Por Abraham Kuyper
O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo (1Ts 5:23)
A diferença entre santificação e boas obras precisa ficar
bem entendida.
Muitos confundem as duas, e creem que santificação significa
viver uma vida honrável e virtuosa; e, uma vez que isto é o mesmo que boas
obras, a santificação, sem a qual nenhum homem verá a Deus, é tomada no sentido
de um sincero e diligente esforço para fazer boas obras.
Mas este raciocínio é falso. A uva não deve ser confundida
com a vinha, o relâmpago com o trovão, o nascimento com a concepção, não mais
do que santificação com boas obras. A santificação é o grão, a semente da qual
germinarão o caule e folhas das boas obras; mas, isto não identifica o grão com
o broto. Aquele encontra-se no solo e através de suas fibras se agarra às
raízes internamente. O último dispara do solo, externamente e visivelmente.
Assim, a santificação é o implantar do germe, da disposição e da inclinação, os
quais produzirão a florada e o fruto de uma boa obra.
Santificação é obra de Deus em nós, através da qual Ele
concede aos nossos membros uma disposição santa, enchendo-nos interiormente com
regozijo na Sua lei com repugnância ao pecado. Mas boas obras são atos de
homem, que brotam desta disposição santa. Por conseguinte, a santificação é a
fonte de boas obras, a lâmpada que brilhará com a sua luz, o capital do qual
elas são o dividendo.
Permita-nos repetir: Santificação é uma obra de Deus; boas
obras são de homens. A santificação opera internamente; boas obras são
externas. A santificação comunica algo ao homem, as boas obras tiram algo dele.
A santificação força a raiz dentro do chão, as boas obras forçam o fruto para
fora da árvore frutífera. Confundir estes dois faz as pessoas se extraviarem.
O Pietista diz: A santificação é obra do homem; não se pode
insistir nisso com ênfase suficiente. Trata-se do nosso melhor esforço para
sermos santos. E o Místico mantém: Nós não podemos fazer boas obras, e não
podemos insistir nelas, pois o homem é incapaz; só Deus pode operá-las nele,
independentemente dele.
Naturalmente, ambos estão igualmente errados e não estão de
acordo com a Escritura. O primeiro, ao reduzir a santificação a boas obras,
tira-a das mãos de Deus a coloca sobre os homens, que nunca as podem executar;
e o último, em fazendo as boas obras tomarem o lugar da santificação, libera o
homem da tarefa que lhe foi designada e clama que Deus a executará. Ambos erros
devem ser combatidos.
Tanto a santificação como as boas obras devem ser
reconhecidas. Ministros da Palavra, e através deles o povo de Deus, devem
entender que a santificação é um ato de Deus, que Ele executa no homem; e que
Deus ordenou ao homem fazer boas obras para a glória do Seu nome. E isto terá
efeito duplo: (1) O povo de Deus reconhecerá sua completa incapacidade para
receber uma disposição santa que não seja como uma dádiva da graça livre, e
então eles sinceramente orarão por esta graça. (2) Eles orarão para que os Seus
eleitos, nos quais esta obra já foi operada, possam mostrá-la adiante, em obras que glorifiquem a Deus: ― assim como nos escolheu
nEle (Jesus Cristo), antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis
perante Ele; e em amor (Ef 1:4).
Embora esta distinção seja bem clara, duas coisas podem causar
confusão: Primeira, o fato de que a santidade pode ser atribuída às próprias
boas obras. Alguém pode ser santo, mas também fazer boas obras. A Confissão,
falando de Jesus Cristo, diz das tantas obras santas, que fez por nós e em
nosso lugar [Confissão de Fé Belga — Artigo 22 — A Justificação Pela Fé Em
Cristo]. Assim é que a santidade pode ser externa e interna.
A passagem seguinte refere-se não a santificação, mas a boas
obras: Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais
como os que vivem em santo procedimento... (2Pe 3:11); segundo é santo Aquele
que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso
procedimento (1Pe 1:15); de conceder-nos que, livres das mãos de inimigos, O adorássemos
sem temor, em santidade e justiça perante Ele, todos os nossos dias (Lc 1:74-75).
