Texto base: Lucas 12.1-3
Introdução
No capítulo anterior do Evangelho de Lucas (11.14-54), a multidão e, especialmente os fariseus e escribas foram o alvo do discurso de Jesus. Agora, no capítulo 12, os apóstolos [ainda discípulos] (vs.1, 22) e a multidão (vs.54) são o alvo do discurso de Jesus. Se no capítulo anterior Jesus falou para a multidão e os líderes religiosos, no capítulo em voga Ele fala da multidão e dos líderes religiosos para os discípulos e a multidão.
A primeira parte do discurso de Jesus, ainda que proferida perante uma numerosa multidão, após ele ter saído da casa de um fariseu, onde fora convidado por ele para comer (11.37-53), é dirigida especialmente aos seus discípulos (12.1-2). A segunda parte, por sua vez, é dirigida à multidão (para mais detalhes, veja os versículos 13-14,16, 22,54).
O extenso discurso de Jesus relatado neste capítulo é uma série de discursos diferentes para públicos diferentes. Jesus falava tanto em particular com os seus discípulos quanto de maneira geral às vastas multidões que o seguiam. Este discurso continua até o versículo 12.
É bem provável que todo o conteúdo do capítulo 12 seja um discurso sucessivo de Jesus, porém, com duas interpelações quando ele deixava de falar por instantes (12.13-15,41). A primeira delas foi feita por um homem que estava na multidão.
Ele queria que Jesus o apoiasse numa disputa de herança familiar (12.13-15). A segunda foi feita por Pedro, visto que ele queria saber se a parábola proferida por Jesus era dirigida aos discípulos ou a todos (12.41). Portanto, o tema do discurso inicial de Jesus aqui é uma advertência contra a hipocrisia religiosa.
O esboço analítico desta perícope pode ser dividido em 3 pontos:
Primeiro, vemos um solene conselho de Jesus aos seus discípulos – apóstolos (vs.1); segundo, ele afirma terminantemente que toda hipocrisia praticada em secreto será um dia revelada (vs.2-3); e, finalmente, Jesus tece um conselho para todos (vs.3).
Explanação
1) Um conselho imprescindível (12.1)
O confronto intelectual de Jesus com os fariseus, descrito em Lucas 11.14-36, concernente ao seu ministério na Galiléia, não está em foco aqui. Após cessar o seu discurso que refutava os fariseus, um deles convidou Jesus para comer em sua casa (11.37). Sendo assim, temos, agora, outro evento a lume.
O conselho de Jesus para a abstenção do “fermento dos fariseus”, registrado em Marcus 8.15 refere-se a um fato ocorrido durante o seu ministério do retiro. Desse modo, não temos aqui, em Lucas 12.1-3, um paralelo do mesmo acontecimento. Lucas relata o que talvez tenha ocorrido mais tarde durante o ministério de Jesus na Peréia.
Logo, a situação presente é uma continuação de um novo fato que começou em Lucas 11.37. Jesus e os discípulos não estão mais na casa do fariseu que o convidou para comer. Senão vejamos as lições que Jesus nos ensina através desta seção:
Um exemplo de hipocrisia
1 - Posto que miríades de pessoas se aglomeraram, a ponto de uns aos outros se atropelarem, passou Jesus a dizer, antes de tudo, aos seus discípulos: Acautelai-vos do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia.
Já do lado de fora da casa do fariseu, é dito que uma multidão de pessoas estava reunida para ouvir Jesus. Naquela época não havia o equipamento de som que temos hoje, o qual nos permite ouvir perfeitamente o pregador mesmo que estejamos longe dele. Por isso as pessoas chegavam a pisar por cima das outras para ver e ouvir Jesus mais de perto.
