Por André R. Fonseca
Depois que um dos meus artigos foi publicado também no blog Bereianos, um de seus leitores entrou em contato comigo apresentando alguns documentos sobre o assunto - material extraído do site solascriptura-tt.org. Aqui, segue minha primeira resposta para o assunto em uma série de 5 artigos que pretendo escrever.
O primeiro documento, objeto da minha primeira resposta, pode ser baixado aqui. Quem desejar poderá ler o documento antes de prosseguir na leitura do meu artigo.
O autor abre o documento apresentando a Almeida Corrigida e Fiel como a tradução correta do único manuscrito que deveria ser utilizado: o Texto Recebido. E logo acusa as outras versões de utilizarem um manuscrito adulterado por Westcott e Hort, ou seja, o Texto Crítico – ainda falam assim como se o Texto Crítico fosse fruto apenas dos dois metres de Cambridge ignorando toda uma história.
O autor faz a sua defesa da ACF e acusa as outras versões de corrupção, assim, sem mais nem menos, sem a menor justificativa. A gente precisa crer no que ele disse só porque ele disse? Argumento convincente... Nem de longe!
Mas, vamos continuar lendo; afinal, são mais de 30 páginas, ele deve demonstrar alguma coisa mais adiante que mereça credito. Infelizmente, isso não acontece! São páginas e mais páginas num blá blá blá interminável para supostamente provar que as novas versões omitem algumas centenas de palavras. Isso, amparando-se em versículos como Dt 4:2 e Ap 22:18-19 como premissa, acusando assim as demais versões de retirarem palavras das escrituras, enquadrando seus autores nos versos supracitados – malditos que não herdarão os céus! Lamentável...
Como esses versículos falam tanto de retirar quando de inserir palavras nos textos bíblicos, por que não fazer tudo ao contrário? Em vez de acusar o Texto Crítico de omitir palavras, por que não acusamos o Texto Recebido de inserir palavras nos textos bíblicos!?
O interessante é que eles acusam a dupla Westcott e Hort de adulterarem os textos do NT, quando, na verdade, o que eles fizeram foi apenas criar uma metodologia científica para comparar os manuscritos, analisando-os minunciosamente, com o objetivo de chegar no número de manuscritos convergentes, eliminando as divergências entre eles. Como se Erasmo de Roterdã não tivesse feito o mesmo na escolha de “seus melhores textos” - ou será que foi no une dune tê?
Negar que os manuscritos não tenham divergências é querer tampar o sol com a peneira. Eu tenho uma edição da Bíblia Almeida Século 21 que traz alguns erros de digitação. E o mesmo acontece, com uma frequência assustadora e irritante, na Almeida Edição Contemporânea da Bíblia Thompson. Com toda a tecnologia e técnica que dispomos hoje, ainda encontramos "erros de cópia", o que dizer dos primeiros séculos com copistas sem técnica alguma e com deficiências auditivas e visuais?
Precisamos nos lembrar que os autores do NT não sentavam à mesa com a intenção de compor um documento sagrado que seria mais tarde incorporado às Escrituras! Muito menos os primeiros copistas tinham a noção que estavam preservando cópias para eternizar aquelas palavras até o século XIX quando toda essa discussão sobre os MMS originais fervilharia.
Os escribas que preservaram os textos do AT foram extremamente meticulosos na produção de suas cópias; o que não acontece com o NT, do contrário, não encontraríamos tantos manuscritos com divergências.
O fato é que muitos manuscritos foram encontrados depois que Erasmo de Roterdã entregou o seu conjunto de manuscritos do NT, que seria conhecido mais tarde como Texto Recebido. As divergências entre os manuscritos estão aí, precisamos fazer alguma coisa para resolver o problema. Parte da solução era determinar a natureza dessas divergências, e a conclusão que podemos chegar é que a maioria não passa de erro dos copistas. Alguns intencionais, mas a maioria não!
