:1190f) [2]
Portanto, antes de alguém associar a palavra “escravidão” presente no VT com o que aconteceu no Ocidente, seria melhor definir o que consideramos “escravidão” hoje e comparar com o que se chama por “escravidão” no VT.
Com isso em mente, vamos destacar os elementos básicos associados a escravidão histórica, como praticada nos EUA antes da Guerra Civil Americana, e mostrar a diferença com os tipos de escravidão do mundo mais antigo.
Diferença 1 – Motivação: A escravidão no Ocidente recente foi motivada pela vantagem econômica da elite.
Esse não era o caso da escravidão antes da Era Comum. A motivação dominante (estatisticamente falando) era o alívio econômico da pobreza. Isto é, a “escravidão” era iniciada pelo escravo (não pelo dono) e o uso primário era puramente doméstico (exceto em casos de escravidão Estatal, onde os indivíduos eram usados para construir projetos).
A obra definitiva sobre a legislação antes da Era Comum está em History of Ancient Near Eastern Law. Ela indica claramente que o propósito da escravidão no Mundo antigo era “em favor do pobre” ao invés de “em favor do rico”.[3] Segue uma lista de citações mostrando isso:
“A maioria dos escravos que pertenciam aos assírios em Assur e Anatólia parecem ter sido (originalmente) escravos através de dívidas – indivíduos livres que eram vendidos como escravos por um pai, um marido, uma irmã mais velha, ou por eles mesmos.” (1.149)
“A venda de esposas, filhos, parentes, ou de si mesmo devido a dificuldades financeiras era uma cena sócio-econômica caracteristicamente recorrente em Nuzi ... Um caso um pouco diferente acontecia com estrangeiros tanto do sexo masculino quanto feminino, chamados Hapiru (imigrantes) que se voluntariavam a escravidão a indivíduos ou à administração do palácio. A pobreza era a principal causa destes acordos …” (1.585)
“A maioria dos casos registrados da entrada de pessoas livres na escravidão [em Emar] aconteceram em razão da dívida ou da fome, ou ambos ... A prática comum era um financiador para pagar vários credores em troca de o devedor se tornar seu escravo.” (1.664f)
“Por outro lado, faz-se menção de pessoas livres que eram vendidas como escravos como resultado das condições de fome e a crítica situação econômica das populações [Canaã]. Filhos e filhas eram vendidos para provisões” (1.741)
“O método mais frequentemente mencionado de escravidão [Neo-sumeriana, UR III] é a venda de crianças por seus pais. A maioria eram mulheres, evidentemente as viúvas, que vendiam uma filha; em uma ocasião ou outra uma mãe e uma avó vendiam um menino … Há também exemplos de auto-venda. Todos estes casos claramente surgiam da pobreza; não é explicado, no entanto, se a dívida estava especificamente no centro da questão.” (1.199)
Diferença 2 – Entrada: No Ocidente a escravidão foi esmagadoramente involuntária. Seres humanos eram capturados a força e vendidos por comerciantes.
Na Antiga Era (e especialmente no VT), acontecia exatamente o oposto. Isto já deveria estar óbvio a partir do aspecto MOTIVO (que já discutimos) – as escolhas eram feitas pelos empobrecidos, entrando nesse estado de dependência em troca de segurança econômica e proteção. Alguns contratos de escravidão, de fato, enfatizavam esse aspecto voluntário:
“Uma pessoa entrava na escravidão vendendo a si mesmo ou sendo vendido por um dos pais ou parentes. Pessoas vendiam suas esposas, netos, irmãos (com suas esposas e filhos), irmãs, cunhadas, afilhadas, sobrinhos e sobrinhas ... Muitos dos documentos enfatizavam que a transação era voluntária. Isto aplica-se não somente à auto-venda, mas também aqueles que eram vendidos, embora o seu consentimento deve ter sido, por muitas vezes, fictício (como no caso de um lactente).” (1.665) [4]
Isto também pode ser visto a partir do fato de que a guerra e a violência não eram fontes de escravos ‘reais’ na Antiga Era (nem no VT). Por exemplo, embora houvesse um grande número de prisioneiros de guerra na Antiga Era, eles geralmente não eram transformados em escravos, mas sim em cultivadores, servos:
“Dentro de todos os períodos da antiguidade, egípcios, mesopotâmicos, hititas, persas e outros governos líderes orientais conseguiam um grande número de cativos de suas batalhas vitoriosas. Mas apenas uma parte insignificante deles era transformado em escravos; todos os outros se ajustavam nessas terras, servindo nos palácios e templos. A pergunta que surge é: Por que esse grande número de prisioneiros de guerra não eram escravizados. A escravidão era a forma ideal de dependência, e muitas vezes não havia escassez de prisioneiros capturados na guerra. Além disso, não existiam normas legais ou éticas que impedissem esses prisioneiros de serem transformados em escravos. Mas isso aconteceu apenas com uma porcentagem insignificante de casos, enquanto a esmagadora maioria foram assentadas em lugares especialmente reservados para eles, pagavam impostos reais, e realizavam obrigações, incluindo o serviço militar.” [5]
“A guerra é mencionada como fonte de escravos apenas para as instituições públicas. O método de escravização mais frequentemente mencionado é a venda de crianças por seus pais, a maioria sendo mulheres, evidentemente viúvas, vendendo uma filha;… Há também exemplos de auto-venda.” (1.199) [6]
O mesmo, é claro, pode ser dito de Israel. Mesmo em guerras em solo estrangeiro (por exemplo, Dt 20.10,11), se a cidade se rendesse, tornava-se um estado vassalo de Israel, com a população tornando-se serva (mas), não escrava (ebed, amah). Eles realizariam o que é chamado de ‘corvéia’ (desenhos e projetos especiais de trabalho, como os israelitas mais tarde fizeram com Masim sob o Reino de Salomão, 1 Reis 5.27). Isso era análogo à práxis da Antiga Era, em que os prisioneiros de guerra não eram escravizados, mas convertidos em grupos de vassalos:
“As nações submetidas pelos israelitas eram consideradas escravas. No entanto, elas não eram escravas no sentido próprio do termo, apesar de terem sido obrigadas a pagar impostos reais e a realizar obras públicas.” [7]
E já que a escravidão era feita através de auto-venda ou venda pela família, ela era igualmente voluntária (pelo menos voluntário a medida que a pobreza permitia), cf. Lv 25,44 em que os verbos retratam ‘adquirir’ e não ‘tomar’ ou ‘conquistar’, etc.