A palavra miríades é uma hipérbole, e significa exatamente “dez mil pessoas”. Esta palavra era frequentemente usada de modo indefinido para designar um grande número de pessoas (At 19.19; 20.21). Logo, o número que compunha a multidão se aproximava ou ultrapassava dez mil pessoas; ou seja, eram muitas pessoas. Existem dois possíveis motivos pelo qual tantas pessoas estavam ali reunidas querendo ouvir Jesus:
a) Interesse em Jesus como um tipo de “curandeiro ou milagreiro” e como um pregador fascinante. b) Curiosidade estimulada pelo debate de Jesus com os fariseus e os doutores da lei (11.37-54).
Não obstante, Jesus direciona sua mensagem primeiramente aos seus discípulos. Lucas escreve que passou Jesus a dizer, antes de tudo, aos seus discípulos.
A palavra discípulos não se restringe apenas aos doze. Além deles, Jesus tinha muitos outros seguidores que também eram considerados discípulos (veja, por exemplo, Jo 6.60,66). É bem provável que muitos deles estavam inseridos na multidão. Evidentemente, o discurso de Jesus também seria ouvido pela multidão em geral; ele sabia e queria isso, porém o seu foco era os discípulos.
Todavia, Jesus inicia a sua mensagem utilizando a figura do fermento, que é algo maléfico para os judeus (Êx 12.15-20). Ele adverte os seus discípulos contra o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. Essa advertência está intimamente relacionada com o que o Ele havia dito anteriormente na casa do fariseu (veja 11.39-44, 46).
O “fermento se refere na verdade a levedura, que era uma porção retirada da massa de pão e deixada de lado para servir de fermento. As pessoas faziam seus próprios pães e estavam familiarizadas com a maneira na qual o fermento, ou a levedura, penetrava na massa vagarosamente e fazia com que esta aumentasse de volume”.[1]
A palavra fermento aparece outras vezes no Novo Testamento, porém sempre de forma negativa, com exceção da parábola registrada em Mateus 13.33. Paulo faz uso da figura do fermento para ilustrar o pecado (veja 1Co 5.6-8; Gl 5.9). A advertência que Jesus faz aos seus discípulos para absterem-se do fermento dos fariseus em Mateus 16.6,12, e seu paralelo em Marcus 8.15, com o acréscimo do fermento de Herodes, foi motivada por uma situação diferente da qual Lucas ressaltou.
Lá, Jesus utiliza a figura do fermento para enfatizar o apego dos fariseus ao tradicionalismo religioso e condenar a doutrina deles como equivocada e herética.
Fritz Rienecker afirma que Jesus acusa os fariseus de um tipo mais refinado de hipocrisia. Eles visavam envolver o povo em uma rede de formas religiosas, que carecia de qualquer cerne de devoção verdadeira. Havia uma contradição entre interior e exterior.[2] Sendo assim, os discípulos deveriam evitar o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia religiosa.
Basicamente, a palavra hipocrisia denota “fingimento”, “falsidade”. William Hendriksen ressalta que hipocrisia refere-se ao mau hábito de alguém esconder sua verdadeira personalidade por trás de uma máscara. Equivale a insinceridade. Hipocrisia é desonestidade, engano.[3]
William Barclay destaca que a palavra hipócrita teve como primeiro significado alguém que responde; assim, hipocrisia significa “responder”. Utilizava-se esta palavra para perguntas e respostas em um bate-papo ou diálogo; depois se aplicou às perguntas e respostas em uma peça de teatro. Dali ela se tornou relacionada à atuação. Portanto, hipocrisia é atuar, representar um papel.[4]
Aqui em Lucas, “a hipocrisia era a principal iniquidade dos fariseus, e esconder um coração perverso era um sinal de santidade”.[5]
Aplicação prática
Assim como o fermento, a hipocrisia começa pequena, mas de forma rápida e silenciosa; e, ao crescer, contamina a pessoa inteira. A hipocrisia tem sobre o ego o mesmo efeito que o fermento tem sobre a massa do pão: ela o faz inchar (veja 1Co 4:6,18,19; 5.2). Logo, o orgulho toma conta, e o caráter deteriora-se rapidamente. Quem deseja ficar longe da hipocrisia deve evitar a primeira porção de "fermento", por menor que seja. Uma vez que se começa a fingir, o processo é rápido e, quanto mais esperamos, mais a situação piora.[6]
Existem hipócritas em todas as esferas da vida. Eles são pessoas que tentam impressionar os outros refletindo aquilo que não são. O hipócrita esconde a sua verdadeira face através da máscara da falsidade. Hipocrisia é ausência de sinceridade.