Hoje entendemos melhor a língua grega em que o NT foi escrito. Na época de Erasmo, eles nem tinham a ideia do que se tratava o grego koiné. Pois o grego utilizado nos manuscritos do NT não é o mesmo grego clássico como encontrado, por exemplo, nas obras dos filósofos gregos. Acreditou-se por muito tempo que o grego koiné era uma língua híbrida do grego clássico com o hebraico, ou até mesmo, com muita mística, a língua dos anjos! Até que muitos manuscritos foram encontrados com o mesmo grego koiné, e finalmente a distinção pode ser feita. O grego clássico era a língua culta, da elite; o grego koiné, a língua popular.
Como hoje podemos entender melhor esta língua, antes um tanto misteriosa, uma crítica textual muito mais confiável do NT é possível! Sem entrar em detalhes, também, quanto ao melhor conhecimento que temos hoje dos procedimentos adotados nos primeiros séculos pelos copistas, determinando assim, por uma técnica investigativa tipo CSI, como as divergências encontradas hoje foram produzidas.
Enquanto Westcott e Hort apenas peneiraram os manuscritos em busca dessas divergências, e ainda foram acusados de adulterarem o NT pelos autores do solascriptura-tt.org, Erasmo de Roterdã foi quem realmente pagou o pato em seu famoso Texto Recebido. Isso, o solascriptura-tt.org não faz questão de mostrar aos seus leitores escandalizáveis.
No livro do Wilson Paroschi, Critica Textual do Novo Testamento, páginas 110-111, encontramos a historia de Erasmo e a famosa coma joanina. Segue citação do livro na íntegra:
Dentre as críticas levantadas contra Erasmo, uma das mais sérias veio da parte de Lopes de Stunica, um dos editores da Poliglota Complutense, que o acusou de não incluir no texto de 1 João 5.7 e 8 a Coma Joanina. Erasmo replicou que não havia encontrado nenhum ms. grego que a contivesse, e descuidadamente prometeu que a incluiria em suas próximas edições se apenas um único ms. grego que trouxesse a passagem no texto lhe fosse apresentado. O ms. Foi-lhe trazido, e Erasmo cumpriu sua promessa na terceira edição, de 1522, mas em longa nota marginal revela suas suspeitas de que o ms. Havia sido preparado unicamente para confundi-lo. Segundo Metzger, esse ms. parece ter sido falsamente preparado em Oxford, cerca do ano 1520, por um frade franciscano chamado Froy, que tomara o texto da Vulgata Latina (13). Em 1527, Erasmo preparou uma quarta e definitiva edição, que continha, à semelhança da terceira, outra coluna paralela com o texto da Vulgata. Para essa edição, ele fez algumas alterações no texto grego, com base na Complutense, que conhecera pouco antes. O Apocalipse, por exemplo, foi alterado em cerca de noventa lugares. A quinta edição deixou de lado o latim da Vulgata, mas seu texto grego era praticamente o mesmo da edição anterior (14).
E o que dizer da obra de Erasmo (Texto Recebido da querida ACF e KJV) com base no que lemos na página 5 do livro “O Texto do Novo Testamento” de Kurt Aland e Barbara Aland da Sociedade Bíblica do Brasil? Segue a breve citação:
Para Apocalipse, Erasmo não conseguiu encontrar nenhum manuscrito em Basileia, o que fez com que tivesse de fazer um empréstimo junto a seu amigo João Reuchlin. Nesse manuscrito estava faltando o final de Apocalipse, o que levou Erasmo a traduzir Ap 22.16-21 do latim ao grego (com vários erros, diga-se de passagem). Ele também alterou o texto em outros lugares, aproximando-o da versão latina conhecida. A impressão desse magnífico volume em fólio (sendo que a tradução latina feita por Erasmo aparece em coluna paralela ao texto grego) teve início em agosto de 1515, e, visto que foi concluída em poucos meses, pode-se imaginar o ritmo galopante com que isto foi realizado. Posteriormente, Erasmo se referiu a esta edição como praecipitatum verius quam editum, isto é, “mais precipitada do que editada”. Mas esta edição trouxe a Erasmo e Froben a fama (e o lucro) de ser a primeira edição impressa do novo Testamento.