Vemos que a palavra “santo” é utilizada em ambos, na nossa disposição
interior e dos resultados dela, a vida exterior. Pode ser dito tanto da fonte
como da água, que contém ferro; tanto da árvore como do fruto, que são bons;
tanto da vela como da luz, que são claras. E, uma vez que santidade pode ser atribuída
a ambas, a disposição interior e a vida exterior, santificação pode ser
entendida como se referindo à santificação da nossa vida. Isto pode levar à
suposição que uma vida exterior impecável é a mesma coisa que santificação. E se
for assim, então santificação nada mais é senão uma tarefa imposta, e não um
dom concedido. Deveria ser, portanto, cuidadosamente notado que a santificação
da mente, das afeições e disposições não é obra nossa, mas sim de Deus; e que a
vida santa a qual surge a partir daí é nossa.
Segunda, a outra causa de confusão são as muitas passagens
da Bíblia que exortam e encorajam-nos a santificar, a purificar e a aperfeiçoar
as nossas vidas, sim, mesmo a ― aperfeiçoar a nossa santidade (2Cor 7:1) e oferecermo-nos
como servos para santificação (Ro 6:19); e a sermos isentos de culpa (1Ts 3:13).
E não devemos enfraquecer estas passagens, como os místicos
o fazem; que dizem que estes textos significam, não que devêssemos oferecer os
nossos membros, mas que Deus Ele Próprio tomará cuidado especial para que eles
sejam assim oferecidos. Esses são truques que levam homens a brincar com a
Palavra de Deus: É um abuso da Escritura, em benefício de introduzir as teorias
próprias de alguém, sob a cobertura de autoridade divina. Os pregadores que,
por medo de imporem responsabilidades sobre homens se abstêm da exortação, e
cegam o fio dos mandamentos divinos por representa-los como promessas, tomam
sobre si mesmos uma pesada responsabilidade.
Embora saibamos que nenhum homem jamais executou uma única
boa obra sem Deus, quem nEle operou ambos, o querer e o executar; embora
sinceramente concordemos com a Confissão, que diz que somos devedores a Deus
pelas boas obras que fazemos e não Ele a nós... [Confissão de Fé Belga — Artigo
24 ― A Santificação — Referências Bíblicas: 1Co 1:30: 1Co 4:7; Ef 2:10]; e regozijamo-nos
com o apóstolo no fato ― Pois somos feitura dEle, criados em Cristo Jesus para
boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas (Ef
2:10); ainda assim isto não nos absolve da tarefa de exortarmos os irmãos.
É um fato que apraz a Deus usar o homem como um instrumento,
e pelo estímulo de sua própria capacidade e responsabilidade, incitá-lo à
atividade. Um soldado da cavalaria, no campo de batalha, é bem ciente do quanto
ele depende dos bons serviços do seu cavalo; e também de que o animal não pode
correr a não ser que Deus o capacite. Sendo um homem reverente a Deus, ele ora
antes de montar para que o Senhor capacite seu cavalo para trazer-lhe vitória;
mas após haver montado, ele usa os joelhos e as esporas, relho e voz, ele usa
toda sua força para fazer com que o cavalo faça o que deve fazer. E o mesmo é
verdade na santificação. A menos que o sopro do Senhor mova-se no jardim da
alma, nem uma folha pode mexer-se. Só o Senhor executa a obra, desde o início
ao fim. Mas Ele a executa, parcialmente através de meios; e o instrumento
escolhido muitas vezes é o próprio homem, que coopera com Deus. E a esta
instrumentalidade humana a Bíblia se refere quando, com relação à santificação,
ela nos admoesta a fazermos boas obras. Como na natureza Deus dá a semente e as
forças e nutrientes no solo e na chuva e na luz do sol para o completo
desenvolvimento natural do fruto da terra, enquanto que ao mesmo tempo Ele usa
o agricultor para executar a Sua obra, assim também na santificação: Deus faz
com que ela opera efetivamente, mas Ele usa o instrumento humano para cooperar
consigo, assim como o serrote trabalha em conjunto com aquele que o maneja.