Na vida cristã, um hipócrita é alguém que tenta parecer mais piedoso do que é verdadeiramente. Na realidade, ele sabe que não é o que demonstra ser externamente. Sabe que está fingindo e não espera ser descoberto. A vida cristã dele é, indubitavelmente, uma farsa! O hipócrita nunca é verdadeiro; ele está sempre atuando, sendo alguém quem não é.
2) A hipocrisia será exposta (12.2)
Os versículos 2-9 correspondem a Mateus 10.26-33. Lá, Jesus havia dito as mesmas palavras que Lucas escreveu no versículo 2. Entretanto, não temos aqui um paralelo com a descrição de Mateus; antes, Jesus reitera o mesmo ensinamento que havia transmitido aos discípulos em outra ocasião, especificamente no seu ministério na Galiléia, porém aplicado de modo diferente neste diálogo com os discípulos e a multidão.
Por vezes, as diferenças de uso e aplicação dos ensinamentos de Jesus nos evangelhos são o que podemos chamar de “interpretação editorial” – ou seja, um dos escritores sacros observava, em uma declaração qualquer em outro evangelho, uma lição diferente que o outro escritor não relatou. Assim ele decidia [evidentemente inspirado pelo Espírito Santo] relatar a lição que observou em seu evangelho.
Não obstante, tendo advertido sobre o pecado da hipocrisia, e o perigo de ser um hipócrita, Jesus, agora, salienta o motivo da advertência contra a hipocrisia religiosa. Senão vejamos:
Um fato inelutável
Ele afirma categoricamente:
2 - Nada há encoberto que não venha a ser revelado, e oculto que não venha a ser conhecido.
A hipocrisia triunfa somente enquanto é escondida dos outros. Leon Morris ratifica que a arte de ser um hipócrita depende da capacidade de conservar algumas coisas ocultas. Quando o ocultamento já não é possível, o hipócrita é inevitavelmente desmascarado.[7]
A hipocrisia de muitos é revelada e conhecida ainda nesta vida, enquanto a de outros permanece escondida. Porém, toda hipocrisia no dia do julgamento final será revelada e conhecida (veja Ec 12.14; Rm 2.16; 1Co 3.13; Ap 20.12).
Aplicação prática
No fim dos tempos haverá uma manifestação geral de tudo que estava oculto. Esse princípio supremo do governo divino visa estimular-nos a desde já agir constante e permanentemente de acordo com a verdade, sem ceder (Mc 4.21-22). Pelo fato de que tudo será revelado à luz da verdade, cada discípulo de Cristo deve precaver-se contra a hipocrisia. Quando Deus trouxer à luz o motivo da conduta e do serviço, oculto nas sombras, então será manifesto se os servos da palavra de Deus foram hipócritas ou testemunhas da verdade. Por isso Jesus exorta os discípulos a exercer seu serviço visando o grande dia da revelação (Cl 3.3; 1Jo 3.2).[8]
3) Um conselho geral (12.3)
Visto que Jesus advertiu primeiramente e especificamente os seus discípulos sobre a necessidade de evitar o pecado da hipocrisia, dessa vez, Jesus aconselha especificamente a multidão, embora o mesmo conselho se estenda também aos discípulos e cristãos em geral. Senão vejamos:
Os segredos serão divulgados
Ele declara:
3 - Porque tudo o que disseste às escuras será ouvido em plena luz; e o que dissestes aos ouvidos no interior da casa será proclamado dos eirados.
A expressão dissestes aos ouvidos traz a ideia de “sussurrar, falar cochichando aos ouvidos” para que ninguém saiba o que foi comunicado.