Como podemos ver, segundo o que foi apresentado acima pelas duas citações, o Texto Recebido não é tão confiável assim! Tenho fé na Palavra de Deus, e prefiro apoiar minha fé em evidencias mais sólidas, na pesquisa e não apenas numa crença mística, dependente da ignorância. Acho que não fomos chamados para isso. A fé é racional e a Bíblia foi produzida por meios humanos com todas as suas particularidades humanas. Precisamos aceitar e aprender a conviver com isso...
Para entender em que pé andamos nessa história de Crítica Textual, precisamos analisar tudo com muito cuidado, considerando alguns séculos de história, estudos e pesquisas. Precisamos levar em consideração, por exemplo, que esta história toda de qualidade de manuscritos só entra em cena após a criação da imprensa por Gutenberg. A produção de um exemplar impresso popularizou uma edição em particular, e, por azar ou não, foi a obra de Erasmo – conhecida hoje como Texto Recebido. Essa “hegemonia” do texto de Erasmo leva 300 anos para cair, levou muitas bordoadas da crítica – e já podemos perceber que há motivos para criticar sua obra quando nem mesmo ele, Erasmo, esconde a pouca qualidade de seu trabalho com o comentário: “mais precipitada do que editada”. Talvez a solapada mais dura tenha sido reflexo dos estudos de Westcott e Hort, e por isso essa turma da King James – e as tietes da ACF – só falam desses dois, ignorando que o Texto Crítico que temos hoje como base das versões modernas seja obra da soma dos esforços de muitos estudiosos, como Tischendorf, Vogels, Merk, Bover, Soden, Nestle e Aland. Esses são os maiores nomes, mas há os pioneiros ingleses John Mill e Richard Bentley, o professor Johann Saubert, Johann Jokob Wettstein, Johann Jakob Griesbach e Karl Lachmann, professor de filologia de Berlim e muitos outros.
Não é possível entrar em detalhes sobre crítica textual do NT num artigo tão curto de um blog, ninguém tem paciência de ler textos tão longos na internet. Mas há muitos livros no mercado dedicados a discutir profundamente estas questões.
Ao invés de ser um crente facilmente escandalizado pela simples acusação de um desconhecido, quem nem sequer apresenta argumentos palpáveis e críveis, através de um site fundamentalista que nem os hinos históricos aceita como sacro, leia a opinião de estudiosos do assunto para tirar suas conclusões a partir de dados mais fidedignos.
Quem sabe, assim, você não chegará à conclusão de que não é o Texto Crítico que omite, mas o Texto Recebido que acrescenta palavras ao texto original?
Recomendo a leitura dos livros:
PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2010
PAROSCHI, Wilson. Origem e Transmissão do Texto do Novo Testamento. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012.
ALAND, Kurt e ALAND, Barbara. O Texto do Novo Testamento: introdução às edições científicas do Novo Testamento Grego bem como à teoria e prática da moderna crítica textual. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
Próximo artigo da série será publicado dia 30 de julho. Aguardem!
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Notas da citação:
(PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2010)
13. The text of the New Testament, p. 101.
14. Na seção de obras raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro também existem dois exemplares do NT grego de Erasmo, um da primeira e outro da quarta edição.
Bibliografia de consulta:
- PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2010
- ALAND, Kurt e ALAND, Barbara. O Texto do Novo Testamento: introdução às edições científicas do Novo Testamento Grego bem como à teoria e prática da moderna crítica textual. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
Autor: André R. Fonseca
www.andreRfonseca.com
Twitter: @andreRfonseca
Fonte da imagem: http://kdfrases.com/imagens/desiderius-erasmus.jpg (google.com)
Fonte: Teologia et etera
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