Diferença 3 – Tratamento: No Ocidente os escravos eram frequentemente mal-tratados (de acordo com os padrões modernos) e as punições eram extremas.
Basta mencionar aqui que Ex 21:21 restringe o tratamento do dono ao escravo a não ser mais grave do que o que a comunidade (ou os anciãos) poderiam fazer com um cidadão livre qualquer. Esta restrição sobre o proprietário deve fazer-nos perguntar o que é que a palavra “propriedade” significa nesse contexto!
Na Antiga Era, os escravos eram geralmente protegidos contra abusos (em condições normais, fugitivos eram um problema, como veremos):
“Os escravos eram geralmente protegidos contra o castigo físico excessivo. Mesmo escravos fiduciários parecem ter se beneficiado de alguma forma desta proteção”(1:43) [8]
E todos os registros do período parecem indicar um tratamento humano:
“Primeiro, vamos separar os escravos – o espólio de guerra, ou de servidão por várias razões – que por definição eram totalmente dependentes de seus mestres, embora os últimos parece ter sido tratados de maneira justa e com humanidade, mais como se fossem empregados domésticos.” (114) [9]
Diferença 4 – Moradia: No Ocidente os escravos viviam em separação radical de seus proprietários e não participavam de muitos “benefícios” de seus proprietários.
“Além disso, em geral, havia apenas uns poucos em cada domicílio [Israel] – não há nenhuma indicação, por exemplo, que grandes grupos de escravos estivessem trabalhando em condições deploráveis, cultivando grandes propriedades, como no posterior mundo romano” (111) [10]
Diferença 5 – Saída: No Ocidente, a escravidão era perpétua. Nunca houve qualquer meio de obtenção de liberdade que estivesse previsto no contrato. No caso de um proprietário garantir liberdade, nenhuma propriedade saía com o homem livre.
Na Antiga Era, embora algumas culturas tivessem um “período suficiente para quitação da dívida” (6 anos em Israel), a alforria com “bens móveis” era rara porque ela geralmente não era requisitada. As questões de segurança econômica e das relações quase que familiares que se desenvolviam dentro da unidade familiar, criavam pouco incentivo para que o servo se tornasse “independente”:
“Geralmente, a autonomia individual significava exposição ao perigo e a predação; a segurança estava justamente na proteção conferida pela dependência dos escravos a seus patrões. O que era desejável não era a liberdade, mas o pertencimento.” (4.1191) [11]
Conclusão
Concluímos, portanto, que qualquer tentativa de assimilar a escravidão descrita no VT com a escravidão que ocorreu no Ocidente Moderno se dá por pura falta de conhecimento da história da Era Antiga e do que está relatado na Bíblia.
_________________
Referências:
1 – “A History of Ancient Near Eastern Law” Vol.1, pg 632. Raymond Westbrook (ed). Brill:2003.
2 – Encyclopedia of Cultural Anthropology Vol. 4,pg 1190f David Levinson and Melvin Ember (eds), HenryHolt:1996.
3 – “A History of Ancient Near Eastern Law” Vol.2, pg 632. Raymond Westbrook (ed). Brill:2003.
4 - Ibidem.
5 – Anchor Bible Dictionary, David Noel Freedman (main ed.), DoubleDay:1992
6 - “A History of Ancient Near Eastern Law” Vol.2, pg 632. Raymond Westbrook (ed). Brill:2003.
7 - Anchor Bible Dictionary, David Noel Freedman (main ed.), DoubleDay:1992
8 - A History of Ancient Near Eastern Law (2 vols). Raymond Westbrook (ed). Brill:2003.
9 – Everyday in Ancient Mesopotamia. Jean Bottero (Antonia Nevill, trans). JohnsHopkins:1992/2001.
10 - The Israelites, B.S.J. Isserlin, Thames and Hudson:1998.
11 – Encyclopedia of Cultural Anthropology (4 vols), David Levinson and Melvin Ember (eds), HenryHolt:1996.
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Autor: Glenn M. Miller
Fonte: Christian Think Tank
Adaptado e traduzido por: Erving Ximendes
Via: Olhai e Vivei
[Nota do editor] Para uma análise mais profunda, leia também:
• FRAME, John. A Doutrina da Vida Cristã, São Paulo - Ed. Cultura Cristã. Págs. 622-630 (Sobre Escravidão).
• BERTI, Marcelo>A Escravidão, a Escritura e a Hermenêutica. Acesso em 28/03/2016.
• FRAME, John. A Doutrina da Vida Cristã, São Paulo - Ed. Cultura Cristã. Págs. 622-630 (Sobre Escravidão).
• BERTI, Marcelo>A Escravidão, a Escritura e a Hermenêutica. Acesso em 28/03/2016.
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