No entanto, isto não deveria ser entendido como se na santificação
Deus Se houvesse feito absolutamente dependente do instrumento humano. Isto é
impossível; por sua própria natureza o homem pode realmente danificar a santificação,
mas nunca, jamais adicionalmente a ela. Por sua natureza ele a odeia e opõe-se
a ela. Ademais, ele é absolutamente incapaz de produzir a partir da sua própria
e corrupta natureza qualquer coisa que seja para o seu próprio crescimento em
santificação. A cooperação instrumental do homem não deve, portanto, ser
inapropriadamente tomada, por atribuir-se ao homem um poder para o bem, ou por
obscurecer-se a obra de Deus.
É necessário uma cuidadosa discriminação. Aquele que implanta
a disposição santa é o Senhor. Os esforços combinados de todos estes
instrumentos não poderiam implantar uma única característica da mente santa,
não mais do que todas as ferramentas juntas de um carpinteiro não podem produzir
o rascunho do molde de um painel. O artista pinta sobre a tela; mas com todos
os seus esforços, o seu cavalete, seus pincéis e sua caixa de tintas não podem nunca
rascunhar uma única figura. O escultor molda a imagem; mas por si mesmos o seu
cinzel, sua marreta e seu tamborete não podem nunca destacar uma única lasca do
mármore rude. Gravar as características de santidade no pecador é uma obra do
mais elevado sentido artístico, indizivelmente divina. E o Artista que a
executa é o Senhor, como São Paulo O chama, O Artista e O Arquiteto da Cidade que
tem fundamentos (Hb 11:10). O fato de que apraz ao Senhor utilizar-se de
instrumentos para algumas partes da obra não concede aos instrumentos qualquer
valor que seja, muito menos capacidade para alcançar qualquer coisa por si
mesmos, sem o Artista. Ele é O único Operador.
Mas como Artista, Ele usa três instrumentos diferentes, a
saber, a Palavra, Suas relações providenciais, e a própria pessoa regenerada.
1. A Palavra é um poder vital na Igreja, que penetra até ao ponto
de dividir as juntas e tutano, e, como tal, é um instrumento divinamente
decretado para criar impressões numa pessoa; e estas impressões são os meios
pelos quais as inclinações santas são implantadas em seu coração.
2. Experiências de vida também nos causam impressões mais ou
menos duradouras; e Deus usa estas também como instrumentos para criar
disposições santas.
3. O terceiro instrumento refere-se ao efeito do hábito, do costume.
Atos pecaminosos repetitivos fazem audacioso o pecador e criam hábitos
pecaminosos; desta forma ele coopera para tornar-se um pecador ainda maior.
Numa maneira similar o santo coopera para com a sua própria salvação, ao permitir
que a disposição santa irradie-se em boas obras. O ato frequente de fazer o bem
cria o hábito. O hábito gradualmente torna-se uma segunda natureza. E é esta
poderosa influência do hábito, do costume, que Deus usa para ensinar-nos a
santidade. Desta forma Deus pode fazer de um santo o instrumental na
santificação de outro.
Um arquiteto constrói um palácio o qual o faz famoso, como um
artista. É verdade que o contratante, uma pessoa importante no lugar, é quem
erigiu a estrutura; mas o seu nome raramente é mencionado; toda a honra só é
reservada para o arquiteto. Na santificação não é a Palavra por Si só que é
efetiva, mas aquela Palavra manejada pelo Espírito Santo. Nem é só a
experiência de vida, mas aquela experiência usada pelo Artista Santo. E nem tampouco
é a pessoa regenerada que serve de exemplo e capataz, mas o Deus Triúno,
glorioso, ao serviço de quem ele trabalha.
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