Já a expressão interior da casa, no grego ταμειοιξ (temeieion), é, literalmente, “quartos fechados”, ou conforme a ARC traduziu – gabinete. Esta expressão salienta um local restrito, onde assuntos secretos poderiam ser “sussurrados, cochichados” ou falados reservadamente (veja esta ideia em Mt 6.6; 24.26; Lc 12.24).
Traz a ideia de despensa, que “são as salas de armazenagem que ficavam longe das paredes externas que facilmente poderiam ser escavadas.”[9] Champlin realça que, no oriente, os ladrões frequentemente invadiam uma casa arrombando uma das paredes. Por isso as despensas eram invioláveis por estarem afastadas da parede que dava para o exterior.[10]
Por fim, Jesus afirma através de uma metáfora que tudo o que foi proferido em oculto será proclamado dos eirados. No oriente, muitas casas possuíam um pátio com telhado, isto é, casas com terraço. Esta cobertura era o lugar ideal onde alguém poderia discursar para outras pessoas que se encontravam na rua. Com esta metáfora, Jesus descreve a publicidade; em outras palavras, enfatiza o falar em público.
No dia do julgamento final, Cristo, o justo juiz, irá revelar e proclamar tudo o que os homens [inclusive os seus discípulos ou os cristãos em geral não para a condenação deles, mas para o recebimento de galardões] tiverem dito em secreto, quer sejam coisas boas ou más (veja Rm 14.12; 2Co 5.10).
Aplicação prática
Falar o que somos, fazemos e sentimos, mas na verdade falamos, fazemos e sentimos o contrário do que falamos, é hipocrisia! Os fariseus esboçavam piedade externa, mas internamente não eram nada do que demonstravam ser (veja Mt 23.25,28).
Existem cristãos e pastores que pregam a plenos pulmões contra a mentira, o adultério, a prostituição, a maledicência, o roubo, a avareza e a falta de amor verdadeiro pelos irmãos, no entanto, praticam todos estes e outros pecados. Isto é hipocrisia, dissimulação!
É inútil esconder a verdadeira identidade interna através de uma falsa identidade externa; ou seja, é hipocrisia demonstrarmos um comportamento perante os outros que destoa peremptoriamente do que realmente somos.
Conclusão
Em outras palavras, podemos definir a hipocrisia como “viver uma vida dupla”! “Existe uma discrepância entre aquilo que a pessoa realmente é e a imagem que ela projeta de si mesma para os outros”.[11] Nesta advertência, Jesus não está condenando as falhas pessoais, pois todos nós falhamos; antes, Ele condena a hipocrisia “que nos faz assumir sermos melhores do que realmente somos”.[12]
A hipocrisia endurece o coração, reprime a voz do Espírito Santo na consciência convidando ao arrependimento e cega os olhos para enxergar e reconhecer este pecado. A hipocrisia persistente é sinal de apostasia! Que venhamos através desta advertência de Jesus confessar e nos arrependermos de toda hipocrisia que praticamos, pois certamente o Senhor Deus perdoa e restaura o sincero de coração.
___________
Notas:
1 Bíblia de Estudo Genebra. Notas de Rodapé, pág 1343.
2 Fritz Rienecker. Lucas, pág 175.
3 William Hendriksen. Lucas, volume 2, pág 164.
4 William Barclay. Lucas, pág 139.
5 A.T. Robertson. Comentário de Lucas a luz do Novo Testamento Grego, pág 232.
6 Warren Wiesrbe. Comentário Bíblico Expositivo do Novo Testamento, volume 1, pág 285.
7 Leon Morris. Lucas – Introdução e Comentário, pág 196.
8 Fritz Rienecker. Lucas, pág 176.
9 Leon Morris. Lucas – Introdução e Comentário, pág 196.
10 Russel Norman Champlin. Lucas, pág 124.
11 Comentário Bíblico Africano, pág 1257.
12 Ibid, pág 1258.
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Fonte: Bereianos
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